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Crítica

Barracão dá a ver usurpação do chapéu pela coroa

7.11.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Paulo Amaral/FC

A mensuração do tempo na experiência do teatro vive pregando peças. O calendário gregoriano tanto pode operar a favor como atravancar o caminho de um espetáculo. Fatos avassaladores muitas vezes concorrem com episódios ficcionais. Basta lembrar de criações que estrearam antes ou pouco após 2013, quando o Brasil urbano foi ocupado por protestos difusos. As Jornadas de Junho provocaram ressignificações para o bem e para o mal. Daqui de 2019, não é difícil constatar as deformações moral e institucional, na esfera do país; ou de caráter, levando-se em conta os ódios profundos arrancados dos armários do brasileiro mais abjeto. No caso de Zabobrim, o rei vagabundo, de 2015, a apresentação no contexto do Festivale, em São José dos Campos, comprovou o quanto a obra de quatro anos atrás é atualizada em tópicos e lampejos, por mais que a disputa com a realidade tenha se tornado cada vez mais acirrada, às vezes por um nariz. O grupo campineiro Barracão Teatro, diga-se, jamais deixou de roçá-la em 21 anos de estrada.

Basilares no repertório da diretora Tiche Vianna e do ator Esio Magalhães, cofundadores, as máscaras da commedia dell’arte (medievais) ou do palhaço (contemporâneas e clássicas), devidamente abrasileiradas, avançam com diligência rumo a uma dramaturgia cômica de circo-teatro. Esse balaio perfeito para quem também investiga a linguagem da bufonaria vem revestido de pensamento crítico e adquire tons ainda mais provocadores ante a repulsa da atual gestão cívico-militar do governo federal a tudo que emana conhecimento. Educação, arte, cultura, direitos humanos, ambiente, ciência e tecnologia: nada se move sem a sede da curiosidade pela razão, pelo afeto, pela experiência.

Embasbacado com o admirável mundo novo, o homem que conheceu a fome e a condição inumana dos despossuídos no espetáculo do Barracão Teatro perceberá que certos códigos dos nascidos em berços esplendidos são tão violentos quanto

Em Zabobrim, o rei vagabundo o trabalho de ator e a criação do texto (por Tiche e Magalhães) extraem do registro grosso e dos baixos instintos um panorama da ambição humana desmedida. O Barracão chama o espectador e a espectadora a sintonizarem percepções a partir das artimanhas expostas. A degeneração de figuras de poder carimbadas e seus séquitos decanta, inversamente, uma sensibilização por meio das tramas palacianas ou vazadas para a via pública. Afinal, no país colonizado a desigualdade insiste em ser estruturante. Se o cronista João do Rio, por exemplo, capturou A alma encantadora das ruas ao interpretar a vida em sociedade no Rio de Janeiro do início do século XX, o espetáculo medeia a calçada do homem em situação de rua e o castelo do chefe de Estado investido de realeza.

As transições de espaço mesclam-se às trocas de máscaras por um mesmo atuante, zás-trás, nos momentos em que vai até a coxia. Ou no deslizar dos telões cenográficos que emolduram tanto a paisagem urbana, com as fachadas dos comércios e dos edifícios, como a mansão suntuosa que parodia a arquitetura medieval dos contos de fadas.

Paulo Amaral/FCCR A máscara é recurso para expor a deformação das classes privilegiadas em ‘Zabobrim, o rei vagabundo’, do grupo Barracão Teatro, que participou do 34º Festivale

Zabobrim é como foi batizado, conforme se diz no universo do picadeiro, o palhaço criado por Magalhães no início da carreira, de sobrenome Macambira Birabora Borge Júnior de Alencar. Ele é impedido de pernoitar em frente da Padaria Real, nome fantasia instigador na sucessão de acontecimentos forrada de dialética. O dono tem ojeriza a pobre e manda instalar uma traquitana antimendigo. As estratégias para invisibilizar o outro são patentes. Uma das funcionárias do estabelecimento, porém, pensa e age de maneira diferente. Sempre descola alguma iguaria e a mete num saco de papel deixado ao lado de uma lata de lixo, ponto de encontro do “vagabundo da noite” quando quer matar a fome. É nesse espaço de configuração aparentemente aberta – com brecha para ser lido também como beco, labirinto ou masmorra – que a fabulação transcorre confrontada à paleta dos contextos sociopolíticos e da luta de classes.

Catador de lixo, o protagonista garimpa uma lâmpada mágica que é confundida pelos seus detratores com uma arma. Acuado por homens que tentam criminalizá-lo e expulsá-lo do pedaço, Zabobrim esfrega o objeto e deste sai um gênio, referência ao secular conto de origem árabe abduzido pela indústria audiovisual. Contrariando o substantivo sobrecomum – morfologicamente a palavra gênio não contrasta o gênero –, é uma drag queen quem lhe traz a boa-nova, atuada por Kara Ariza. Ela adentra o palco impetuosa, vestido preto cintilante, salto alto, peruca loira esvoaçante. A personalidade forte não fica atrás do gênio de Aladdim. Desperdiçados os dois primeiros pedidos, o palhaço capricha no derradeiro e reivindica a condição de rei, para desgosto da criatura montada que, mesmo assim, o atende.

A narrativa, então, viaja ao passado, precisamente aos estertores de um regime monárquico em que os soberanos andam com a cabeça a prêmio. Embasbacado com o admirável mundo novo, o homem que conheceu a fome e a condição inumana dos despossuídos perceberá que certos códigos dos nascidos em berços esplendidos são tão violentos quanto. No espetáculo, plebeus, sejam eles civis ou militares, ou ainda os empregados do comércio acabam submetidos às ordens de superiores em desdobramentos do concreto e do onírico.

