Artigo
22.3.2015 | por Fernando Marques
Foto de capa: Walter Firmo/AJB - Site Nara Leão
O teatro musical brasileiro não nasceu ontem, mas há pelo menos 155 anos. Começamos pela revista, uma das espécies do gênero musical. O primeiro espetáculo de revista escrito e encenado no país chamou-se As surpresas do senhor José da Piedade, texto de Figueiredo Novaes. A peça ficaria em cartaz por apenas três dias, tendo sido proibida por atentar contra a moralidade das famílias, no Rio imperial de 1859.
Os espetáculos cantados afirmaram-se nas últimas décadas do século XIX, e um de seus sucessos inaugurais foi O mandarim, de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, encenado em 1884. Gênero de vigência irregular, o musical tem conhecido períodos produtivos, seguidos por momentos menos ricos. Uma de suas fases férteis foram os anos 1960 e 1970, quando o teatro frequentemente se organizou na forma do espetáculo cantado para responder ao regime autoritário.
Ao encomendar a Dias Gomes a comédia O rei de Ramos, o diretor Flávio Rangel, que a encenou em 1979, procurava “retomar a tradição interrompida do musical brasileiro”. Em prefácio à peça, Flávio mencionava ainda a “busca permanente” de sua geração (integrada pelo próprio Dias e por Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Ferreira Gullar, Vianinha, Paulo Pontes): a de estabelecer “uma dramaturgia brasileira e um estilo nacional de interpretação”.
A série de musicais engajados, criados sobretudo de 1964 a 1979, começa com o show Opinião, em dezembro daquele ano. Escrito por Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, com direção de Augusto Boal, o espetáculo propunha uma espécie de frente de resistência artística ao estado de coisas e transformava os cantores Nara Leão, Zé Keti e João do Vale em atores. O título do show vinha do segundo disco da intérprete, Opinião de Nara, que combinava bossa nova com ritmos tradicionais – samba, capoeira, baião. Os primeiros elepês da cantora e a montagem prefiguram a tendência chamada MPB. Estreita-se a parceria do teatro com a música popular, embalados pelo desejo de participação.
A pré-história do período se inicia em 1958, quando surge Eles não usam black-tie, drama realista de Guarnieri que marca o nascimento do teatro político (embora manifestações anteriores já apontassem nesse sentido). No interior da cena política, outra corrente, esta não realista, abre-se com os musicais Revolução na América do Sul, de Boal, dirigido por José Renato, e A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Vianinha, com direção de Chico de Assis e melodias de Carlos Lyra. Ambos estrearam em 1960, misturando o que se sabia dos alemães Piscator e Brecht à estrutura flexível das revistas.
Em abril de 1965, no Rio de Janeiro, aparece Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, valendo-se da técnica da colagem, utilizada pouco antes em Opinião. Dessa vez, em lugar de personagens correspondentes a classes sociais diversas, que simbolizavam a possível aliança política entre classe média e povo, o espetáculo organizava-se conforme o tema do título, versado pelas mais diferentes figuras, de Moreira da Silva a Winston Churchill.
Em maio, em São Paulo, lançava-se Arena conta Zumbi, de Boal e Guarnieri, iniciando-se a voga dos temas históricos. Zumbi e Arena conta Tiradentes, este de 1967, mobilizam modelos procedentes, entre outras fontes, das peças e artigos de Bertolt Brecht, mas conseguem ampliar e aclimatar ao Brasil a liberdade narrativa assimilada em Brecht. Sobretudo em Zumbi, os limites brechtianos são alegremente estourados por atores que entram e saem das personagens, revezando-se nos papéis sem cerimônia.
Os modelos nacionais e populares da farsa e da revista foram diligentemente aproveitados naquelas décadas. Em 1966, estreava Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Vianinha e Gullar, comédia de ambientação nordestina redigida em versos – o texto em verso constitui marca de alguns desses musicais. Já o Teatro Oficina reeditava a revista e ajudava a lançar o tropicalismo com a montagem de O rei da vela, texto de Oswald de Andrade transformado em musical em 1967.
Outra peça que recorre a formas criadas pelo povo é Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, de Dias Gomes e Gullar, encenada em 1968, quatro meses antes da edição do AI-5. A medida atinge as artes com o acirramento da censura e a transformação do artista, pelo regime, em inimigo público. Dr. Getúlio incorpora aspectos do enredo carnavalesco (as alegorias, o canto coletivo) para contar a história de Vargas, com ênfase em seus momentos finais.
Nessa fase, há também as peças inspiradas no modelo da comédia musical. Aqui, localizamos Gota d’água (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes, Ópera do malandro (1978), de Chico, e O rei de Ramos. Traços didáticos e apelos ao combate, pelos quais, nos anos 1960, se pretendia converter o espectador em herói político, desaparecem nesses dois últimos textos – sem que se perca o poder crítico. A geração de Flávio Rangel retomava o fio da meada, acrescentando verve mais ácida à tradição que remonta ao ameno (mas genial) Arthur Azevedo. Os musicais engajados oferecem ótimos pontos de partida para que se façam outras peças do gênero, agora.
.:. Publicado originalmente no jornal O Globo, suplemento Prosa, em 06/12/2014.
Lançamento
O livro Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970, de Fernando Marques, autor do artigo acima, será lançado no dia 26/3, quinta-feira, às 19h, na livraria Dom Quixote do Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB de Brasília (Setor de Clubes Sul, Trecho 2, térreo, tel. 61 3321-4362). O que se deve guardar do pródigo teatro musical feito no Brasil daquelas décadas? Que sugestões podem ser aproveitadas para a criação de novas peças do gênero, hoje? São algumas das perguntas catalisadoras da publicação da editora Perspectiva (368 páginas, R$ 60). O volume traz texto de apresentação do professor Gilberto Figueiredo Martins, da Unesp, e breve declaração na contracapa do crítico e historiador Sábato Magaldi. Percorre a produção do período e reflete sobre os textos e espetáculos que fustigaram o regime autoritário com humor e música. A noite de autógrafos inclui uma breve fala de Marques e relato do ator e professor da UnB João Antonio Esteves, que atuou na montagem brasiliense de O rei da vela, em 1987, e assistiu a criações emblemáticas nos anos 1960. Em seguida, haverá bate-papo com o público. A obra inclui caderno com 27 fotos relativas a 14 espetáculos. As imagens serão projetadas em tela durante o lançamento.
Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.