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Crítica

Certidão de renascimento

21.3.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Nereu Jr/Foco in Cena

O caráter não espetacular de Partir com beleza (Finir en beauté, 2014) confere uma cumplicidade ambígua ao relato do francês de ascendência marroquina Mohamed El Khatib. Percebe-se a iminência de naufragar por causa da identificação emocional do público com a experiência familiar de doença e morte da mãe, atalho para sentimentalismo. Ao mesmo tempo, o solo desencadeia condições de navegabilidade documental livre de encaixes categóricos do que venha a ser teatro, performance ou demais filiações.

A ambição artística consagra coordenadas poéticas essenciais para decupar a carga dramática do roteiro. São cerca de onze meses de anotações e registros em áudio, foto e vídeo entre as fases de diagnóstico, o tratamento, a morte de Yamna Iouaj, em 20 de fevereiro de 2012, aos 61 anos, em consequência de câncer no fígado, e o enfrentamento do luto nas semanas posteriores junto ao pai e às quatro irmãs do ator, autor e diretor.

Em ‘Partir com beleza’, Mohamed El Khatib declina das convenções do desenho de luz e da cenografia, por exemplo, em nome de uma presença menos ostensiva. O rudimento é processado como virtude na condução desse material sensível

Trata-se de uma jornada dura por dias em hospitais, a tentativa de transplantar o órgão, a preparação do corpo no necrotério, a burocracia para o traslado da França, onde a família vive desde a década de 1970, e o Marrocos de suas raízes. A essa altura, o dado do seguro de repatriamento vem reafirmar o lugar de imigrante.

A despeito dos fatos narrados serem universais acerca da perda de qualquer ente, é por meio dos subtemas que a obra consegue fundar um campo de afeto sustentável. O humor, por exemplo, é um recurso insólito em ocasiões surpreendentes, como na hora das condolências.

Numa das passagens, dias após o enterro, pai e filhos receberam familiares e amigos condoídos para compartilhar uma sopa, como reza a tradição. Após alguns minutos vasculhando os armários e gavetas, eles ficam desesperados por não encontrar as tigelinhas para servir o povo que só iria embora depois de tomá-la. O ato de buscar as vasilhas significou destampar o choro coletivo, numa curva até o riso, quando descobriram que a matriarca costumava guardá-las dentro da própria terrina. “É sempre nas coisas que a tristeza se refugia”, escreveu o artista no diário em parte trazido à tona.

Vinculado ao Collectif Zirlib, da cidade de Orléans, El Khatib fala, lê, aciona o controle remoto para exibir trechos em vídeo, num televisor, e distribui uma folha com o atestado de óbito de Yamna, de número 288. No verso, a certidão de nascimento dele.

Nereu Jr/Foco in Cena

Em 2014, cerca de dois anos após a morte da mãe, Mohamed El Khatib estreou ‘Partir com beleza’, em que compartilha documentos como o óbito dela e o seu registro de nascimento

Chama a atenção sua capacidade instintiva de registrar e arquivar esses momentos íntimos. Caneta, câmara ou smartphone são catalisadores dos contextos, fisionomias e ambientes nos quais os interlocutores costumam estar à vontade, inclusive para lhe fazer objeções.

O atuante não está caracterizado em cena. Num primeiro momento, pode ser confundido como um dos espectadores. Até dirigir-se ao público sentado em semicírculo. Ele segura o olhar e se exprime com cadência, isento de ansiedade ao compartilhar a história dos seus – e que revela o quanto a formação em torno da arte e da sociologia também o afastou do mundo dos pais semianalfabetos e adaptados a outra cultura.

Entre a câmara fria da culpa e o círculo de apoio dos pares das artes do corpo, o filho se reconhece no legado humanista da mãe. Partir com beleza estende as mãos sobre as mãos de Yamna. Em alguma medida, foi a forma que o autor encontrou para reelaborar o luto, pois a “A morte estica, o luto estende”, como diz a também artista francesa Sophie Calle, citada, cujos trabalhos têm recorte autobiográfico.

Nereu Jr/Foco in Cena

Anotações em diário, registros em áudio, fotos e imagens compõem o roteiro do diagnóstico ao sepultamento em outro país e enfrentamento do luto no projeto artístico que não cai no sentimentalismo

Na medicina milenar chinesa, o fígado é dos órgãos mais suscetíveis. Em termos de energia, estaria conectado à vesícula biliar (postura e decisões), aos olhos (sentido da visão), ombros, joelhos, tendões (flexibilidades) e, no caso das mulheres, aos seios e ao aparelho reprodutor.

O trabalho de El Khatib produz algum tipo de energia equivalente em seu memorial sem floreios, através da arte e do encontro com a audiência. Ele declina das convenções do desenho de luz e da cenografia, por exemplo, em nome de uma presença menos ostensiva. O rudimento é processado como virtude na condução desse material sensível. Ornou, assim, com um dos salões da Casa do Povo onde aconteceram as sessões na MITsp, um centro cultural do bairro do Bom Retiro que “revisita e reinventa as noções de cultura, comunidade e memória”.

.:. Leia mais sobre ‘Partir com beleza’ no site da MITsp

Equipe de criação:

Texto, concepção e atuação: Mohamed El Khatib

Ambientação visual: Fred Hocké

Ambientação sonora: Nicolas Jorio

Produção/Distribuição: Martine Bellanza

Produção: Zirlib

Coprodução: Tandem Douai-Arras/Théâtre d’Arras,  Montévidéo – créations contemporaines (Marseille), Théâtre de Vanves, Centre Dramatique National Orléans/Loiret/Centre e Scène Nationale de Sète et du Bassin de Thau

Apoiado por Association Beaumarchais – SACD; Festival Actoral e Fonds de dotation Porosus

O texto foi escrito com o apoio do CnT e daAssociation Beaumarchais – SACD. Foi publicado na França pela Les Solitaires Intempestifs e pela L’L édition, na Bélgica.

Zirlib é apoiado pelo Ministère de la Culture (France) – DRAC Centre Val de Loire, Région Centre-Val de Loiree e ville d’Orléans, France.

Este espetáculo é apoiado pelo Institut Français Paris, pelo Institut Français du Brésil e pelo Consulado Geral da França em São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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