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Crítica

TUOV encena lapso e memória

1.2.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Graciela Rodriguez

Em seu espetáculo mais recente, Bom Retiro meu amor – ópera samba, o Teatro União e Olho Vivo fornece respostas poéticas a questões que outros grupos ou companhias também se fizeram ao assumir uma prática artística de ambição popular. Uma passagem pode ilustrar o nível de inquietude movida décadas atrás. No 1º Seminário de Teatro Independente que ajudou a realizar em São Paulo, em 1976, na Fundação Getúlio Vargas, constavam as seguintes provocações:

– O teatro popular feito para um público não popular continua sendo popular?

– Em sua opinião, é possível existir um conteúdo popular numa forma burguesa, ou vice-versa?

– Considera compatíveis qualidade artística e facilidade de entendimento por uma plateia popular?

Lidos hoje, esses enunciados podem até soar anacrônicos. Contudo, é impossível visitar qualquer obra do repertório sem considerar a perspectiva histórica, especialmente a travessia do período da ditadura civil-militar até 1985.

Feito um cortejo, mas sem que espectadores se desloquem, o musical ‘Bom Retiro meu amor – ópera samba’ faz do corredor de duas plateias um microcosmo da realidade brasileira a partir dos problemas sociais do lugar e das peças que o TUOV habita. A expressão popular e o espírito amador culminam no drama do lapso: seja no erro do país que hoje vê parte de sua população desfilando a face obscurantista sem o menor pudor, seja nas eventuais falhas de memória do ator Neriney Moreira, prontamente auxiliado pelas novas gerações com as quais contracena

O tempo e a combinação de práticas e de pensamentos geraram especificidades de linguagem. Criado em 27 de fevereiro de 1966, no Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, o núcleo estudantil Teatro do Onze foi precursor do TUOV, assim rebatizado em 1973. O perfil inicial de estudantes de classe média mudou gradativamente com a chegada de pessoas vindas de outras realidades sociais. Os objetivos de despertar o espírito amador junto aos trabalhadores e de priorizar públicos de comunidades periféricas colocaram o grupo no radar do regime autoritário, tornando sua caminhada ainda mais acidentada. Integrantes foram presos, peças censuradas.

Esse grupo que rejeitava padrões estéticos considerados convencionais, “ditados pelo lucro e pelas técnicas estrangeiras”, e também optava por ficar “longe dos cânones da moda teatral, mas certamente mais perto do povo”, como Vieira relata no livro Em busca de um teatro popular (5ª edição atualizada, de 2015), assentou suas convicções ponderando dados da realidade.

Prestes a completar 54 anos, portanto, o TUOV decanta em Bom Retiro meu – amor ópera samba as memórias coletivas através de trechos de alguns de seus espetáculos, das presenças de dois dos seus fundadores e ainda da investigação sociológica do território onde fica sua sede, um galpão e quintal no bairro da região central. O ator Neriney Moreira divide a cena com 15 colegas enquanto o codiretor e coautor César Vieira observa atentamente aos ensaios e às apresentações, ele que é ideólogo dessa obra continuada refletida na nova peça com um misto de antologia e denúncia.

Graciela Rodriguez Lívia Loureiro representa imigrante boliviana que trabalha em oficina clandestina

Bairro fabril cujos paroxismos do passado ajudam a entender os fios soltos do comércio e da produção de roupas nas brechas da economia que faz vistas grossas à exploração de mão de obra, o Bom Retiro é contado e versado pelo grupo que mora no pedaço desde 1982, quando tinha 16 anos. O TUOV dispõe fatos e elabora ficções por um futuro mais justo – a rigor, a mesma sina de origem que o levou a denunciar processos de escravização nos estágios do capitalismo lá no século XX e agora no XXI.

Convém lembrar que o panorama teatral da cidade já abarcou o bairro, formal e tematicamente, em montagens como Babel (1994), projeto de iniciativa da Oficina Cultural Oswald de Andrade nos primórdios do Teatro Promíscuo de Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas, e Bom Retiro 958 metros (2012), do Teatro da Vertigem dirigido por Antônio Araújo, que transitava por ruas e espaços cobertos.

Na autodeclarada ópera samba do TUOV, os cidadãos, artistas e advogados de nomes civis Neriney Evaristo Moreira (nascido em Ubá-MG há 74 anos), em arte Neriney Moreira, e Idibal Almeida Pivetta (Jundiaí-SP, 88 anos), César Vieira, têm seus percursos documentados e imbrincados no roteiro fruto da parceria inédita com o diretor Rogério Tarifa.

