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Crítica

A estranha entranha de ‘Pornoteobrasil’

25.8.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Jennifer Glass

Entender para imaginar, imaginar para entender. É defronte esse espelho que o Tablado de Arruar tem se postado nos últimos sete e tempestivos anos dentre os seus 18 de atividade teatral em São Paulo. Dar forma ao material extraído da realidade premente, mediado pela sala de ensaio, consumou uma poética da razão antipoética na cena do grupo. As delimitações temporal, temática e historicizante das obras recentes tocam em questões éticas, sociais, políticas e culturais sintomáticas de como o anacronismo ganhava corpo na sociedade a poucos meses das manifestações de junho de 2013, o novo ano que não acabou.

Sem a depuração dos processos históricos que a distância confere ao examinador, o Tablado conjecturou tecendo, sobretudo, os fatos em curso. Uma sequência de seis espetáculos denotou, em alguma medida, o cipoal das discórdias ideológicas, religiosas e de classe. Mateus 10 (2012) prognosticou a ascensão de uma teocracia; a Trilogia da Abnegação (2014-2016) tocou as feridas das contradições do governo autodeclarado de esquerda, entre 2014 e 2016; Refúgio (produção exterior ao grupo, mas agregadora de parte de seus integrantes) levou o público a sentir a opressão apertar o peito, em 2018, ficcionalização que já tangenciava o cenário terrificante que Pornoteobrasil (2019), por fim, constata e atrita nestes dias.

O espetáculo mais recente do grupo Tablado de Arruar perpetra um grau de afasia que o engolfa. Dramaturgia e direção como que anulam suas propensões à criticidade e ao jogo de forças que enuncia

Abnegação, Abnegação II – O começo do fim e Abnegação III – Restos pontuaram episódios do passado do Partido dos Trabalhadores, precipitados sob os governos Lula e Dilma (2003-2016). A trilogia teve seu desfecho próximo do apeamento jurídico-parlamentar da legenda do poder com o impeachment de agosto de 2016. Por sua vez, o negócio da fé em Mateus 10, a fenda aberta no chão em Refúgio (produzido sob o tampão Temer) e a perplexidade instalada em Pornoteobrasil, estreada às vésperas do Carnaval e na esteira dos primeiros atos, omissões e incontinências verbais do presidente da República, essas três peças podem ser alinhavadas como indícios e contrações ao primeiro governo de cunho militar após a ditadura (1964-1985). Ou seja, a crise de consciência do sujeito galga à consciência de parte da sociedade que despertou demônios adormecidos.

Cúmulo da estética desencantatória na dramaturgia de Alexandre Dal Farra, Pornoteobrasil tenta verter em linguagem o país colapsado, mas cuja resultante é a impotência dos criadores em elaborar o instantâneo dessa democracia – tão jovem quanto eles. Afinal, a esmagadora maioria desse povo é explorada desde a colonização/escravidão, sacrificada pela eterna concentração de renda. Conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses comuns, interligados por memórias e tradições. Porém, pertencer às ancestralidades indígena e negra significa estar permanentemente na alça de mira.

Jennifer Glass Elenco de “Pornoteobrasil”, espetáculo de 2019 que fez temporadas na Oficina Cultural Oswald de Andrade e no Teatro Cacilda Becker

O texto abre em tom de parábola, sob sonoridade sombria, que aproxima Cristo de Lula (“Eu sou uma ideia”), o povo hebreu do povo brasileiro, por analogia, entrelaçando as falas de um pastor evangélico, um rabino e do ex-presidente. Trata-se, precisamente, da véspera e do dia em que o político entregou-se à Polícia Federal, tendo participado, no dia anterior, de culto ecumênico em cima de um carro de som em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo.

