Encontro com Espectadores
14.8.2020 | por Teatrojornal
Foto de capa: Cacá Bernardes
Fruto da parceria da Cia. Livre e da Cia. Oito Nova Dança, sediadas em São Paulo, o espetáculo Os um e os outros (2019) abarcou a luta dos povos ameríndios em território brasileiro e suas estratégias para resistir. Trata-se de livre recriação de Os Horário e os Curiácios (1933), uma das peças didáticas de Bertolt Brecht que investiga modos de resistência da chamada “época da contrarrevolução”, instaurada com a ascensão e consolidação da nazismo na Alemanha.
Na concepção coletiva dirigida por Cibele Forjaz, da Livre, os Curiácios são o povo dos Um, crente de que sua cultura é universal, enquanto os Horácios são os Outros, ou todos os múltiplos povos que defendem a diversidade dos modos de existência. Atualmente, existem 305 etnias em território brasileiro. No texto original, os Curiácios invadem a terra dos Horácios para roubar seus campos e minas. Frente à ameaça de perderem tudo aquilo de que necessitam para viver, os Horácios decidem se opor. Em três batalhas – dos arqueiros, dos lanceiros e dos escudeiros –, Brecht expõe diferentes estratégias de luta, passível de contextualização às formas de resistência ao avanço do totalitarismo no mundo.
Artistas colaboradores, ou “jogadorxs”, como preferem, contracenam com a presença especial de convidados do povo Guarani M’Byá, moradores da Terra Indígena Tenondé-Porã, composta por oito aldeias na região de Parelheiros, zona sul, abrangendo ainda partes das cidades de São Bernardo do Campo, Mongaguá e São Vicente. Essa atitude se reflete na multiplicação dos pontos de vista de uma obra artística que mescla teatro, música, dança e projeção de imagens.
A bailarina e coreógrafa Lu Favoreto, cofundadora da Cia. Oito Nova Dança, e a atriz Lucia Romano, da Cia. Livre, ambas pesquisadoras nas artes do corpo, participaram da 34ª edição do Encontro com Espectadores, em 27 de outubro de 2019, realizado no Itaú Cultural. Na mesma data de encerramento da segunda temporada de Os um e os outros – passou por Sesc Pompeia e Tusp –, elas detalharam o convívio com a cultura ancestral, como através da manifestação do Xondaro devidamente incorporada.
A gente concebeu um espetáculo que tem muito mais a ver em jogar com a dimensão histórica, que é grande, que ultrapassa o indivíduo, daí o contato direto necessário para um tipo de abordagem do épico que a gente deseja fazer. ‘Os um e os outro’ tem a ver com o desmonte da espetacularidade, na cena como um todo, desmonte da coreografia. Aliás, um procedimento de trabalho que a Lu já está fazendo há muito tempo, pensando um corpo que não tem só passos a executar, descobrindo outras formas de contorno desse corpo. Isso também tem a ver com a interpretação, com a saída do estado de representação para outro estado, provocando outra relação com a plateia
Lucia Romano, atriz e pesquisadora da Cia. Livre
Sob mediação do jornalista Valmir Santos, pontuam ainda como a peça de aprendizagem, aqui com excertos de um discípulo de Brecht, o compatriota Heiner Müller, permitiu estabelecer paralelos entre a “voracidade” da sociedade de consumo e a luta pela posse da terra e pela posse das minas dos Curiácios, assim como entre a “esquiva” do guerreiro Guarani e a estratégia da “fuga” do escudeiro Horácio, na última batalha da narrativa
Um trabalho embasado no reconhecimento dos territórios indígenas, no respeito aos seus modos de vida e na preservação da floresta, dos rios e demais seres vivos que ali vivem. Tudo justaposto a mensagens, documentos, relatos e imagens que evidenciam uma guerra em curso no país. Problemas e urgências, sabemos, seculares.