Também ator e dramaturgo, Tarifa tem se notabilizado por procedimentos épicos à maneira de “atos-espetáculos”. São obras categóricas no atravessamento da função pública da arte, deitando raízes nos cortejos populares. De suas derivas corais – o canto é vital – emanam imagens de ruas e rios que fluem, penetram, arrastam ou viram correnteza a céu aberto ou em salas fechadas, multiúso ou de cena frontal. Quem experienciou trabalhos que ele cocriou com a Cia. São Jorge de Variedades (como Barafonda), a Cia. do Tijolo (Cantata para um bastidor de utopias) ou o Teatro do Osso (Canto para rinocerontes e homens) sabe das arrebentações poéticas passíveis de se alcançar. Criadores cujas formações também foram sedimentadas pelas trocas e artesanias cênicas com o diretor e cofundador do Grupo Ventoforte, Ilo Krugli, que morreu no ano passado aos 88 anos.

O produtivo convívio Vieira-Tarifa na direção equivale a uma transferência de bastão entre gerações. Isso reluz na própria diversidade etária do elenco ou do quarteto de músicos determinantes na narrativa. A encenação ganha exponencialmente com essa troca de saberes. As evoluções musicais e a dramaturgia em quadros harmonizam com a movimentação dos atores e atrizes imbuídos da relação de proximidade com o público.

Graciela Rodriguez Neriney Moreira é testemunha ocular da narrativa em torno do TUOV e da gente do bairro

Feito um cortejo, mas sem que espectadores se desloquem, o musical
faz do corredor de duas plateias um microcosmo da realidade brasileira a partir dos problemas sociais do lugar e das peças que o TUOV habita. A expressão popular e o espírito amador culminam no drama do lapso: seja no erro do país que hoje vê parte de sua população desfilando a face obscurantista sem o menor pudor, seja nas eventuais falhas de memória do ator Neriney Moreira, prontamente auxiliado pelas novas gerações com as quais contracena.

Por meio da presença desse intérprete – ele é ele mesmo, “Neri” – se entrevê a materialidade do que é contado e cantado. O curso do tempo, a utopia colada no corpo envelhecido que não abandonou o espírito e o ideário de juventude. Uma espécie de mestre de cerimônia a ciceronear os operários Romeu e Julieta, abduzidos do clássico de Shakespeare como mestre-sala e porta-bandeira, amantes conscientes da exploração. A costureira e o tecelão são demitidos de uma fábrica porque conversavam no corredor durante os breves respiros da produção. O episódio gera assembleia, levante dos pares e conflito com os patrões e as forças de segurança.

E assim a tessitura ficcional enreda citações diretas a peças que abordaram a greve de sete anos de trabalhadores de uma fábrica de cimentos em Perus, na zona norte, em Bumba meu Queixada (1978) ou os bastidores de uma eleição para Rei Momo, espetáculo homônimo (1973) que saudou a cultura das escolas de samba pontuou diferenças de classe.

O roteiro bolado por César Vieira, Mei Hua Soares e Rogério Guarapiran sintoniza temas urgentes. Os direitos da mulher, os direitos da pessoa negra, da pessoa indígena, os direitos de qualquer cidadão viver a sua sexualidade são delineados na emulação de uma passarela de moda, emblema da sociedade de consumo. Ou ainda no pensamento crítico das prostitutas do Parque da Luz reafirmando sororidade. Daí foi um passo evocar seres espirituais ou de carne e osso, estes recém-assassinados no Brasil regido pelo culto à morte.

Seja em seu galpão, seja no Tusp, o TUOV galvaniza no novo trabalho um acontecimento poético e ritual só possível de elaborar quando confluem saberes artísticos e culturais inscritos no vivido e no que está por sê-lo. A confluência das juventudes de ontem e de hoje nos numerosos elenco e equipe de criação fazem da relação cena-público um ato presencial de cidadania estética. As duas plateias que se veem nas visões de mundo inventadas ou pontificadas podem extrair dos fatos particulares das várias fases da vida do agrupamento a própria travessia de imigrantes ou moradores do entorno.

Subjacente, Bom Retiro meu amor – ópera samba deixa ver a história de um país sob o ponto de vista de uma trupe. O olhar assombrado de Neriney na parte final, quando pergunta a todos e a todas se o teatro fechou e o que fazer doravante, seguido de silêncio perturbador e blecaute, isso denota como parte do país anda assustada, como se sentisse as patas de um monstro em seu encalço.

Graciela Rodriguez A indústria da confecção é parodiada na passagem “fast fashion” do musical

O olhar de espanto desse ator também está registrado numa apresentação de O evangelho segundo Zebedeu, dirigido por Silnei Siqueira, numa sessão do Festival Mundial do Teatro de Nancy, na França, em 1971. A imagem em preto-e-branco consta da exposição “História e Resistência”, no Centro Cultural São Paulo, combinando itens do acervo da instituição com material próprio do grupo.