Segundo se narra, na cultura judaica Moisés vaga pelo deserto com seus seguidores por quarenta anos a fio, a caminho da Terra Prometida. Mas o profeta morre e, órfãos, os hebreus encontram-se à beira do rio Jordão. Na margem de lá fica a terra santa bíblica, porém ainda será preciso conquistá-la. “O que os espera, agora, não é mais o marasmo repetitivo do deserto, a fome constante, a necessidade de paciência para vencer o cansaço. O que os espera é outra coisa”, diz a atuante Alexandra Tavares, foco sobre ela. Quando a luz dissolve o breu atrás de si, desponta o cenário de desmonte: baldes plásticos brancos, típicos para conserva, surgem esparramados entre escada, manta aluminizada, caixa térmica com cervejas, uma tábua, cavaletes, etc.

A peregrinação do povo hebreu no deserto remete a Pier Paolo Pasolini (1922-1975), para quem a passagem acerca da peregrinação do povo hebreu no deserto tem a ver com o fato de eles entrarem em contato com o uno. “Para ele, a unidade não veio de dentro. Ela veio de fora. Ela foi internalizada”, diz o texto que remete ao livro e ao filme Teorema, obra-prima do cineasta italiano sobre a qual Dal Farra se debruçara anteriormente em parceria com o Grupo XIX de Teatro e resultou no espetáculo Teorema 21 (2016). Aliás, o Tablado informa que o título de sua peça vem de um roteiro para longa-metragem nunca realizado por Pasolini, Porno-teo-kolossal. Escrito entre os anos 1960 e 1970, o texto, de acordo com a pesquisadora Priscila Corilow, mistura anacronicamente a narrativa do nascimento do Messias com o fundo social e histórico contemporâneo e futurista, parecendo “se constituir como paródia de dois gêneros estabelecidos: o Evangelho e a Utopia”.

Quando evoca a obra e o pensamento de Pasolini, o grupo nos lembra, indiretamente, de como esse artista cresceu sob o fascismo na Itália de Mussolini, leia-se ascensão da extrema-direita, e depois sob o eco do nazismo na Alemanha de Hitler. A premissa é a de que o Estado brasileiro está sob efeitos correlatos daqueles sistemas opressores.

Os dois movimentos seguintes de Pornoteobrasil vão entranhar a atualidade nas perversões da memória e da política, conectadas a aspectos da sexualidade e da escatologia. Em Restos, as cinco figuras tratadas pelos mesmos nomes dos atores e atrizes deitam falas espasmódicas, emitem falhas de nome, de lugar, de data e de coerências nos discursos. Não sei, não lembro: chafurdam em fragmentos esparsos que, na recepção do público, é possível reconhecer alusões a acontecimentos, movimentos sociais e personalidades: a morte de Tancredo Neves, o assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto por militares durante manifestação estudantil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Passe Livre, o poeta Ferreira Gullar, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, e assim por diante.

Jennifer Glass Alexandra Tavares e Gabriela Elias na cena final do espetáculo em análise, na esteira da Trilogia da Abnegação e de ‘Refúgio’

Dos atos falhados da juventude em grande parte desconhecedora do que foram ou significaram os 21 anos de ditadura civil-militar no país – porque a sociedade tampouco se permite minimamente aprender sobre o passado, o trauma de memória que lhe permitiria saltar ao futuro e amortizar a pulsão de morte sedimentada nas suas forças de segurança –, a cena seguinte, Jantar, formaliza o estado anômalo no qual estamos metidos. É aqui que a vacuidade se escancara com a alienação das três mulheres e dois homens ao redor de uma mesa. Mostram-se postiços nas expressões, atitudes, perucas e presenças. Alguns com fone de ouvido, berram, regurgitam, explodem as latas de cerveja e excedem em decibéis. A impossibilidade de amplificar a comunicação soa hiperbolizada no grito, enterrando de vez o intento de uma voz no movimento anterior que insistia no pacto de silêncio como possibilidade de espreitar alguma saída para o estado de coisas.

