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Crítica

O amor é mais pra lá

10.11.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Jennifer Glass

As relações afetivas e sexuais entre indivíduos urbanos ganham um voluptuoso e incisivo ponto de vista masculino em Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou. O título é auto-expositivo dos meandros épicos e íntimos da criação do coletivo A Motosserra Perfumada. O homem deste presente cênico arde em desejos sem enquadramentos hétero ou homoeróticos. Ele circula pelas incertezas do ser despedaçado em busca do seu corpo amoroso/amoral e livre da sanha machista. Razões hedonistas e cínicas conflitam o tempo todo no périplo de Matheus, a figura central nada bíblica, misto de Arthur Rimbaud e Jim Morrison que ocupa a pista armada numa das artérias subterrâneas do Centro Cultural São Paulo, durante a Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.

Os espectadores, ficamos alinhados em pé como “paredes” no corredor de manifestações performativas. Como fio narrativo, acompanhamos as estações de afetos e brutalidades enfrentadas pelo rapaz que retorna aos homens e às mulheres para reaver olhos, pernas, braços, fígado, nuca, coração e demais órgãos deixados para trás a cada vez que se entregou. É por meio desse sujeito esvaziado e em perpétuo deslocamento – inclusive no revezamento dos atores que lhe dão voz – que a arte propaga sentidos e alteridades.

Ao espelhar urgências sobre a sexualidade e a cultura do sentimento, os criadores problematizam a crise ética em níveis público e privado

Seguindo a via da decomposição, dos estilhaços, a obra convida ao passeio assumidamente anárquico sobre o mix de linguagens. Gera estados de uma dramaturgia “verbivocovisual”, como na poesia concreta, e sensorial, pelo banho de sinestesia. As falas versam e jorram. A música pulsa com a banda de rock postada numa das extremidades, intercalando atores e atrizes ao microfone. E silêncios.

O texto e a direção de Biagio Pecorelli são pura conjunção de resíduos e ruídos expostos como numa instalação. Não há rodeios na carnalidade dos corpos ou no “jardim” de facas perfurando as chapas de madeira no chão. Botas as tocam, entortam e arrancam no vaivém da história. Outra imagem de risco é a do taco à la baseball usado para destruir tijolos pendentes do corpo de Matheus, sustentados por barbantes, talvez. Estalos de um taco pintado em cor de rosa como contraponto à realidade cinza e homofóbica na superfície do dia ou da noite.

Bruno Caetano, do coletivo A Motosserra PerfurmadaJennifer Glass

Bruno Caetano, do coletivo A Motosserra Perfurmada

Ao discutir a construção do gênero masculino, do “homem não chora” a outras ignorâncias patriarcais, o coletivo amplia o raio de ação temático para questionar a sociedade de seu tempo e lugar. Como no embate com o desavergonhado e disseminado discurso reacionário na seara política. Ao espelhar urgências sobre a sexualidade e a cultura do sentimento, os criadores problematizam a crise ética em níveis público e privado.

Perto do desfecho, Matheus reencontra o pai que não via há tempos. Vai atrás dos seus olhos. Quer voltar a chorar, sentir. O pai é açougueiro, veste avental e botas de PVC brancos. Peixeira numa mão, copo de uísque na outra, ele se vê cobrado pelo filho que perdeu a fragilidade, metido em sua capa e uniforme de Superman, algo patético. Ambos farão de mais um diálogo áspero/delicado da noite um acerto de contas. O pai como que mordendo a própria calda. E o filho matando-o simbolicamente, segundo a psicanálise.

O músico Jonnata Doll à frente da banda

Como o dramaturgo canadense Brad Fraser suscitou nas peças Amor e restos humanos (1989) e Pobre Super-Homem (1994), o coletivo nascido em São Paulo no ano passado (é o trabalho de lançamento) pisa firme a cena com consciência estética e crítica para reagir ao estado de abatimento que está no ar.

Pecorelli referenda influências como a do Oficina Uzyna Uzona de Zé Celso e demonstra visões autorais. Inverte a expectativa do público quanto à frontalidade, o assento, e o estimula a acompanhar a apresentação à margem de uma passarela, lembrando um pouco aquela que a arquiteta Lina Bo Bardi desenhou para o histórico teatro da Rua Jaceguai. Fazer parte da plateia, em pé, pressupõe uma vigília corporal sobre si e a cena, atrás de ângulos e posturas autônomos. A atmosfera de show de rock’n’roll – sem dispensar pitadas de carnavalização, envolvendo cachos de banana e catuaba – parece que vai colocar tudo a perder a qualquer instante, mas as ações e o ritmo se emendam com consistência performativa, teatral e musical. O domínio técnico, a exigência física e a atitude poética de boa parte dos artistas indicam o grau de investigação a que se propuseram.

Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou teve uma sessão na Mostra, sua estreia após período de ensaios abertos. A primeira temporada abre amanhã no túnel da Praça Ramos de Azevedo, na região central, em frente ao Theatro Municipal de São Paulo. Outros músicos serão convidados a integrar a banda. O artista plástico Mozart Fernandes intervirá com ilustrações no túnel durante o tempo real de algumas apresentações.

.:. Escrito no âmbito da 10ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

Serviço:
Quando: Quarta e quinta, às 21h30. De 11/11 a 10/12
Onde: Passagem subterrânea em frente ao Theatro Municipal (Rua Coronel Xavier de Toledo, 23, Metrô Anhangabaú, São Paulo, entrada pela escadaria em frente ao Shopping Light, tel. 11 97139-1026)
Quanto: Grátis

A atriz Camila Rios na criação escrita e dirigida por Biagio PecorelliJennifer Glass

A atriz Camila Rios na criação escrita e dirigida por Biagio Pecorelli

Ficha técnica:
Criação: A Motosserra Perfumada
Dramaturgia e direção: Biagio Pecorelli
Com: Alex Bartelli, Biagio Pecorelli, Camilla Rios, Felipe Vasconcellos, Bruno Caetano, Jonnata Doll e Paula Micchi
Banda ao vivo: Jonnata Doll, Feiticeiro Julião, Edson Van Gogh e Augusto Coaracy
Direção de arte e figurinos: Hugo Cabral
Desenho de luz: Marcelo Lazzaratto
Trilha composta: Jonnata Doll e Biagio Pecorelli
Ilustração: Mozart Fernandes
Adaptação e operação de luz: Marcela Katzin
Técnico de som: Bruno de Castro
Fotos de cena: Marcos Lobo
Vídeo de divulgação: Saulo Tomé
Direção de produção: Alex Bartelli
Produção executiva: Leandro Brasilio e Marie Auip (Sofá Amarelo Produção e Arte)
Produção geral: AzAyAh P&C
Agradecimentos: Governo do Estado de SP – Cultura, Prefeitura de São Paulo, Secretaria Municipal da Cultura, SP Escola de Teatro, Sulla Andreatto, Leandro Resende, Ivam Cabral, Beth Néspoli, Paulo Cesar Pereio, Renato Borghi, Suely Rolnik, Marcia Tiburi, Laerte Coutinho e Dimmy Kieer

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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