Conteúdos fotográficos, audiovisuais, cenográficos e indumentários narram uma arte de endereçamento direto justamente a quem não tem proximidade com o teatro. Uma disponibilidade aos desvalidos antes de o país cruzar a linha do subdesenvolvimento para o “em desenvolvimento”, ainda que a desigualdade se aprofunde. De novo, impossível descolar da dimensão popular. Há coerência nesse projeto artístico capaz de abraçar até os veteranos do Exército enviados como Força Expedicionária Brasileira (FEB) para integrar as tropas de países Aliados contra o Eixo na Segunda Guerra Mundial.

Os pracinhas, como ficaram conhecidos, atuaram em campos de batalha na Itália para enfrentar o nazifascismo, mas o governo de Getúlio Vargas implantara uma ditadura em meados da década de 1940 e, contraditoriamente, desprezou aqueles que retornaram com vida para a casa, dentre os cerca de 25 mil enviados, apesar de mal preparados e mal equipados para a missão.

Trechos em vídeo de A cobra vai fumar: uma estória da FEB (2012), com atores usando fardas e coturnos, podem causar repulsa a quem não teve acesso ao contexto, dado o avanço da militarização da sociedade. Na linha cronológica do TUOV, porém, a montagem foge do script do teatro engajado ao focar uma representação cultural que reflete didaticamente como a questão política é mais complexa do que aparenta ou supõe a vã consciência.

.:. Bom retiro meu amor – ópera samba estreou em 16 de dezembro de 2018, na sede do grupo Teatro União e Olho Vivo, onde fez apresentações esparsas ao longo de 2019. A segunda temporada aconteceu de 3 a 18 de agosto de 2019 no Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp).

Exposição:

Teatro União e Olho Vivo – História e Resistência

Onde: Centro Cultural São Paulo – Piso Flávio de Carvalho (Rua Vergueiro, 1.000, metrô Vergueiro, tel. 3397-4002)

Quando: terça a sexta, das 10h às 20h; sábado, domingo e feriado, das 10h às 18h. Até 1º/3

Quando: Grátis

Acervos: Arquivo Multimeios CCSP e Teatro União e Olho Vivo

Curadoria: Maria Adelaide Pontes (artes visuais) e Kil Abreu (teatro)

Assistentes de curadoria: Diana Tsonis e Urion Braga

Arquitetura de exposições: Jeff Keese

Estagiário: Weslei da Silva

Montagem final: Arquiprom

Graciela Rodriguez Danila Gonçalves é a Catadora-Contadora; o boneco homenageia o menino travesso das lendas folclóricas

Equipe de criação do espetáculo:

Coordenação-geral: César Vieira (Idibal Pivetta), Graciela Rodriguez e Neriney Moreira

Direção teatral: César Vieira e Rogério Tarifa

Dramaturgia: César Vieira, Mei Hua Soares e Rogério Guarapiran

Com: Ana Elisa, Angelita Alves, Babi Pacini, Danila Gonçalves, Dante Kanenas, Edson Rocha, Flávia Sztutman, Juma Tanaka, Leandro Soussa, Lívia Loureiro, Lucas Cruz, Mei Hua Soares, Neriney Moreira, Oswaldo Ribeiro, Pedro Fraga e Rogerio Guarapiran

Músicos: Babi Pacini, Oswaldo Ribeiro, Pedro Fraga e Rogerio Guarapiran

Direção de arte, cenografia e figurinos: Graciela Rodriguez

Colaboração na pesquisa: Luiz Alberto Barreto Leite Sanz e Walter Quaglia

Direção musical: Rogerio Guarapiran

Coordenação musical: Cesinha Pivetta e Rogerio Guarapiran

Iluminação: Gil Teixeira

Assistência de cenografia e figurinos: Lívia Loureiro

Ajudantes de cenografia e figurinos: Edson Rocha, Gilvan Xavier, Juma Tanaka e Lucimara Freitas

Treinamento de atuação: Luís Mármora

Treinamento vocal: Ester Freire

Preparação corporal: Marilda Alface

Direção de produção: Maria Tereza Urias

Produção: Natasha Karasek

Assistência de Produção: Renê Costanny

Assessoria de imprensa: Luciana Gandelini e Teatro da Universidade de São Paulo – Tusp

Registro fotográfico: Graciela Rodriguez

Registro audiovisual: Nana Ribeiro e Pedro Cortese

Design gráfico: Julia Pinto

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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