Crítica
24.4.2018 | por Valmir Santos
Foto de capa: Lina Sumizono/Festival de Curitiba
Em Curitiba
Artistas da montagem brasileira de A ira de narciso viram-se condicionados a inventar um nível de intimidade com o dramaturgo, o franco-uruguaio Sergio Blanco, sem jamais olhá-lo nos olhos nas etapas de pesquisa e ensaios – ele está radicado em Paris. Certa intimidade deveria ser atributo comum a qualquer meditação criativa a partir de dramaturgia alheia, seja o autor vivo ou morto, até para encorajar escolhas autônomas. Em dramaturgia própria cultiva-se o oposto, alguma margem de distanciamento. O ator Gilberto Gawronski e a diretora Yara de Novaes tourearam a trama em que Blanco é ele mesmo o protagonista e, ainda no corpo do texto, dá seu nome ao personagem atuado por Gabriel Calderón, outro sujeito intrínseco à obra, parceiro dele na Complot – Compañía de Artes Escénicas Contemporáneas, de Montevidéu.
Coube a Gawronski, portanto, imiscuir-se nessa dança de personas forasteiras, sob carta branca do dramaturgo adepto da autoficção, termo emprestado da literatura e cunhado no final da década de 1970 pelo escritor e crítico francês Serge Doubrovsky (1928-2017), que o definiu como “ficção de eventos e fatos absolutamente reais”.
A peça atrai o espectador para dentro da história e seus enigmas dispondo múltiplas portas de entrada para o que ele, o personagem do autor, frisa não se tratar de monólogo, solo ou solilóquio: é um relato, ponto, fruto de meticuloso procedimento de escrita.
O gaúcho Gawronski ficcionaliza assumir a sua identidade na troca de mensagens com Blanco desde os primeiros insights para a nova peça. O dramaturgo participa de um simpósio de filologia numa universidade de Liubliana, capital eslovena, e eles conversam via internet. Dois aspectos servem como ponto de partida para lucubrar as situações vivenciadas durante a jornada. De um lado, a tarefa de consolidar o texto da conferência que vai abordar “O Olhar Poético em Narciso: a Transformação do Real”. De outro, a obsessão em saber por que uma mancha de sangue que impregna o carpete do quarto do hotel ganha outras proporções.
Em tempos turvos de pós-verdade e pós-ficção, A ira de narciso propõe uma luminosa combinação de vozes do protagonista (que é também o autor e intérprete), do narrador (um comentador atento dos acontecimentos) e dos demais personagens (como o amante, a mãe, os pares acadêmicos, o amigo criminologista, o diretor do hotel e o chefe aposentado da polícia nacional da Eslovênia). Artífice dessa afluência aparentada do fingimento e da heteronímia em Fernando Pessoa (1988-1935), ou das inversões de toda ordem em Luigi Pirandello (1867-1936), Sergio Blanco não demora a promover em seu texto o desmembramento desses “eus”, convidando o espectador à cumplicidade na decantação do imaginário. Se há uma verdade, ela precisa ser buscada na consciência de cada um. A experiência artística aqui examina a realidade com afinco para extrair dela um sistema de mundo passível de espelhar ou distorcer a condição humana hoje.
Com cerca de 40 anos de lida amadora e profissional com o teatro, Gawronski demonstra fôlego notável na condução do texto palavroso. Nenhum demérito do dramaturgo em se apropriar desse signo com o entusiasmo de um apaixonado por linguística. A peça atrai o espectador para dentro da história e seus enigmas dispondo múltiplas portas de entrada para o que ele, o personagem do autor, frisa não se tratar de monólogo, solo ou solilóquio: é um relato, ponto, fruto de meticuloso procedimento de escrita. E por aí Gawronski alia a formação dramática e a destreza performativa – quando ainda pouco se falava dela nos anos 1990 – para esgrimir “eus” e “outros” a partir do narrador íntimo e anfíbio, ao sabor da progressão dos fatos.
