Menu

Crítica

A visão reveladora do Mapa Teatro

19.9.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação/Mapa Teatro

Santos – Antes da leitura crítica acerca do espetáculo La despedida (A despedida), um episódio testemunhado em Bogotá, cidade do grupo Mapa Teatro.

Meados de março de 2010, entrada do Teatro Fanny Mikey, em Bogotá. O público é revistado à porta por um militar fardado e armado. Os espectadores estão ali para assistir ao diretor estadunidense Bob Wilson atuando em A última gravação de Krapp. O autor da peça, o irlandês Samuel Beckett, possivelmente não imaginaria tal recepção. O edifício teatral leva o nome da atriz e empresária que idealizou o Festival Iberoamericano de Teatro, que programou o espetáculo.

A situação descrita é um diminuto exemplo do quanto a sociedade colombiana estava militarizada àquela altura, a seis anos do acordo de paz entre governo e Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colômbia – Ejército del Pueblo (Farc-EP). A mais importante guerrilha da história do país combateu entre 1964 e 2016, quando virou partido político sob a mesma sigla, desde então designada Fuerza Alternativa Revolucionaria del Común. O que gerou indignação em boa parte da sociedade. Foram cerca de 220 mil mortos e 60 mil desaparecidos em 54 anos de ações como sequestro, tortura e extorsão.

Os criadores de ‘La despedida’ partem da realidade colombiana da guerrilha armada para dissertar e performar a respeito de movimentos e ideólogos revolucionários que aportaram utopia e paroxismos ao longo da história da humanidade

Em sua produção mais recente, de 2017, o Mapa Teatro condensa com tirocínio a história contemporânea do país e o faz sob a arte de manipular poeticamente o principal objeto de análise: a violência.

Se no Brasil a violência é endêmica, com 61,6 mil mortes em 2016, a estatística mais atual, a conjuntura colombiana mostra-se mais complexa na disputa por territórios entre o narcotráfico, a guerrilha e as organizações paramilitares. O mercado das drogas e a corrupção policial são familiares ao brasileiro. Mas a ação continuada e resistente de guerrilhas em períodos de vigência democrática, não.

O espectador estrangeiro pode até desconfiar de que não dará conta da carga de informações que recebe em La despedida, e a rigor não precisa. A dramaturgia nada enciclopédica segue a máxima tolstoiana de cantar o quintal e ser universal. Os dramaturgos e diretores, os irmãos Rolf Abderhalden e Heidi Abderhalden, também entre os atuantes, dissertam e performam a respeito de movimentos e ideólogos revolucionários que aportaram utopia e paroxismos ao longo da história da humanidade.

Rolf Abderhalden

O chinês Mao Tse-Tung numa das passagens iconoclastas do espetáculo do grupo colombiano

Livre da ambição de esgotar o tema e tampouco de abordá-lo sem profundidade, os fundadores do Mapa Teatro (1984) partem de um acontecimento pródigo em metateatralidade: a conversão de um acampamento desativado das Farc em museu vivo. Desativada, a instalação localizada ao redor da reserva natural La Macarena, no noroeste do país, foi transformada em centro de memória das metodologias, treinamentos e ações ali executados.

Por iniciativa do próprio exército colombiano, membros de distintas patentes representam contextos e crimes com roteiros e atuações de cunho amadoras, mas que tentam se aproximar dos relatos oficiais.  O chefe do acampamento El Barugo (A Paca, em português) era Jorge Briceño Suárez, o “Mono Jojoy”, uma das principais lideranças das Farc, responsável, por exemplo, pelo sequestro da candidata à presidência Ingrid Betancourt, entre 2002 e 2008. Ali foi o cativeiro. Os “atores” fardados servem-se do realismo do cenário e dos adereços e objetos que faziam parte do cotidiano dos insurgentes na selva.

Ao tomar conhecimento desse “teatro de guerrilha”, o Mapa Teatro conseguiu autorização da cúpula do exército para ir a campo registrar a experiência sui generis. O documento audiovisual editado é uma das bases da narrativa no que pode ser percebido como um espetáculo ensaístico, para emprestar a variante do gênero literário em que a prosa expõe e expande críticas e ideias por vias poéticas e sem medo de alguma dose de didatismo diante da densidade do material que processa.

São múltiplos os fatos, nomes, datas ou localidades citados e nem sempre assimiláveis a quem não vive na Colômbia. Transposta essa primeira camada, porém, tudo o mais nessa pesquisa em teatro documental se reinventa como um olhar telescópico para a realidade. Esta é implodida por imagens de impacto, sob o efeito da camuflagem, recurso usual dos soldados para enganar o inimigo na batalha, predador e presa em jogo. Em algumas passagens os atuantes são fundidos ao ambiente da selva, por entre as folhagens da instalação cênica tripartida do palco.

Rolf Abderhalden

Um acampamento das Farc vira centro de memória em que os militares oficiais representam as ações que aconteciam no local, ponto de partida para o espaço tripartido do cenário

Item estratégico de segurança nos centros urbanos, por amplificar a visão em portarias e garagens, um espelho convexo desponta no plano aéreo como uma tela de projeção. A primeira cena exibe trechos de filme em preto e branco que remontam às lutas guerrilheiras embrionárias no interior do país, nas décadas de 1940 e 1950, em paralelo aos processos de urbanização e organização das forças operárias e camponesas. O mesmo dispositivo é usado em diferentes momentos para captar imagens ao vivo, por vezes oculta, que contracenam como um terceiro olho daquilo que é visto.