*
Valmir Santos – Teatrojornal
Recebemos hoje duas criadoras representantes desse trabalho singular erguido em múltipla colaboração artística, a Lucia Romano e a Lu Favoreto. Lucia é atriz e produtora na Cia. Livre. Ela tem atuado em outros coletivos como A Barca de Dionísio, Teatro da Vertigem, nos quais foi fundadora. É bacharel em Teoria do Teatro pela ECA-USP. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC. Doutora pela ECA. Tem experiência nas áreas de teatro, performance, dança com ênfase na interpretação teatral, corporeidade, estudos de gênero, feminismo e processos de criação. Docente no Instituto de Artes da Unesp e autora De quem é esse corpo? A performatividade do gênero feminino no teatro contemporâneo, cruzamentos entre processos criativos das mulheres, cena e gênero, livro lançado pela Editora Unesp em 2017.
Lu Favoreto é bailarina, coreógrafa e educadora corporal. Diretora e cofundadora da Cia. Oito Nova Dança, em 2000, na qual também ministra cursos regulares de técnica, pesquisa e criação. Adota como elemento primordial de investigação a relação entre estrutura corporal, movimento vivenciado e obra cênica. Seu trabalho é fundamentado na Técnica do Movimento Consciente (por Klauss Vianna no Brasil) e na Coordenação Motora (por Marie-Madeleine Béziers e Suzanne Piret, na França). Entre bolsas e prêmios recebidos pela intérprete-criadora, estão: Prêmio Estímulo de Dança, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo; Prêmio EnCena, da Funarte; Prêmio Braços e Pernas pela Cidade, da Secretaria Municipal de Cultura; e Prêmio Klauss Vianna, também por meio da Funarte.
Bem, o espetáculo Os um e os outros cumpriu temporada inicial no Sesc Pompeia e encerra, exatamente na noite de hoje, a temporada no Tusp – Teatro da USP, um espaço histórico da cidade, localizado à Rua Maria Antônia. Como a sessão acontece às 19h, a dinâmica de nossa conversa carece ser mais enxuta. Vamos até às 16h30. Elas propuseram intercalar suas falas iniciais com trechos do registro em vídeo do espetáculo, o que contribui ,sobretudo, para parte das pessoas presentes que ainda não teve a oportunidade de assistir. Desde já, Lu e Lucia, muito obrigado por aceitarem nosso convite.
Lucia Romano
A Lu selecionou trechos que têm a ver com princípios da construção corporal dos
intérpretes, dos atores e atrizes e dos bailarinos e bailarinas desse trabalho.
[Inicia a exibição de trechos em telão]. Esse é o início. A gente se arruma
diante da plateia. A coxia exposta é uma espécie de prerrogativa do espetáculo.
Num momento anterior, cada um dos atores se apresentam e em seguida o público
vai para a plateia. Tem essa passagem. Essa cena é chamada de Apresentação dos
Curiácios, que são os povos do Um. Quando a voz está em off e todo mundo
partilha do mesmo discurso, surge uma identidade coletiva para esse sujeito,
não é exatamente uma pessoa, mas um comportamento coletivo desse povo e que
somos nós, na verdade.
Lu Favoreto
É um momento em que a estrutura coreográfica é mais fechada. Tem algumas
características gerais desse sujeito; esse corpo mecanizado, que é um movimento
meio funcional num espaço apertado, num tempo superdefinido; a pressão do tempo
que vai crescendo.
Lucia
Esse texto não é do Brecht. É do Heiner Müller. É uma colagem que a Cibele
fez, ela trouxe esse primeiro texto do Heiner. Além de ser um autor que está na
linhagem do Brecht, ele funciona aí como uma citação. A gente está citando um
outro texto que fala sobre a condição
contemporânea dos Um. Essa situação então vai progredindo para o momento em que
eles não são tão vitimizados assim pela maldição deles, mas fazem uma escolha
de agir sobre o outro povo. Tem uma espécie de comportamento que depende da
situação de classe. É aí que a gente entra efetivamente no texto do Brecht.
[Comentando um trecho] Esse é o texto-canto de apresentação do Brecht do povo dos Curiácios, no qual a gente faz uma associação direta com o que o país tem vivido a partir da eleição do Bolsonaro. Os documentos que estão sendo projetados ali, os fatos da realidade, revelam essa divisão entre Uns e Outros.
[Novo trecho] Esse momento é importante porque se, na cena anterior, parece que a gente é vitimizado pela sociedade contemporânea, alguma coisa nessa dimensão, aqui a gente vê que não, que esse povo escolhe determinadas ações, determinadas filiações. É agente de suas escolhas, por exemplo, ao invadir a terra dos Outros.