Nesse sentido, o texto lança mão de vinhetas que sugerem a recusa de identificação dramática da perspectiva dos espectadores. Nessas vinhetas, uma das atrizes vai até a boca de cena, abre a “janela” para um trecho de As três irmãs, de Tchekhov, sob música de fundo, insinuando porvir, mas logo é puxada de volta para o fluxo do impasse.

O quarto movimento reata a introspecção da cena inaugural. Alexandra agora dialoga (sim, por fim um diálogo) com Gabriela Elias, conformando um desvio crepuscular. Há um velório em curso e o desejo, inconfesso numa, explícito noutra, de mudança para outro lugar, subentendendo fuga da realidade. Antes, porém, aquela precisa registrar uma última foto da defunta, não nomeada. Intuímos tratar-se da democracia, essa jovem senhora brasileira que, como algumas das congêneres anciãs de países do G-7, estão sendo executadas em praça pública.

A esse retrato de múltiplas falências institucionais do capitalismo à brasileira, em que direitos sociais são estraçalhados e a Constituição de 1988 é violentada em suas bases cidadãs as mais elementares, e sob dogmas teocráticos, Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano concebem uma encenação despida de potência poética para atravessar o mal-estar, a indigestão, o horror.

O espetáculo perpetra um grau de afasia que o engolfa. Dramaturgia e direção como que anulam suas propensões à criticidade e ao jogo de forças que enuncia. Quando se vê de soslaio um resquício de humor à maneira do cinema de Almodóvar, o atalho logo é abortado. Sobressai a perda de captação, talvez involuntária, pois o motor desse projeto consiste em causar espanto com a disseminação do elogio da ignorância em escala global. A experiência artística convida à cognição com seu portal de ideias e se revela avara na capacidade de construir relação com o interlocutor. Ressente-se, portanto, dos ruídos antagonizadores que aponta.

Fundado em 2001, o Tablado de Arruar dedicou seus primeiros seis anos à linguagem do teatro de rua, desenvolvendo senso apurado do real. Performar em palcos ou salas multiúso passou a ser um preceito. “Pornoteobrasil” escrutina a atual quadra do país de modo cirúrgico, excedendo-se, talvez, na antecipação da autópsia quando o pulso ainda dá sinais.

Por mais que o pensamento artístico do grupo se traduza numa escrita inquieta e vibrante, bem como em atuações sólidas (que sublinham a inteligência em cada gesto ou palavra, inclusive os ignóbeis), paira a ambiguidade do entranhamento que não transcende a penetração das entranhas.

Recordemos da verve publicitária do poeta português. “Primeiro, estranha-se, depois entranha-se.” Biógrafos constataram que foi esse o slogan que Fernando Pessoa fez entre 1927 e 1928 por ocasião da chegada da Coca-Cola a Portugal. Mas o regime fascista e paranoico de António Salazar viu na frase evidência da ligação da bebida com a cocaína. “Na versão mais efervescente da história, o estoque do refrigerante que já estava em Lisboa foi apreendido e jogado no mar”, conta a revista “Superinteressante”. O então diretor de saúde de Lisboa argumentou que o produto continha derivado da droga e a expressão concisa do poeta atestava que o referido era tóxico e causava dependência. Afinal, ficaria entranhado no corpo. O fato é que a marca só entrou em Portugal em 1977, nove anos após a morte do ditador e três após o fim do regime.

“Pornoteobrasil” estranha, entranha, mas sua acidez não transcende os movimentos perturbadores. Subjaz a sensação de incompletude quando processamos a experiência compartilhada. Por outro lado, quem sabe, pode ser o efeito desses tempos abismais.

Jennifer Glass Ligia Oliveira e Gabriela Elias

Equipe de criação:

Texto: Alexandre Dal Farra

Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra

Com: André Capuano, Alexandra Tavares, Clayton Mariano, Gabriela Elias e Ligia Oliveira

Cenário e figurinos: Simone Mina

Música: Miguel Caldas

Direção de produção: Tablado de Arruar e Palipalan

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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