Paulo Amaral/FCCR Kara Ariza é atriz e drag queen convidada especial que faz as vezes de gênio da lampada na contracenação com a máscara do palhaço de Esio Magalhães, Zabobrim

Essa introdução não chega aos pés do volume de reviravoltas que virão. Os sete artistas em cena quebram constantemente o fio da história e criam pontes diretas com o público. O embarque nesse jogo de dentro e de fora é orquestrado pelo Zabobrim de Magalhães, comediante azeitado na arte de interagir. Sua elasticidade física é proporcional aos contorcionismos morais dos algozes. As guinadas do roteiro não corrompem seu caráter, seja cobrindo a cabeça com um chapéu ou com uma coroa. Mas o grau de usurpação de um estado por outro é ilustrativo da face imoderada da natureza humana. Ou da natureza do capitalismo na conservação da distância cada vez maior entre a riqueza e a pobreza.

A primeira vez que assisti a uma atuação de Zabobrim foi no solo WWW para Freedom (2004), no final da década passada. No enredo, o palhaço é enviado à guerra e, no campo de batalha, questiona-se acerca das razões bélicas por detrás dos conflitos, ainda que estivesse ali para libertar o povo do jugo de um ditador. A capacidade de rir para falar de coisas sérias incluía o suicídio do soldado parceiro que não suportou tamanho pesadelo. E o Zabobrim da vez, que ascende da porta da padaria para o trono com o qual jamais sonhara, cruza com um destino não menos trágico. Em ambas as peças subjazem a consciência da injustiça apesar do humorismo desbragado.

Para além da máscara do palhaço, em criações como Encruzilhados entre a barbárie e o sonho (2007) e Diário baldio (2010), Magalhães mergulhou no estudo e na prática cômica em suas liminaridades dramáticas e trágicas. Particularmente em Diário baldio, a concepção de Cotoco é franqueada à galeria dos personagens mais arrojados do teatro brasileiro nos primeiros anos deste século XXI. Magalhães transcende a persona da palhaçaria sem abandoná-la de todo em ações corporais do homem deficiente físico, corcunda, sem os membros inferiores e com dificuldades de articulação nas mãos. Arrasta-se pelo chão ou recorre a um skate para circular no asfalto do centro nervoso da cidade. Nessa obra acerca de quem vive nas bordas a pesquisa do bufão convive com situações e caracterizações absurdas da travesti Lady (atuação de Gabriel Bodstein), antessala da performatividade de Kara Ariza.

A eloquência dos temas de Zabobrim, o rei vagabundo, com brecha para tratar da própria arte do teatro, foi arrefecida em alguns momentos pela enunciação. Não se sabe se por causa do uso de meias-máscaras, naquela noite certas falas soavam como que abafadas, não projetavam sobre parte da plateia do Teatro Municipal. Mesmo assim, em sua extraordinária capacidade de urdir mundos, papéis e ideologias tão díspares, o espetáculo sobre os delírios de um palhaço/mendigo/rei autodeclarado primitivo, cujo melhor amigo é um rato, ainda conseguiu sacudir os neurônios da audiência com uma palavra grega, a sofrósina (“sōphrosúnē”), que significa regozijar-se de uma grande ideia que só a temperança renderia. Nada mal para tanta deformidade d’alma e sua igual disposição para rir de si e questionar-se.

Paulo Amaral/FCCR Máscaras da commedia dell’arte (medievais) ou do palhaço (contemporâneas e clássicas), devidamente abrasileiradas, avançam com diligência ao circo-teatro

Na conversa com o público após a sessão, a diretora Tiche Vianna comentou a respeito da máscara do travestimento da drag queen em contraponto às máscaras arquetípicas da commedia dell’arte, além da do palhaço. Relatou que Zabobrim, o rei vagabundo encerra um ciclo de perguntas artísticas e filosóficas que ela prospectava desde 1991, quanto aos limites e deslimites da fusão de máscaras ao participar do espetáculo Uma rapsódia de personagens extravagantes, sob direção de Cristiane Paoli-Quito e com a companhia que ambas fundaram à época, a Trupe de Atmosfera Nômade.

Para tanto, reconhece o quão foi realimentador o recente intercâmbio com o repertório do Circo de Teatro Tubinho, em atividade no interior paulista desde 2001 e dirigido por Pereira França Neto, o palhaço Tubinho, artista de ascendência familiar circense remontada a 1918. E assim o Barracão foi ao circo-teatro para encontrar seu próprio modo de proceder sob a alegria e a angústia da influência dessa tradição.

Em tempo: na apresentação em São José dos Campos, Tiche Vianna substituiu uma atriz grávida e voltou a atuar após 16 anos afastada das praças e tablados em função de um acidente automobilístico.

.:. Escrito no contexto do 34º Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, em São José dos Campos (28 de agosto a 8 de setembro de 2019).

.:. O jornalista viajou a convite da organização do evento.

.:. Visite o site do grupo Barracão Teatro, de Campinas.

Paulo Amaral/FCCR Cintia Birocchi e Esio Magalhlães

Equipe de criação:

Dramaturgia: Esio Magalhães e Tiche Vianna

Direção: Tiche Vianna

Com: Cadu Ramos, Cintia Birocchi, Esio Magalhães, Fernando Fubá, Raíssa Guimarães, Tiche Vianna e Ulisses Junior.

Atriz convidada: Kara Ariza

Execução de música ao vivo: Marcelo Onofri e Henrique Cantalogo

Composição e direção Musical: Marcelo Onofri

Figurinos: Antonio Apolinário

Concepção cenográfica: Esio Magalhães e Tiche Vianna

Execução cenográfica: Vittor Akkas

Máscaras: André Marcelino e Esio Magalhães

Iluminação: Eduardo Brasil

Produção executiva: Cau Vianna

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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