Crítica
28.4.2019 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Cacá Bernardes
Foi com uma linguagem inventiva e próxima ao ideário do teatro pós-dramático que o Magiluth conquistou seu espaço na cena teatral nacional. Criado no Recife, em 2004, o grupo investia em propostas de criação coletiva, valorizando a desconstrução do texto e uma interpretação muito mais próxima do performativo do que da representação propriamente dita.
Por diferentes motivos pode-se considerar Apenas o fim do mundo como obra que sinaliza maturidade. Para compor o espetáculo, o grupo pernambucano trouxe muito da experiência acumulada em seus 15 anos de existência: o jogo performático permanece a dar o tom e o espectador, figura sempre central em seu trabalho, funciona como aspecto motor – adentrando os limites da encenação e impregnando-lhe o ritmo.
Maturidade, contudo, não é apenas momento para o Magiluth depurar os recursos estéticos com os quais está habituado a lidar. Neste caso, revela-se também como um estágio propício ao risco, situação em que seus intérpretes e criadores se mostram não apenas dispostos, mas prontos, a experimentar uma linguagem que impõe novas dificuldades.
Seja quando aposta em obras de criação coletiva, seja quando adapta títulos de outros autores, o grupo do Recife mira questões e dinâmicas sociais. A problemática do presente penetra suas obras de maneira direta. Em ‘Apenas o fim do mundo’, marco dos 15 anos, recua-se em relação às questões públicas e adentra-se em um espaço de intimidade. A política, porém, atravessa também o território íntimo de Lagarce. O amor não existe apartado do mundo. O que, afinal, pode ser mais urgente do que a impossibilidade de se estar com o outro?
Escrita pelo francês Jean-Luc Lagarce, Apenas o fim do mundo conta a história de um filho que retorna à casa da família para anunciar sua morte próxima. A situação dá ensejo à composição de personagens de densidade psicológica – o que não ocorre nos textos de estrutura fragmentada com a qual lidam usualmente. Também abre flanco para exploração de uma prosa palavrosa, de delicada enunciação.
O teatro de Lagarce demanda atenção total à palavra escrita. Não há rubricas. Os solilóquios ocupam tanto ou mais espaço que os diálogos. O escritor constrói um fluxo que mistura memória, pensamento e fantasia – sem delimitar tempo ou lugar. Não por acaso, vale lembrar, a mais recente montagem de um texto de Lagarce entre nós, Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse, foi conduzida por Antunes Filho, diretor devoto das grandes obras da literatura – sejam elas dramáticas ou não.
Cenas de forte fisicalidade estiveram sempre no horizonte do grupo. Ao longo de sua trajetória, acompanhamos corpos que não estavam a serviço de uma ideia ou de uma história, mas que eram, antes disso, presenças, signos em si. Em suas montagens, os gestos dos intérpretes não comunicavam sentidos criados a priori. Antes, produziam esses sentidos na hora, em cena. A julgar por esse percurso, Apenas o fim do mundo – pela centralidade que a palavra escrita ali adquire – poderia soar como um território árido para o Magiluth. Mas a encenação proposta por Giovana Soar (também tradutora da peça) e Luiz Fernando Marques não lida com uma dicotomia entre o visual e o textual, entre a representação e a performance. Acerta ao operar fora dessa chave, encontrando em Lagarce uma teatralidade da língua, uma escrita que é, em si, performática.
A ausência de rubricas cria uma peça sem cenário e sem movimento. Fala-se a princípio em uma casa – a casa da família – mas que não é nunca mencionada em seus cômodos e limites. Trata-se de uma casa que é mais evocação do que um espaço objetivo. Dessa forma, toda a ação poderia transcorrer com os personagens imóveis ou em um único lugar. É como se o teatro estático de Tchekhov (em que os acontecimentos são substituídos por atmosferas) atingisse em Lagarce certo paroxismo.
