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Crítica

Espinhento e divertido, musical é cacto em flor

26.6.2019  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Priscila Prade

Árido e real é o território em que o dramaturgo pernambucano Newton Moreno colheu os fios com os quais tramou as asas das mulheres rebeladas na fábula As cangaceiras, guerreiras do sertão, dirigida por Sergio Módena. Nesse musical que subverte o papel do feminino no cangaço, o rigor da pesquisa documental constrói uma plataforma segura para que a ficção voe alto sem descuidar do arsenal pesado de contradições sociais e humanas envolvido no fenômeno do surgimento de agrupamentos nômades de sertanejos armados, em parte da região Nordeste do país, em fins do século XIX e início do XX.

Graças à investigação de origem, a dramaturgia escapa do risco nada incomum de romantizar o movimento e retratar homens à deriva em sociedade desigual como heróis ou, no extremo oposto, facínoras monstruosos. Engenhoso no entrelaçamento de traços trágicos e cômicos e pleno de invenções poéticas, o texto de Moreno, escrito ora em prosa, ora em versos, tem fragmentos musicados por Fernanda Maia, daí as canções estarem no núcleo da ação, em vez de serem mero apêndice ilustrativo. Assim, As cangaceiras não apenas se filia à melhor tradição do gênero musical, como faz avançar a experimentação em torno dessa linguagem nos palcos brasileiros.

Maia, também diretora musical, abarca com a trilha composta para o espetáculo uma ampla gama de ritmos e coloca em relevo a sofisticação de certa musicalidade forjada em torno de ecos ibéricos que há décadas ressoam e se atualizam no solo pisado do sertão nordestino. Coreografadas por Erica Rodrigues, as canções são interpretadas em solos, duos ou em conjunto por um elenco afinado de treze intérpretes e executadas ao vivo por seis instrumentistas.

Um musical pede doses bem medidas de densidade e diversão e a linha de fuga do viés trágico em ‘As cangaceiras, guerreiras do sertão’ virá pela revolta das mulheres, cujo efeito é atualizar o tema histórico evocando um empoderamento que é do tempo presente

Para além da sonoridade que preenche os espaços, a presença dos músicos é valorizada pela cenografia de Márcio Medina que, em parceria com a iluminação de Domingos Quintiliano, torna-os visíveis nas cenas de atmosfera mais expandida e velados nas mais íntimas. Cenário que, tenha ou não sido a intenção, remete aos cartuns do Henfil, não como reprodução imagética, mas no similar equilíbrio entre expressividade e economia de traços. A composição gráfica que constitui os elementos móveis propicia ao espectador associações com a vegetação esparsa do agreste nordestino.

Essa paisagem simbólica se expande ou se estreita para abrir espaço, ora para uma luta, ora para um momento íntimo de enamoramento, em cenas cuja linguagem poético-musical borda com cores vivas a complexa teia de relações sociais no ambiente dessa narrativa, que tem início no ano da morte de Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938). Não é mero acaso, mas escolha consciente dos criadores com consequências importantes para imprimir nuances ao desenho ficcional.

A opção por iniciar a fábula pouco depois da emboscada que em 28 de julho de 1938 matou Lampião, alcunha de Virgulino, cuja morte, para muitos historiadores brasileiros, é considerada o marco do fim do cangaço, permite ao dramaturgo traçar linhas cômicas para as figuras masculinas, sem fragilizar seu poder de opressão. Assim, os dois personagens de maior poder, Taturano (Marco França), o chefe do bando de cangaceiros, e o agente no comando da lei, o “volante” interpretado por Pedro Arrais, só podem almejar o posto de mito entre os seus pares porque não há mais o competidor por quem seriam derrotados, caso ousassem com ele medir forças. Nem por isso se tornam menos perigosos em sua perseguição desmedida de fama e poder.

Moreno, porém, sabe se valer da eficácia da arte para desvelar o ridículo no gesto de quem arrota valentia sem possuir os atributos dela. Um dos números musicais em que a atualização crítica se dá pelo viés cômico é a cena na qual Arrais, no papel do volante, interpreta o que se pode chamar de “canção do dinheiro” (Dinheiro é bom, dinheiro é gúdi/ Eu com dinheiro vou morar em roliúdi) um flagrante da ambição mesquinha oculta sob a capa da justiça. Até mesmo a manipulação da opinião pública via meios de comunicação é aspecto não negligenciado nesse musical, bastante cuidadoso na elaboração do panorama da precariedade que forja as disputas relacionais no sertão à época, sem perder de vista a leveza do gênero.

Priscila Prade
Elenco feminino de ‘As cangaceiras, guerreiras do sertão’: dramaturgia fabular em vez da reprodução factual do que foi o Cangaço em fins do século XIX e início do XX

O marco histórico que antecede a ação também é relevante para dar veracidade à participação feminina no bando de Taturano, afinal, de acordo com a jornalista Adriana Negreiros, autora do livro Maria Bonita – sexo, violência e mulheres no cangaço, um dos que compuseram a ampla bibliografia pesquisada pelos criadores do espetáculo, só a partir de 1930 há registro de mulheres no cangaço, portanto, na fase final do fenômeno. É nesse ano que Maria Gomes de Oliveira, conhecida como Maria de Déa e, mais tarde, Maria Bonita (1911-1938), passa a acompanhar o grupo de Lampião, e só a partir daí ele permite a presença feminina nos bandos.

Documentos escritos, depoimentos orais de sobreviventes e dos chamados coiteiros – uma gente quase sempre obrigada a acolher ora volantes, ora cangaceiros, sob pena de tortura e morte ou ainda de ver o estupro de mulheres e filhas – serviram de fonte de informação para o perfil das rebeladas no musical. Não é difícil atestar a veracidade dos relatos que falam da estreiteza de horizontes de sertanejas pobres, criadas sob a tutela de pais autoritários e passando dela para a de maridos igualmente opressores.

Assim, se muitas eram mesmo sequestradas, para algumas o imaginário do cangaço podia até representar liberdade e, para outras ainda, oportunidade de vingança após terem sido maltratadas por volantes. No espetáculo, importa o modo como a dramaturgia se aproveita do vasto material pesquisado para diferenciar as mulheres. A personagem Viúva (Luciana Lyra), impulsiva e violenta, entrou no bando por ódio aos volantes que dizimaram sua família, mas a experiência ampliou sua raiva e, na fábula, ela foge querendo vingança também contra cangaceiros. Já Zaroia (Carol Badra) é a menina vesga que, “sem talento para marido”, foi vendida pelo pai para o cangaceiro Promessinha (Milton Filho), desenhado na narrativa com homem menos bruto, que dela se encantou.

As distinções entre as personagens, expressas em gestos e entonações vocais na apropriação de visível comprometimento dos atuadores, contribui para humanizá-las, evitando os estereótipos. Num momento de descanso na fuga das mulheres do bando de Taturano, Zaroia conta como “tendo nascido dando salto, toda instruída de asa”, não cabia na casa paterna, onde nem rir não podia. Ao entrar para o bando passou a usar maquiagem, joias, perfumes e até a dançar. “Eu quis viver na lida até atinar que mulé no cangaço pode muito, só não pode ser livre”, diz ela. “Mulé num bando é para agrado nosso, enfeite de romanceado. Num pusemos fema para fazer seuviço de macho”, diz Taturano.

Priscila Prade
Carol Badra (Zaroia) e Milton Filho (Promessinha), enamorados improváveis na dramaturgia de Newton Moreno sob direção de Sergio Módena

Assim como o espetáculo traz para a abordagem cênica uma diversidade de motivos para as mulheres entrarem no bando, também elabora variações para cada uma delas tornar-se solidária à fuga iniciada por Serena (Amanda Costa), mulher de Taturano, no bem articulado encadeamento de ações da dramaturgia. Primeira a debandar, solitária e silenciosa, sem desejo de motim coletivo, foge já na cena de abertura, que tem contornos trágicos.

Tudo começa quando o cangaceiro Nonato (Eduardo Leão) toma um tiro em emboscada e, na sua agonia, confessa não ter seguido as ordens de Taturano para matar o filho recém-nascido de Serena. Em vez disso, entregara-o ao padre de uma paróquia relativamente distante, para onde ela decide imediatamente partir. Ressoa nessa cena a ação de Laio, rei de Tebas, que ordena a um criado a morte de Édipo recém-nascido. Como o herói grego, Taturano decide se livrar do bebê porque a “profecia” da rezadeira (Badu Morais) advertira que o rebento poderia ser o causador de sua morte. Porém, como Laio, não escapará de seu destino.

Um musical pede doses bem medidas de densidade e diversão e a linha de fuga do viés trágico virá pela revolta das mulheres, cujo efeito é atualizar o tema histórico evocando um empoderamento que é do tempo presente. Moreno se vale ainda da clássica dupla de enamorados para construir, em modo arte, a síntese de um debate em torno da justiça como princípio. A personagem Mocinha (Rebeca Jamir) desde sua primeira aparição em conversa com a mãe (Vera Zimmermann), em um diálogo de poesia rosiana, dá demonstrações de sua paixão juvenil por Namorado (Jessé Scarpellini).

Reza o drama que os enamorados têm de enfrentar obstáculos e Mocinha será sequestrada pelo cangaceiro Meia Lua (Marcelo Boffat), mas não para ser salva pelo príncipe. O reencontro dela com Namorado se dará em campo de batalha: ela rebelada, ele volante que se engajara no exército só para tentar resgatar sua amada. Agora estão em lados opostos. Ambos se deslocaram em busca de justiça.

Priscila Prade
Rebeca Jamir (Mocinha) e Jessé Scarpellini (Namorado): sertanejos subvertem a paixão juvenil em meio aos fragmentos do texto musicados por Fernanda Maia

Nas duas sessões acompanhadas, Mocinha foi aplaudida em cena aberta quando, depois de ter sido acusada pelo Namorado de estar do lado avesso da lei, retruca: “Isso num faiz muita diferença neste país, menino; para que serve lei?” Que uma frase dessas seja aplaudida é triste, para não dizer perigoso. Que haja razões para reconhecer sua veracidade, mais grave ainda. Mas a inteligência na tessitura dessa fábula está em tratar a ação do justiceiro como atalho perigoso que se oferece como desvio no caminho dos que lutam por um país justo.

Por último, mas não menos importante, enquanto sertanejos divididos pelejam em lutas de sangue, quem lucra com o fornecimento de armas e munições nem ao menos surge em cena. Moreno alerta para tal invisibilidade com a criação da personagem “fazendeira” (Carol Costa), mulher de um desses poderosos, que às escondidas se solidariza com a rebelião feminina. Fruto do trabalho de conjunto de criadores que há muito estão na lida teatral, As cangaceiras – guerreiras do sertão alia crítica social e entretenimento em bom equilíbrio. Quando isso se dá, a arte floresce.

Serviço:

Onde: Teatro do Sesi SP (Avenida Paulista, 1.313, tel. 11 3528-2000 (em frente à estação Trianon-Masp do Metrô)

Quando: quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até 4 de agostoQuanto: Grátis. Reservas antecipadas de ingressos pelo site do Sesi abertas todas as segundas-feiras, às 8h. Ingressos remanescentes serão distribuídos no dia da apresentação, 15 minutos antes na bilheteria do teatro

Agendamentos: ccfagendamentos@sesisp.org.br

Duração: 120 minutos

Classificação indicativa: 12 anos

Priscila Prade
Elenco masculino da produção do Sesi SP que avança a experimentação em torno da linguagem musical nos palcos brasileiros

Equipe de criação:

Dramaturgia: Newton Moreno

Direção: Sergio Módena

Com: Amanda Acosta, Marco França, Vera Zimmermann, Carol Badra, Luciana Lyra, Rebeca Jamir, Jessé Scarpellini, Marcelo Boffat, Milton Filho, Pedro Arrais, Carol Costa, Badu Morais e Eduardo Leão

Músicos: Pedro Macedo (contrabaixo), Clara Bastos (contrabaixo), Daniel Warschauer (acordeon), Dicinho Areias (acordeon), Leandro Nonato (violão), Abner Paul (bateria), Pedro Henning (bateria),  Roberta Regina (violoncelo) e Felipe Parisi (violoncelo)

Direção musical: Fernanda Maia

Canções originais: Fernanda Maia e Newton Moreno

Coreografia: Erica Rodrigues

Figurinos: Fabio Namatame

Cenário: Marcio Medina

Iluminação: Domingos Quintiliano

Produção: Rodrigo Velloni

Assistente de dramaturgia: Almir Martines

Diretora assistente: Lorena Morais

Pianista ensaiador e assistente de direção musical: Rafa Miranda

Designer gráfico e ilustrações: Ricardo Cammarota

Fotografia: Priscila Prade

Produção executiva: Swan Prado e Luana Fioli

Assistente de produção: Adriana Souza e Bruno Gonçalves

Gestão financeira: Vanessa Velloni

Administração: Velloni Produções Artísticas

Realização: Sesi SP


Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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