Crítica
A artista francesa Phia Ménard convida espectadores a explorar o espaço da imaginação e lá construir e destruir coisas belas e terríveis – uma premissa da arte, convenhamos. Mas a centelha está em proceder em tempo real às etapas de arquitetar e ruir uma obra dentro da obra nos 90 minutos de percepções ambíguas quanto a vazio, força e desesperança em Contos imorais – parte 1: casa mãe (Contes immoraux – partie 1: maison mère).
Operária e operadora da cena, a performer e cenógrafa adota uma geometrização de gestos e movimentos que corrompe paradigmas masculinos do universo do canteiro de obras. O que dá liga é a destreza intelectual e a ginga dessa criadora, mulher transgênero em figurinos autodefinidos como os de uma deusa grega futurista. Seu ímpeto, porém, inclina mais à mortal Cassandra da mitologia, aquela a quem o povo e as autoridades de Troia não deram ouvidos acerca das previsões de desgraças e catástrofes que fez.
O papelão que forra o tablado de ponta a ponta surge entrecortado como as linhas de um quadro de Mondrian. Esse alicerce remete às dobras do origami numa escala ampliada. Planos, relevos e volumes ganham formas e são explorados por meio de instrumentos manipulados pela atuante. Lembram bastões de esqui ou arpões que ferem ou escoram a grossura e a rigidez do papel.
O estado finito das coisas em
‘Contos imorais – parte 1: casa mãe’
provoca esse nível de mal-estar. Em suas frestas para Eros e Tânatos, este se sobressai. A vida ordinária é perigosamente sequestrada por projetos de poder que apagam a memória mais recente ou remota, alterando as qualidades próprias da espécie
A fita adesiva a tiracolo também é candidata a dispositivo central. Há toda uma coreografia para puxar um pedaço e grudar nas junções de paredes e teto sob a indefectível sonoplastia inerente. Para pôr de pé o símbolo universal da habitação, Phia revela-se uma engenhosa dominadora das composições espaciais e temporais. Na vastidão do vazio do palco do Sesc Pinheiros, sob luz predominantemente branca e um sofisticado desenho sonoro incidental, coloca mãos à obra e faz jus à formação em malabarismo ao equilibrar a atenção da audiência fisgada pelos mínimos detalhes, repetições e hesitações desse trabalho literalmente em progresso.
Soam constantes as tensões entre os elementos estéticos e temáticos. Ao extrair arte da cultura da construção civil, um dos ramos que mais consome materiais no mundo, a criação da companhia Non Nova, de 2017, estimula livre associação com o que a humanidade vem construindo para si na Terra, a casa-mor. A perspectiva é europeia, pautada pela recorrente crise de identidade entre países daquele continente, alguns deles, não dizer, colonizadores na África, América e Ásia. A leitura pelos brasileiros, por outro lado, pode ser ampliada em contexto global.
A escultura erguida, ou melhor, encaixada com energia e perícia simula o panteão dos antigos gregos e romanos, templo dedicado aos deuses. Essa imagem também inspira o logotipo da Unesco: uma morada de telhado com cumeeira, colunas vazadas e tudo o mais sustentado por uma base sólida.
Sabemos que a Unesco é a agência da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura, trinca humanista que alcança assuntos como direitos humanos, gênero, juventude, infância, meio ambiente, questões étnico-raciais, povos indígenas, refugiados, etc. Pois são algumas dessas instâncias que atravessam o pensamento concentrado nas ações daquele corpo cuja dona arquiteta seu mundo feito o bicho-da-seda o casulo, com a diferença de que aqui estamos tratando das dimensões pública e privada.
Quando a mesma excelência iconográfica é convertida em desmanche, o espetáculo ganha contornos aterrorizantes.
Espectadores da Mostra Internacional de São Paulo, a MITsp, devem se recordar quão sublime e perturbadora foi a recepção a Stifters dinge, instalação performativa assim definida pelo diretor alemão Heiner Goebbels e apresentada na segunda edição, em 2015. A obra abdicava da presença humana, seja de atuante ou performer, seja de pianista que tocasse a composição para cinco pianos executada por… motores, numa integração maquinal digna de linha de produção de fábrica.
Guardadas as proporções, os sentidos em Contos imorais – parte 1: casa mãe voltaram a ser regidos por uma paisagem sonora e visual constituída pela intervenção estonteante de Phia Ménard. Sem jamais lançar mão da palavra, deixa que mecanismos outros, nem sempre acionados diretamente por ela, protagonizem o espetáculo da destruição daquilo que seu exímio artifício transbordou em grande estilo.
O ruído do desfazimento, tal tempestade sobre castelo de areia, tem a ver com a fragilidade de carne e osso. A engrenagem perfeita embute sua própria autodestruição, sem apelo a Sísifo: escala-se a montanha por única vez e rola-se pedra abaixo, ponto. Produção de angústia concreta.
Convém voltar a Cassandra, a partir da qual a alemã Christa Wolf escreveu um romance com o mesmo nome do mito. Na introdução, ela admitiu “a forte tensão entre as formas dentro das quais nos movemos convencionalmente e o material vivo a que meus sentidos, minha psique e meu pensamento me conduziram”.
Christa medita sobre como evitar que a experiência viva de inúmeros sujeitos seja morta e sepultada em objetos de arte. “Significa isso que os objetos de arte (‘obras’) também são produtos da alienação de uma cultura, da qual outros produtos perfeitos são fabricados com vistas ao seu autoaniquilamento?”, pergunta, como se estivesse se dirigindo à plateia daquela noite com Phia, em tradução de Marijane Vieira Lisboa (Estação Liberdade, 1990).
O estado finito das coisas provoca esse nível de mal-estar. Nas frestas para Eros e Tânatos, este se sobressai. A vida ordinária é perigosamente sequestrada por projetos de poder que apagam a memória mais recente ou remota, alterando as qualidades próprias da espécie.
Em breve, Phia deve completar sua trilogia com as performances Templo pai (Temple père) e O encontro proibido (La rencontre interdite).
.:. Leia mais sobre a performance exibia dias 6 e 8 de março
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Equipe de criação:
Dramaturgia e direção: Phia Ménard e Jean-Luc Beaujault
Performance e cenografia: Phia Ménard
Música e ambientação sonora: Ivan Roussel
Direção de palco: Jean-Luc Beaujault, Pierre Blanchet e Rodolphe Thibaud
Figurinos: Fabrice Ilia Leroy
Direção técnica: Olivier Gicquiaud
Codireção, produção e administração: Claire Massonnet
Assistente de produção: Clarisse Mérot
Relações públicas: Adrien Poulard
Assistente de coordenação de turnês: Lara Cortesi
Produção executiva: Compagnie Non Nova
Coprodução: Documenta 14 – Kassel e Le Carré, Scène Nationale e Centre D’art Contemporain do Château-Gontier
Observação: A Companhia Non Nova é subsidiada pelo Ministério da Cultura e Comunicação da França – Direção regional e assuntos culturais do Vale do Loire, pelo Conselho da cidade Nantes, pelo Conselho Regional do Vale do Loire, pelo Conselho do Departamento Loire-Atlantique, pelo Institut Français e pela Fundação BNP Paribas. Com sede em Nantes, a companhia é atualmente associada do Malraux Scène Nationale Chambery Savoie e do TNB – Centre Européen Théâtral et Chorégraphique de Rennes. O projeto Casa mãe recebeu apoio do Institut Français e da cidade de Nantes.
Este espetáculo é apoiado pelo Consulado Geral da França em São Paulo e pelo Institut Français
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.