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Crítica

A natureza do pensamento atiçado

30.4.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Maria

Logo na primeira linha, o narrador de Elizabeth Costello pontua sobre “como nos levar de onde estamos, que é, por enquanto, lugar nenhum, para a margem de lá”. Aludir à imagem da construção de pontes serve como poderoso instrumento de navegação pelo romance de J.M. Coetzee, em que pesem as saborosas e por vezes mal-humoradas contendas da protagonista com familiares, intelectuais ou admiradores. A personagem-título, uma prestigiada escritora veterana, lida com ideias morais, filosóficas e estéticas sem perder de vista o substrato da vida. Sua inquietude figura nos traços de personalidade e de linguagem, como bem cultiva o monólogo de mesmo nome idealizado e atuado por Lavínia Pannunzio com adaptação e direção de Leonardo Ventura.

O trabalho passeia pelos múltiplos portais abertos para as humanidades, a antiguidade clássica, a poesia e a natureza em Coetzee. O autor sul-africano radicado na Austrália concilia recursos de metaficção e de escrita ensaística com a diligência de quem, na juventude, pesquisou no doutoramento os primeiros textos de Samuel Beckett.

A prosa de Coetzee requer do teatro obstinação para singrar com autonomia. A montagem brasileira estreada no Teatro da Universidade de São Paulo, o Tusp, em janeiro, tendo a segunda temporada interrompida em março, por causa da Covid-19, alcançou níveis de elaboração e de síntese estilística. Em um dos capítulos ela está prestes a cruzar um enigmático portão e, para tanto, tem de prestar contas de suas crenças a uma banca de juízes; justo ela, praticante de boa dose de ceticismo em prol do racionalismo consequente. Na peça, a tribuna é habilmente correspondida ao lugar da plateia à qual a atriz endereça a fala.

A atriz Lavínia Pannunzio não se esconde por trás da representação, expondo de entremeio o jogo relacional com o público que pode sentir-se ligado à veterana escritora, alter ego do sul-africano J.M. Coetzee, mesmo quando Elizabeth Costello se retira de cena em uma das boas soluções do diretor Leonardo Ventura e, oculta, conta sobre como pousou para um pintor ancião amigo de sua mãe

Lavínia e Ventura escrutinam personagem e narrador para dar corpo a um compêndio cenicamente luminoso das reflexões urdidas por Elizabeth Costello. Um fluxo de consciência formado pelas vozes dela, do filho e do narrador gravita a memória, o ofício da literatura, a rotina de viagens, palestras e a aura crepuscular da existência que colhe sentidos mais espirituosos e tolerantes. O espetáculo constitui poeticamente o pensamento atiçado dessa mulher audaz na representação mental do que seja concreto, abstrato ou quimérico.

A empreitada mostra o quão a literatura e o teatro são artes coirmãs e podem levar a uma terceira margem dos afetos trilhando arte e ciência. Divisa-se consistentemente como a linguagem é processada numa instância e noutra, complementares no autoconhecimento. Tema e forma viram uma coisa só. Os fazeres e discursos são apreendidos por dentro, no miolo da ação, dos movimentos e das perguntas – e elas não são poucas. Não há respostas prontas ou lugares-comuns. Lavínia traduz os encaixes e desencaixes de Elizabeth nos eventos públicos e nas experiências particulares, por vezes íntimas, derivadas de diálogos com a irmã e um dos dois filhos em tempos idos ou na atualidade.

No livro, em um desses compromissos com jornalistas ou leitores, sempre com o primogênito a tiracolo, este conjectura sobre a mãe sexagenária e vegetariana após ouvi-la discorrer a respeito de seus deslocamentos no pós-guerra por Reino Unido e França, até o retorno à Austrália natal – ela é considerada alter ego de Coetzee, tanto que comparece em outros títulos dele, A vida dos animais (1999) e Homem lento (2005). “Uma escritora, não uma pensadora. Escritores e pensadores: água e vinho. Não, não água e vinho: peixe e pássaro. Mas qual é ela, o peixe ou o pássaro? Qual é o seu elemento: água ou ar?”, pergunta-se o filho, inferindo que nem o amor filial ajuda a lê-la por inteiro.

A encenação de Ventura tampouco pretende enfeixá-la em parâmetros reconhecíveis. Antes, salvaguarda seu caráter prismático. Os direitos dos animais subjacentes ao romance, por exemplo, é problematizado sem dogmas. Uma das oito palestras do livro (estruturadas como capítulos) chama-se A vida dos animais, homônimo de outro romance de Coetzee, como citado. A personagem estabelece analogia das crueldades vigentes nos campos de concentração nazistas, nos quais humanos eram tratados “como animais”, com a atual cadeia de produção que envolve granjas, matadouros, barcos pesqueiros e afins. Com tirocínio filosófico, Elizabeth discute se animais têm alma, consciência ou se são autômatos biológicos.

João Maria Lavínia Pannunzio idealizou e atua em ‘Elizabeth Costello’, adaptação de romance homônimo do sul-africano Coetzee

Segundo a escritora e professora Maria Esther Maciel (UFMG), o registro poético, estético e ficcional sobre animais se faz habitualmente como um desafio à imaginação. No prefácio a Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (Editora da UFSC, 2011), livro que organizou, ela observa que o crescente interesse pelo tema contribuiu, nas últimas décadas, para “o surgimento de um novo campo de investigação que, sob a denominação de Estudos Animais, vem se afirmando como um espaço de entrecruzamento de várias disciplinas oriundas das ciências humanas e biológicas em torno de dois grandes eixos de discussão: o que concerne ao animal propriamente dito e à chamada animalidade e o que se volta para as complexas e controversas relações entre homens e animais não humanos”.