A empatia e o clima de thriller policial evoluem conforme os dias de preparação da conferência. Em paralelo, o autor engata encontros amorosos com um misterioso rapaz que conhece por meio de aplicativo. Entre as vertentes desse encadeamento estão os embalos homoeróticos, as corridas matinais no parque vizinho ao hotel, o surpreendente desvendamento das razões daquela mancha de sangue no aposento e a resistência aos acadêmicos de maioria europeia que pouco se lixam para o avanço da extrema-direita, a pregação nazista ou o naufrágio de refugiados africanos no Mediterrâneo (tudo sob a ótica de quem nasceu no Uruguai, ironiza a origem e vive na França).
O pensamento do autor sofistica-se, e sem hermetismo, na visita do protagonista ao Museu de História Natural, em que descreve e toca o esqueleto de um mamute. A delineação dos ossos arqueológicos pela luz (por Wagner Antonio) reforça esse elefante fóssil como síntese material da capacidade de Sergio Blanco criar palimpsestos, escavar camadas e escorá-las com muita segurança para que os artistas da cena permitam ao público acessá-los. Ou quando, enfim, clareia o argumento da conferência ao entender que o olhar do mítico Narciso seria uma metáfora do olhar do artista. Ao mirar a si mesmo, buscaria o outro. Na tradução de Celso Curi: “De certa forma, o olhar de Narciso é um olhar que busca o jogo confuso do eu e da alteridade. É dizer que se trata de um olhar que se encontra a si mesmo, e, por sua vez, no mesmo instante dessa autocontemplação do eu, propõe uma interrogação do outro. Segundo Pausânias, Narciso, vendo-se a si mesmo, crê reconhecer a imagem de sua irmã gêmea morta. Isto é o que permite afirmar que no mito de Narciso o olhar do eu me leva então ao outro”.
Que um espetáculo da atual temporada em São Paulo evoque o geógrafo grego para prospectar a peça dentro da peça e o espectador dentro da peça, assim como se permite uma sequência com uma canção popular romântica, entre outras peripécias, isso é acreditar na capacidade de livre-arbítrio do interlocutor para operar esses dados. Como se viu no Festival de Curitiba, no mês passado, o prazer que esse trabalho transmite expõe o poder de interação da equipe reunida exclusivamente para essa produção. Em parceria inédita com Gilberto Gawronski, Yara de Novaes indica reconhecer-lhe o DNA para potencializar as imagens através da palavra. A diretora incrementa o jogo de leituras ao escalar seu assistente, o ator Murillo Basso, como o duplo de Gawronski/Blanco. A neutralidade dessa presença equilibra o acompanhamento do intrincado relato e suas ações. Para o universo de dobras narrativas, o cenógrafo André Cortez explora a espacialidade do vazio alinhando caixas de som e respectivos suportes nas laterais e ao fundo. A certa altura, elas abandonam a mera funcionalidade de irradiação da música incidental e são transfiguradas, a nosso ver, em oratório (como aquele que mimetiza o mamute) ou em frigobar do qual o autor/narrador/personagem retira latas de Coca-Cola. São diversas as marcas citadas e que evidenciam o consumismo, entre um antidepressivo e outro.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Curitiba
Serviço:
A ira de narciso
Onde: Sesc Pinheiros – 3º andar (Rua Paes Leme, 195, tel. 11 3095-9400)
Quando: Quinta a sábado, às 20h30. Até 12/5
Quanto: R$ 7,50 a R$ 25
Duração: 90 minutos
Recomendação etária: 18 anos
Equipe de criação:
Autor: Sergio Blanco
Idealizador e tradutor: Celso Curi
Com: Gilberto Gawronski
Diretora: Yara de Novaes
Diretor assistente: Murillo Basso
Diretor musical: Dr. Morris
Cenógrafo: André Cortez
Iluminador: Wagner Antonio
Figurinista: Fábio Namatame
Assistente de cenografia: Fernando Salles
Orientador vocal: Caio Ferraz
Cenotécnico: Marcelo Andrade e Zé Valdir
Eletricista: Marcos Pinto
Fotos: Otávio Dantas
Operador de luz: Jimmy Wong
Operador de som: Renato Garcia
Produtores executivos: Pedro de Freitas e Clara de Cápua/Périplo Produções
Diretores de produção: Celso Curi e Wesley Kawaai/OFF Produções Culturais
Produção: Parnaxx | GPS Produções Artísticas | OFF Produções Culturais
Realização: Sesc SP
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.