Quase por oposição, o Magiluth troca a imobilidade pela movimentação constante e coloca o público para seguir os intérpretes em um cortejo cênico. Não se trata apenas de estreitar a cumplicidade com o espectador, mas de implicá-lo na obra. A percepção deixa de ter um sentido único, que vai do palco para a plateia; pulveriza-se. A fruição passa, necessariamente, pela experiência de tomar parte no mal-estar do protagonista e de sua família. Luis (Pedro Wagner) veio para contar da iminência de sua morte, mas partirá sem falar nada. Nós seguiremos as “estações” da sua via-crúcis, sem ter como fugir.
Seja quando aposta em obras de criação coletiva, como é o caso de Aquilo que o meu olhar guardou para você, seja quando adapta títulos de outros autores, como fez em Dinamarca, o grupo do Recife mira questões e dinâmicas sociais. A problemática do presente penetra suas obras de maneira direta. Em Apenas o fim do mundo, recua-se em relação às questões públicas e adentra-se em um espaço de intimidade. A política, porém, atravessa também o território íntimo de Lagarce. O amor não existe apartado do mundo. O que, afinal, pode ser mais urgente do que a impossibilidade de se estar com o outro?
Há outras leituras possíveis. A distância entre Luis e seu irmão Antônio, por exemplo, não deixa de ser também uma diferenciação de classe, de papel social. O primeiro é um artista, um escritor, já o segundo, operário de uma pequena fábrica de ferramentas. O homem das ideias surge em oposição ao homem de ação, o intelectual em contraste ao homem de povo. A montagem amplifica essa distância em uma cena em que um irmão trabalha, usando suas ferramentas, enquanto o outro, imóvel, apenas o observa. Espremidos em um corredor, os espectadores estão como Luis, inertes e encurralados, assistindo à raiva do irmão que foi abandonado. No grave momento atual, em que o Brasil acompanha o desmonte de suas políticas e instituições culturais, a sociedade também apenas mira, impassível. Sem sentir-se parte daquilo que cai por terra, não crê perder nada. Ou, antes, nutre raiva por esse pequeno grupo, que poderíamos enxergar como o irmão ausente que reclama o direito ao lar após tão longa ausência.
Algumas cenas do texto tiveram sua ordem alterada em prol do aproveitamento da arquitetura da sala de espetáculo, espaço multiuso do Sesc Avenida Paulista, localizada no 13ºandar do edifício. As passagens nas quais se reúne toda a família ocorrem em áreas coletivas e centrais – ambientadas pela direção como uma sala de estar e uma cozinha. Já os solilóquios da mãe e dos irmãos passam-se nas beiras, em cantos nos quais o público espreita como voyeur a dor alheia.
Mais extremada, a composição de Antônio (Mário Sergio Cabral) poderia soar excessivamente dramática não fosse o contraponto oferecido pelas figuras femininas. Vividas por homens, as personagens de Suzana (Bruno Parmera), Mãe (Erivaldo Oliveira) e Catarina (Giordano Castro) rompem com a possibilidade de plena identificação e introduzem uma oportuna camada de distanciamento. Sem optar por trejeitos ou recursos de imitação, suas interpretações são o melhor retrato da referida maturidade do grupo. Ainda de posse da ironia e da vivacidade que sempre caracterizaram o grupo, essas atuações não apagam a si mesmas para transmitir uma determinada mensagem. São elas mesmas geradoras de sentidos, capazes de mergulhar nas palavras de Lagarce e trazê-las vivas para a cena.
.:. Apenas o fim do mundo é o espetáculo participante do 28º Encontro com Espectadores, no dia 28/5, das 15h às 17h, no Itaú Cultural, com as presenças de Giordano Castro e Pedro Wagner. Mais informações, aqui.
Serviço:
Quando: Quinta a sábado, às 21h, e domingo, às 18h. Sessões extras nos dias 27/4 (sábado), 2/5 (quinta), 3/5 (sexta) e 4/5 (sábado). Até 5/5
Onde: Sesc Avenida Paulista – Arte II (13º andar)
Quanto: R$ 9 a R$ 30
Duração: 100 minutos
Equipe de criação:
Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques
Assistência de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean Juc-Lagarce
Com: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Estúdio Orra
Design gráfico: Guilherme Luigi Realização: Grupo Magiluth
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.