Crítica
31.10.2015 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Alécio Cézar
A palavra é o jeito de fazer o nada aparecer. O que era nada. Agora a tornar-se letra, corpo, matéria, pensamento. “O pensamento não existe fora do mundo, nem fora da palavra”, diz Merleau-Ponty. O que nos engana, e nos faz crer em um pensamento que existiria por si só, “são os pensamentos já expressos que nós podemos invocar silenciosamente e pelos quais nos damos a ilusão de uma vida anterior. Mas na realidade esse pretenso silêncio está ocupado pelo barulho das palavras; essa vida interior é uma linguagem interior.”
Mas, nesse mundo forjado por letras e códigos linguísticos, como navega quem dele foi excluído? É disso que vem tratar Ledores no breu, criação da Cia. do Tijolo, encenada por Dinho Lima Flor, sob direção de Rodrigo Mercadante. Nessa obra, constituída essencialmente pelo corpo de um ator, um único ator, o espectador se aproxima da escuridão a circundar aquele que não possui a habilidade de ler. Vê a cegueira alheia. Mas também o seu próprio quinhão de escuro. O iletrado não está apenas alijado de tudo aquilo que foi – e continua sendo – escrito: cartas, sinais de trânsito, letreiros comerciais. Não é na vida ‘prática’, do cotidiano prosaico, que essa cegueira se faz maior. É o próprio lugar de onde esse homem vê o mundo que lhe é diminuído. Apenas uma nesga de luz, quando a vida poderia lhe oferecer janela aberta.
Dinho Lima Flor salta para o performático, oferecendo sua presença como signo maior. Convoca muitos tempos – e muitos teatros – para ocupar a cena
Os argumentos e discursos a circular em favor da educação são incontáveis e incontestes. E, certamente, prescindem do teatro para se afirmar. É na maneira como o espetáculo dá a ver essas questões que se colocam seu mérito e sua singularidade. Forjada dentro do ambiente do teatro Ventoforte, do pioneiro Ilo Krugli, a Cia. do Tijolo se insere no contexto da arte contemporânea sem perder o lastro da cultura popular. Em sua ‘certidão de nascimento’, o espetáculo que marca a estreia do grupo, Concerto de ispinho e fulô, já se evidenciava esse traço constitutivo. A obra vinha circular ao redor de Patativa do Assaré – de sua poesia, seus repentes, sua biografia. Por caminho semelhante, ainda que próprio, enveredava o título seguinte da companhia, Cantata para um bastidor de utopias. A inclinação política não escamoteada; a música como elemento constitutivo, nunca acessório; a admiração pelos heróis anônimos, por homens e mulheres comuns, ordinários, que ousaram tentar mudar o mundo. Ledores no breu descende dessa linhagem.
Aqui, Patativa do Assaré está de volta. E chega acompanhado de ilustres como Lêdo Ivo, Paulo Freire, Luis Fernando Veríssimo, Cartola, Zé da Luz, Jackson do Pandeiro. A dramaturgia se faz na fina costura de episódios, relatos e canções desses autores. A história do homem que assassina a mulher movido pela ignorância. A história de outro homem, emocionado ao aprender a escrever sua primeira palavra, um nome feminino.
Sozinho no palco, Dinho Lima Flor faz da encenação não só um passeio por textos, mas por formas e estilos de interpretação. Inventa seu próprio jogo. Cria personagens. Entra e sai deles. Quebra a quarta parede. Comunica-se com a plateia. Flerta com uma comicidade popular, calcada na imitação e no exagero. Comenta a atualidade, como em um teatro de revista. Salta para o performático, oferecendo sua presença como signo maior. Convoca muitos tempos – e muitos teatros – para ocupar a cena.
É também no balanço entre os poucos elementos que compõem essa cena que o espetáculo se equilibra. A direção de Rodrigo Mercadante vai dosando aparições e desaparições, silêncio e alarido, música e grito. Um aparente despojamento de meios no qual camadas de significados se vão acumulando. Duas carteiras escolares – uma antiga, outra moderna. O figurino branco, uma sobreposição de camisa, casaco, jaleco – todos gradativamente manchados de negro. O carvão que serve para escrever como o giz branco. O carvão que é pedra a ser transposta. Rolos imensos de papel a cruzar o tablado para transformá-lo em tabuleiro, estrada, a referenciar a parede das cavernas onde foi impresso o desejo primal de capturar o mundo, de interpretá-lo. Ao convocar o olhar para miudezas, para um arrazoado de coisas e homens e sentimentos pequenos, Ledores no breu lembra do que é grande. Ou pode ser. Como se direcionasse um feixe de luz para a grandeza do ínfimo.
.:. Escrito no âmbito da 10ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.
Ficha técnica:
Atuação: Dinho Lima Flor
Direção: Rodrigo Mercadante
Assistente de direção: Thiago França
Luz: Milton Morales
Trabalho de corpo: Joana Levi
Pesquisa dramatúrgica: Dinho Lima Flor
Concepção de cenário e figurino: Dinho Lima Flor
Música composta – Jonathan Silva
Produção: Juliana Gomes
Fotografia: Alécio Cézar
Informações para a imprensa: Juan Velásquez
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.