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Crítica

Quando as palavras faltam

11.3.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Jan Versweyveld

Geralmente, é diante daquilo que precisaria ser dito que as palavras faltam. E parece quase impossível falar do que arrebata ou abate, como se não houvesse sintaxe capaz de dar conta do idílio amoroso, da epifania, da morte, do luto. Sobre essa dificuldade de nomear o inominável se debruça Canção de muito longe, obra do holandês Ivo van Hove, que foi coproduzida pela MITsp e fez sua estreia mundial durante o festival.

Uma mensagem chegada do outro lado do oceano altera a vida de um homem. O dia amanhecia glorioso, com tempo para o café e para a satisfação com detalhes comezinhos da própria rotina, quando esse jovem banqueiro recebe a notícia da morte do irmão mais novo. É estranho que nada no ‘mundo real’ denunciasse o ocorrido – tudo continuaria igual se não tivesse ouvido as palavras da mãe em um recado eletrônico. Mas ele ouviu. E tudo, em um estalo, tornou-se diferente. Ainda que esse tudo, assombrosamente, teimasse em permanecer intocado. Porque o mundo segue indiferente, sem tomar conhecimento de nossas tragédias.

Escrever cartas ao irmão morto é a maneira de construir um discurso dessa despedida. Na dramaturgia de Simon Stephens, essa correspondência de via única, que ficará eternamente sem resposta, surge como a maneira de desvelar a relação que havia entre eles – e também a que não existia. Sozinho no palco, o ator Eelco Smits evoca a presença dos pais, assim como a maneira com que cada um vive sua estupefação e perda. Redimensiona o vínculo com a irmã, inicialmente tão distante. Atualiza, ao ser confrontado com a perda recente, lutos mais antigos, e revisita o ex-amante, que ele abandonou um dia.

Trazer a palavra ao centro da cena tem sido o caminho trilhado pela companhia Toneelgroep Amsterdam. Uma estratégia que poderia soar inatual. Ou sugerir um apego a convenções. Mas que carrega um estranhamento naquilo que propõe de familiar. O ‘teatro de texto’ oferta uma corda ao espectador, um colete salva-vidas – talvez falso –  para que ele possa consentir abandonar as beiradas nas quais se sente seguro e lançar-se.

Ainda que um personagem, com nome, passado e conflitos, seja apresentado à plateia, a interpretação de Smits não parece sustentar-se sobre uma construção psicológica. Mais evidente é o componente performático de sua presença – dado que também é uma constante no trabalho do diretor. Ainda que diante de um espaço dito convencional (a caixa preta, o teatro de palco italiano), a ocupação desse lugar e a corporeidade do ator vêm dar notícia de uma teatralidade performativa.

Em texto escrito para o catálogo da mostra, a estudiosa Josette Féral chama atenção para o vínculo estreito entre Van Hove e o cenógrafo Jan Versweyveld. Em Canção de muito longe, um retângulo com duas janelas, divido em partes desiguais, e praticamente vazio, não tem propriamente a função de ambientar as ações. Pode ser um quarto de hotel, uma avenida de Nova York, a margem de um canal de Amsterdã. As cidades, afinal, tornaram-se iguais. Todas as diferenças foram esmagadas. Em nenhuma grande metrópole do mundo é possível avistar estrelas à noite. Não importa o continente, o idioma. As famílias se sentarão à mesa com seus celulares à mão, anteparos ao diálogo. O que a cenografia faz, por princípio, é delimitar o fluxo do intérprete, organizar seu percurso: que não se dá apenas no corpo, mas pelo corpo.

Pelo corpo e pela palavra. Não existe um ponto onde começa um e termina o outro. Então, o previsível – uma criação calcada essencialmente no texto – pode vir a se deslocar em direção a um território de assombro. Algum ambiente artificialmente modificado, um lugar de fora do mundo, em que o discurso pudesse ser ‘realmente dito’. Não articulado e espalhado à exaustão até seu esvaziamento completo. Não essa fala sobre a morte que circula ignorada, depreciada, inflada com uma dose de anestesia. Mas sustentada. Até o fim.

.:. Publicado no âmbito da Prática da Crítica, uma das atividades da ação Olhares Críticos na 2ª MITsp, aqui.

 

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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