Crítica
As reflexões de classe e de gênero originalmente implicadas em Senhorita Julia (1888) estão sublinhadas e problematizadas também segundo a cor da pele na livre adaptação de Christiane Jatahy para o envolvimento da moça branca, filha do patrão, com o motorista negro da família. Se no prefácio a sua peça o sueco Augusto Strindberg (1849-1912) dizia não preconizar lição de moral, a diretora tampouco cede a julgamentos ao atritar matizes escandinavos com a memória escravocrata do Brasil que cava os abismos sociais ora perpetuados.
O conteúdo sociopolítico implode no espaço da intimidade: o flerte, o gozo e o fim das ilusões. Apesar da convergência dos corpos, os personagens carregam tamanha autonomia que suas falas nem sempre soam como integrantes de um diálogo. Antes, traduzem as respectivas convicções burguesa e proletária forjadas na relação de trabalho. A subordinação do pai dele ao pai dela foi herdada sob os mesmos domínios da casa grande onde a menina Julia e o menino Jelson se viram crescer sob óticas distintas. O modo como o nome dele vem à luz, lá pela metade da obra, clareia como a identidade é constituída, ou melhor, apagada segundo as regras do jogo social.
Essa dramaturgia de conflagrações é captada de forma aguda na encenação estruturada sob a lógica dos procedimentos audiovisuais explícitos. O cameraman in loco equivale a um terceiro olho: o voyeur a quem o espectador se depara também ele na condição de observador. Mas o papel de receptor aqui não guarda nada da passividade induzida pela maioria dos programas televisivos.
A passagem da transa do casal contrapõe a hipertrofia da representação visual erótica dominante no imaginário publicitário. Expõe os ângulos da lente e aqueles captados a olhos nus ponderando o efeito teatral desses corpos em estado de desejo, ou seja, dois atores que não chegam ao ato sexual, obviamente, porque os códigos cênicos estão escancarados. O consciente anota e a imaginação voa longe mesmo assim.
A projeção crítica das imagens do texto de Strindberg permanece no horizonte do público aguçado ainda pelas linguagens do vídeo e do cinema que imprimem outros fluxos à narrativa. Temporalidades e espacialidades dançam conforme a coreografia de imagens simultâneas ou gravadas que compõem a cena. Boa parte das sequências é exibida (por vezes editada) sobre telas móveis que, uma vez recuadas, deixam transparecer os nichos cenográficos da cozinha e do quarto do rapaz. No plano da boca de cena a mediação imagética é menos ostensiva, os atores podem falar direto aos olhos da audiência.
O registro naturalista das atuações de Julia Bernat e Rodrigo dos Santos guarda nexo com a peça sincronizada com os pendores literários da Europa do final do século XIX assim como corresponde à cultura da telenovela brasileira. O pulo do gato de Jatahy está justamente em não aceder às convenções assimiláveis à primeira vista (a aventura amorosa de uma noite com desfecho trágico). Há um momento em que a atriz desvia da personagem-título, olha para a plateia e lembra que “não estamos sozinhos”. Noutro, exige que o operador de câmera desligue o equipamento.
As inquirições quanto ao caráter ficcional e a revelação permanente do artifício operacional da cena culminam a força da teatralidade de um projeto que não se embriaga pela hibridez e maneja o drama com pertinência. A direção de arte de Marcelo Lipiani valoriza os closes, as frestas e as paisagens de uma obra expositiva das contradições: exuberâncias e precariedades, sensualidade e violência, ódio e dissimulação. Recortes candentes para o momento brasileiro de extremismos numa sociedade dita cordial que parecia não querer enxergar suas crispações seculares.
Chegada a Julia da Companhia Vértice de Teatro, aguardemos na programação da MITsp a chance de cotejar a versão da mesma peça pelos ingleses Katie Mitchell e Leo Warner, junto à companhia alemã Schaubühne, na qual a perspectiva cinematográfica também é seminal.
.:. Publicado no âmbito da Prática da Crítica, uma das atividades da ação Olhares Críticos na 2ª MITsp, aqui.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.