No campo da crítica e da teoria literária, afirma a ensaísta, esse híbrido foge das circunscrições metafóricas que quase sempre marcaram os enfoques dos animais não humanos. “O que se justifica não apenas pelas preocupações de ordem ecológica que têm movido a sociedade contemporânea, mas também por uma tomada mais efetiva de consciência, por parte dos escritos e artistas em geral, dos problemas ético-políticos que envolvem nossa relação com as demais espécies não viventes”. Tal concepção é perceptível na trajetória criativa de John Maxwell Coetzee, ademais tradutor, linguista e crítico literário, ganhador do Nobel de Literatura em 2003, sincronicamente o ano de lançamento de Elizabeth Costello.

Certa vez, numa crônica escrita para o caderno de cultura do jornal O Estado de Minas, Maria Esther foi instada por um leitor a indicar um escritor contemporâneo em atividade e cravou o sul-africano como seu predileto, definindo-o como mestre em extrair dos conflitos ordinários de suas personagens um amplo e complexo quadro dos problemas do mundo e cuja prosa, concisa e elegante, acolhe estratégias narrativas inovadoras. “Transita em diversos gêneros e não teme misturá-los em certas obras. E como se isso não bastasse, ainda ousa se autobiografar em terceira pessoa, ironizando-se a si mesmo. É, de fato, um grande escritor. Desses que mexem com nossas certezas e nos remexem a alma.” (Qual escritor?, em A vida ao redor: crônicas, editora Scriptum, 2014).

Feito esse apanhado, nota-se no espetáculo em análise o quanto Ventura toma para si essa inspiração inventiva ao enxertar na dramaturgia outra fonte ficcional de Coetzee, The old woman and the cats, de 2013, conto que costuma ser traduzido no Brasil por A mulher e os gatos ou A velha e os gatos, no qual Elizabeth Costello ressurge em um vilarejo espanhol na companhia de uma dúzia de gatos. Ela se encontra reclusa, às voltas com um balanço de vida, quando a visita do filho, mais uma vez, deflagra o diálogo em que a mãe trata das “fronteiras do ser” – desde os bichos selvagens de estimação até o homem de quem também cuida sob o mesmo teto, um nativo abandonado pela família e quase recolhido pelo serviço social.

João Maria O diretor Leonardo Ventura parte das ideias da personagem para gerar imagens acerca da realidade extraída de recursos ficcionais da escrita ou, em cena, da gravação da voz dela

Diante da condição de isolamento autoimposto, o diretor acrescenta o procedimento da personagem gravar a voz enquanto relata seu pensar cartesiano e mimetiza, assim, o ato de escrever (abandonado anos atrás) ao acionar o botão da aparelhagem retrô e falar ao microfone sentada numa cadeira. Esse set está recuado ao fundo do espaço cênico, demarcado por um tapete vermelho, à maneira de um corredor. A cada vez que ela caminha até lá é acompanhada por luz quente em seus enunciados.

A esses momentos introvertidos, que podem lembrar A última gravação de Krapp, de Beckett, o espetáculo desenvolve outras frentes de caráter mais performativas. A capacidade de Lavínia Pannunzio transitar por esses estados é pilar no projeto. A mulher de pés descalços, portando casaco de lã alongado por cima do vestido estampado, jamais padece de caricatura corporal nos relatos da juventude ou da velhice do agora. A artista não se esconde por trás da representação, expondo de entremeio o jogo relacional com o público que pode sentir-se ligado a Elizabeth mesmo quando ela se retira de cena – numa das boas soluções em que a personagem conta, oculta, sobre quando pousou para um pintor ancião, amigo de sua mãe.

O monólogo acerca dessa mulher iconoclasta, feita de ações e de letras, combina dois componentes pendulares. Um é da ordem do mecanismo, definidor da estrutura natural ou artificial de um organismo. Ventura é como um compositor de destinos no modo como transcria o romance e ocupa o espaço vazio da sala do Tusp. Um achado a utilização do muro de fundo envidraçado que dá translucidez para a área externa do edifício, devidamente incorporado à narrativa, na cenografia de Chris Aizner. Vazio, sabemos, não é sinônimo de falta. É nesse lugar de tempos múltiplos (mineral, primal, animal) que a atriz dá ossatura à própria consciência da responsabilidade de dirigir essas palavras à audiência. Como pactuado desde a recepção a cada espectador na entrada, particularizando o universo a ser abordado. Outro componente é da ordem da metafísica, estudo ou ciência versados sobre aquilo que transcende o físico ou o natural. Demanda, portanto, um grau de subjetividade a partir da relação possível com cada pessoa presente. A encenação articula essas bases em níveis pertinentes ao rigor do texto original. O racionalismo em Elizabeth Costello encara o inefável e dança seus passos ficcionais conforme a realidade que critica e nos humaniza.

.:. O espetáculo Elizabeth Costello estreou em 22 de janeiro de 2020, no Tusp, cumprindo temporada até 16 de fevereiro. Reestreou em 29 de fevereiro e saiu de cartaz em meados de março por causa da pandemia do novo coronavírus. Seguiria até 29 de março. Duração de 70 minutos. Classificação indicativa de 16 anos.

Equipe de criação:

Autor: J.M. Coetzee

Adaptação e direção: Leonardo Ventura

Idealização e atuação: Lavínia Pannunzio

Cenário: Chris Aizner

Figurino: Cassio Brasil

Desenho de luz: Aline Santini

Trilha original composta e engenharia de som: L.P. Daniel

Fotos: João Maria

Móveis cedidos ao espetáculo: Julia Krantz

Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro/Ofício das Letras

Designer gráfico: Zootz Comunicação

Produção: Corpo Rastreado

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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