Até aqui, temos um manancial. Como os criadores vão lidar com ele, sem chafurdar nessa vastidão de dados, é daqueles usufrutos alcançáveis pela maturidade. No caso, 34 anos de subversão às convenções da representação em favor da arte de empilhar linguagens e materiais com equilíbrio e caos equidistantes.

Espectadores brasileiros já assistiram a Os santos inocentes (2010) e a Discurso de um homem decente (2012), com os quais La despedida fecha a trilogia “Anatomia da Violência na Colômbia”. Esses trabalhos desciam às raízes culturais e políticas dos conflitos internos. O primeiro espetáculo parte de uma festa popular do interior colombiano na qual homens travestidos e mascarados açoitam outras pessoas com chicote, em plena luz do dia. No segundo, desmistifica-se o chefe do cartel de Medellín, Pablo Escobar, perseguido e morto pelas forças de segurança nacional com apoio dos Estados Unidos, em 1993. A parceria estratégica da guerra às drogas revelou-se um fracasso consensual diante do tráfico sistêmico.

Em La despedida a cartografia conflagra cenicamente a prática do terror e da guerra revolucionária como formas de combate ao capitalismo em nome da justiça social. O trabalho transcende a geografia de largada ao remontar a “ilustres visitantes” do imaginário geopolítico internacional por meio de máscaras museológicas. Na iconoclastia dessa investigação, seus bustos de mármore parecem flutuar feito sombras ou fantasmas de pensadores como Karl Marx (Alemanha) e líderes como Simón Bolívar (Venezuela), Mao Tse-Tung (China), Vladimir Lênin (Rússia), Fidel Castro (Cuba) e Camilo Torres (Colômbia, sacerdote católico pioneiro da Teologia da Libertação e membro do grupo guerrilheiro Exército de Libertação Nacional, ELN).

Na exposição dessa memória que concerne sobretudo ao século XX, o Mapa Teatro não faz patrulhamento ideológico à doutrina comunista do marxismo-leninismo. Antes, se acerca do pensamento do filósofo francês Paul Virilio, que, diante do aceleramento das sociedades, defendia uma visão “revelacionária” em vez de “revolucionária”. “Não se trata de acreditar no fim do mundo, no apocalipse, mas estamos diante de uma singularidade absoluta. Precisamos de uma visão ‘revelacionária’, e não mais revolucionária”, disse em entrevista ao jornal francês Libération, em 2010, conforme relata o jornalista Lucas Neves acerca de sua percepção da contemporaneidade.

Rolf Abderhalden

A atriz Agnes Brekke canta ‘Soy rebelde’, canção espanhola da década de 1970 indicativa da ironia antiespetacular

Pois a revelação é cirurgicamente costurada em La despedida. Às entranhas da história que aconteceu (o projeto emite a voz cavernosa de Fidel Castro em seu último discurso), costuram-se rearranjos ficcionais críticos, dialéticos e generosos na dose de ironia que desbasta qualquer circunspecção na abordagem política.

A gafe na premiação da Miss Universo 2015, em que o mestre de cerimônia troca o nome ao anunciar a vencedora (a candidata colombiana pela filipina) – “Esse é o momento da verdade”, prega o apresentador Steve Harvey antes da gafe – e os argumentos do presidente venezuelano Hugo Chávez para exumar o cadáver de Bolívar, desconfiado de que o revolucionário teria morrido por envenenamento, em 1830, são arquivos em vídeo muito bem empregados. A ironia antiespetacular tem seu auge na dublagem de Soy rebelde, canção espanhola de Manuel Alejandro e Ana Magdalena, cuja tradução da primeira estrofe diz: “Eu sou rebelde/ Porque o mundo quis assim/ Porque nunca me trataram com amor/ E as pessoas se fecharam para mim”).

Da performance dos senhores da guerra aos contrastes em seus ideários – o que a passagem do tempo permite observar com mais nitidez –, o espectador sai perplexo diante do tabuleiro deste século XXI. Os negócios da droga ilícita e do mercado financeiro justapõem-se de modo indelével na nova velha ordem mundial. Tão mais sem fronteiras quanto o rádio a válvula, a velocidade de conexão à internet e o radicalismo da arte do Mapa Teatro, no espírito e na forma.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do 5º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos (5 a 15/9). O espetáculo também foi apresentado no Sesc Pinheiros, em São Paulo, de 13 a 15/9).

.:. O site do grupo Mapa Teatro

Equipe de criação:

Conceito, dramaturgia e direção: Heidi Abderhalden e Rolf Abderhalden

Com: Agnes Brekke, Andrés Castañeda, Heidi Abderhalden, Julián Díaz, Miguel Alfonso Molina, Rolf Abderhalden e Santiago Sepúlveda

Música e desenho sonoro: Juan Ernesto Díaz

Desenho visual: Heidi Abderhalden e Rolf Abderhalden

Figurinos: Elizabeth Abderhalden

Regedor: Jose Ignacio Rincón e Javier Navarro

Direção técnica: Jean François Dubois

Desenho de cenografia: Pierre Henri Magnin

Desenho de luz: Jean François Dubois

Edição de vídeo: Luis Antonio Delgado e Ximena Vargas

Vídeo ao vivo: Ximena Vargas

Produção: José Ignacio Rincón, Ximena Vargas

Produção e difusão na Europa: Camille Barnaud e Les Indépendances

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados