Crítica
11.7.2019 | por Valmir Santos
Foto de capa: João Cordioli/FIT Rio Preto
No final da peça Eles não usam black-tie (1958), Romana, a mãe, chora e separa feijões sobre a mesa. O filho acabou de deixar a casa. O pai é líder operário, foi preso algumas vezes por defender os direitos de sua classe e articula mais uma greve. Empregado na mesma fábrica, o primogênito fura o movimento com medo do futuro. A namorada engravidou, o casamento vem aí. Pai e filho rompem ideológica e moralmente. A ação se passa num morro carioca dos anos 1950. Finalmente a condição dos trabalhadores é posta em relevo na dramaturgia brasileira por meio da peça de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006).
Corta para Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã. Um menino negro de 12 anos narra sua jornada “pelo mundo” na tentativa de escapar da intolerância de um policial em seu encalço. Na perseguição que perdura quase todo o texto, o militar atira dezenas de vezes, decompondo o corpo dele enquanto a mente voa longe na capacidade de invenção. A fábula-denúncia de Jhonny Salaberg dança por entre a engenhosa construção do imaginário e um apurado senso de observação da “realidade sólida”, segundo o narrador.
Se Dalí derreteu os ponteiros, Johnny Salaberg os engole para cuspir a realidade com a concreção e o sonho ocupando-se um do outro em ‘Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã’, direção de Naruna Costa e com o coletivo Carcaça de Poéticas Negras
Mire-se na relação dele com a mãe – todos os personagens são inominados. Ela manda o filho comprar pão na padaria no primeiro dia de ano, dito da Confraternização Universal. Mesmo abduzido pela sequência de realismo trágico-mágico, ele vai reportar o tempo inteiro a essa mulher cultuadora de ancestralidade, inclusive na lida cotidiana, como varrer o quintal, pintar as unhas ou escolher feijão na pia da cozinha para depois apurar a panela de pressão no fogo.
O feijão como fome de justiça há 60 anos, no Teatro de Arena, e a panela de pressão como reflexo da voz negra expressada desde o espaço da periferia e cada vez mais veemente, conforme o espetáculo do coletivo Carcaça de Poéticas Negras (SP), é uma aproximação indicativa do quanto a dramaturgia brasileira tornou-se formalmente mais complexa e sofisticada. Um relevante segmento dela responde à altura da gravidade dos problemas brasileiros e da respectiva margem de inventividade para enfrentá-los.
A sustentação artística combina os talentos literário e dramático de Salaberg, de 23 anos, num dos seus primeiros textos para teatro (consolidado aos 21 anos), e a direção da atriz e cantora Naruna Costa, também ela debutando profissionalmente na função, tendo assinado direção musical no Grupo Clariô de Teatro, ativo em Taboão da Serra (SP), desde 2002, e do qual é cofundadora. Nota-se a noção de arte de resistência conspirando para esse encontro singular afeito à negritude.
Na encenação, a voz tripartida do narrador pressupõe em cena a coletividade da juventude historicamente alvo das forças de segurança. Relatos de ocorrências racistas envolvendo os atores Ailton Barros, Clayton Nascimento e o próprio Salaberg, todos negros – assim como a diretora –, são incorporados com qualidade ao imaginário radical da dramaturgia.
O tecido social-histórico extratexto estende-se ainda à lembrança de vítimas da violência urbana, como o menino de 14 anos atingido com um tiro no tronco no caminho entre casa e escola, no Complexo da Maré (RJ), em junho de 2018. A mãe ainda o encontrou com vida no hospital e ouviu dele que o disparo veio do blindado. “Mãe, eles não viram que eu estava de uniforme?”, perguntou o adolescente.
O que já é nefasto na travessia épica do narrado soa orgânico nesses desvios ao real. Por outro lado, Naruna obtém dos atores uma movimentação equalizada pelo espaço cênico. Em certos instantes eles tangenciam a figura do Arlequim às avessas, com o acento tragicômico, há anos-luz da ingenuidade e estupidez características desse arquétipo da Commedia dell’Arte. Os olhares são de atenção permanente. O desempenho físico do trio é mais consistente que o vocal. Barros e Salaberg têm limites na enunciação, dificultando a escuta quando superpostas ao dinamismo da ação corporal. Já Nascimento pratica uma performance vigorosa da palavra, especialmente no depoimento sobre como levou chaves de braço, até perder a consciência, de brutamontes que o acusaram de assalto em ponto de ônibus da Avenida Paulista, outra síntese chocante de crime racista impune.
Sob acompanhamento de dois músicos ao vivo (Erica Navarro e Giovani Di Ganzá), multi-instrumentistas em perfeita sintonia com os tempos de fala (a paisagem sonora é como a quarta voz), a direção delineia a força umbilical entre mãe e filho, por um lado, e a dissolução desse laço, aos poucos, por outro, sob o ritmo da série de balas. A desumanidade traduzida nos números de tiros que perfuram os órgãos desse “pequeno corpo negro ambicioso, que corre com uma sacola de pães nas mãos” na tentativa, vã, de se salvar.
Buraquinhos é transpassada também pela condição da família marcada pela ausência do pai. Há na inteligência refinada do menino de Salaberg um eco retumbante de quem, logo cedo, descobriu na leitura e na literatura um porto seguro diante dos vendavais da vida (em tempo: picumã designa fuligem ou, na gíria da diversidade sexual e de gênero, cabelo). Pois na era da selfie o autor comove ao retratar a comunidade do seu bairro de infância e atual, Guaianases, na zona leste de São Paulo. Um olhar ao redor por meio do qual enxerga a beleza dos pequenos gestos. Essa territorialidade lírica e lúdica, na contramão do estado policial sanguinário, vem representada nas pipas, nos tênis dependurados na fiação dos postes, nos brinquedos de playground, nos vãos da cenografia concebida por Eliseu Weide.
Ampliando a acepção geográfica, a simbiose tempo-espaço revela-se extraordinária. De como correr da polícia desde o extremo leste da cidade carregando uma sacola com pães que saltam dela em meio a um punhado de terra, outro de céu, mais rim e pulmão. De como equilibrar-se sobre a fiação, pisar nas nuvens e pousar por entre as montanhas de La Paz, as lápides de um cemitério de Lima, o barraco de uma família da favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, entreouvindo o espanhol e o crioulo nessas localidades. Na capital do Haiti, uma senhora vai costurar os buracos de bala no corpo do menino e esquecer o relógio de pulso dela dentro da barriga dele. Se Dalí derreteu os ponteiros, Salaberg os engole para cuspir a realidade com a concreção e o sonho ocupando-se um do outro.
.:. Texto originalmente escrito para o segmento Olhares Críticos do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. O jornalista viajou a convite da organização.
Serviço:
Onde: Itaú Cultural – piso 2 (Avenida Paulista, 149, próximo à estação Metrô Brigadeiro, tel. 11 2168-1777)
Quando: terça a sexta, às 19h. Até 12/7
Quanto: grátis (ingressos distribuídos uma hora antes do espetáculo)
Duração aproximada: 90 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Com interpretação em Libras
70 lugares
Equipe de criação:
Idealização, coordenação e dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Naruna Costa
Com: Ailton Barros, Clayton Nascimento e Jhonny Salaberg
Instrumentistas: Erica Navarro e Giovani Di Ganzá
Preparação corporal: Tarina Quelho
Direção musical: Giovani Di Ganzá
Cenografia e figurinos: Eliseu Weide
Assistência de cenografia e figurinos: Carolina Emídio
Criação de luz: Danielle Meireles
Operação de luz: Danielle Meireles e Thays do Valle
Artista gráfico: Murilo Thaveira
Fotos: Alessandra Nohvais e João Luiz Silva
Vídeos: Lucas Cândido e David Costa
Produção: Bia Fonseca e Iza Marie
Contrarregragem: Douglas Vendramini e Patrick Carvalho
Realização: Carcaça de Poéticas Negras
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.