À esquerda vemos o nosso coro de Guaranis M’Byá, presença superimportante para a construção do tecido do espetáculo. O que têm a dizer, o que representam… Esse trechinho foi selecionado não exatamente em oposição ao anterior, a Lu queria mostrar o corpo dos Outros, mas só para expor como o tecido do espetáculo é construído: a junção entre a fábula do Brecht e os documentos, os relatos trazidos pela fala da Cibele a partir de um material coletado por ela e pela Clara [Cla Mor, codiretora de arte] em viagem à região do Rio Xingu [estudo de campo realizado entre 2018 e 2019]. E outros documentos que estão na mídia, relatos jornalísticos.
Há algo nesse procedimento parecido com o que o Brecht sugeriu de quebra épica: quando a fábula é suspensa e aparecem os documentos. A gente é convidado a pensar sobre como a realidade do texto se reflete no Brasil de hoje, um texto escrito em 1933. Tem uma sobreposição de fábulas, a do Brecht de 1933, que se refere a uma batalha na Roma Antiga, da qual ele se utilizou para falar da ascensão do fascismo na Alemanha, e como a gente utiliza o mesmo texto para falar da aparente ascensão do fascismo no Brasil hoje em dia.
Estou falando “aparente”, mas, talvez, a gente não tenha distância histórica suficiente para ver onde isso vai dar, mas temos situações bastante semelhantes que permitem dizer que existe um fascismo global e que tem uma manifestação local muito clara.
Aqui a projeção não está fazendo apenas o
distanciamento de uma fábula ou de outra, mas colaborando para construir o
próprio cenário da história, mapeando o espaço. Se a gente for pensar em termos
de interpretação, passa por diferentes planos também, inclusive enquanto coro de artistas, de atores,
atrizes, bailarinos e bailarinas que fazem essa peça. Às vezes a gente opera
como o coro dos Outros e às vezes como coro dos Um.
Santos
Essa apresentação no Sesc Pompeia mostra um trabalho com uma escala muito
distinta daquela que a gente viu no Tusp. É impressionante a distinção, e como
a captura, a relação enquanto público se dá de outra forma, de uma perspectiva
mais intimista.
A Cibele Forjaz assina direção geral e encenação em Os um e os outros. A Lu Favoreto, a direção de movimento, a preparação corporal, ela que também é bailarina e está em cena, ao lado de Lucia e dos demais pares.
Vale lembrar que as duas companhias que imbricam teatro e dança têm uma trajetória parecida. A Cia. Livre nasceu em 1999 e a Cia. Oito Nova Dança, em 2000, portanto, estão na casa dos 18, 19 anos. Ambas têm a perspectiva de lidar com material do ponto de partida da antropologia, por exemplo, e também de aproximação ao universo indígena em trabalhos anteriores e, inclusive, em cocriações, tanto a Cibele quanto a Lu, e vice-versa, integrantes de uma companhia e de outra já trabalharam em processos criativos de espetáculos recentes.
Lu
Em 2014 foi o Xapiri, Xapiripë, o primeiro trabalho mais assumidamente em torno da relação da opressão indígena, com parceria da Cia. Oito e da Cia. Livre. A Cibele dirigiu e eu fiz a direção de movimento para a companhia de dança, não para a Cia. Livre, então a linguagem era a dança, mas era um formato mais ou menos parecido com esse, mas agora a linguagem é o teatro. Depois teve a intervenção urbana Esquiva [2016] e, em 2018, o Juruá, que completa a trilogia ameríndia da Cia. Oito Nova Dança.
Lucia
Na trajetória da Cia. Livre, o primeiro espetáculo em que trabalhamos diretamente com os mitos de morte e renascimento ameríndios foi o Vem vai, o caminho dos mortos [2007-2009]. Depois fizemos com um dos mitos que não tinha entrado no Vem vai, o caminho dos mortos, que se chamava Raptada pelo raio, que foi um espetáculo meio de resistência porque tivemos tantos problemas para resolver, em relação ao processo dele, que não ficamos contentes com uma versão só, fizemos três versões diferentes e por isso eu nem sei precisar os anos. O espetáculo partia de um mito Marubo adaptado pelo Pedro Cesarino, que foi o antropólogo que nos apresentou os mitos, no Vem vai, trouxe esse mito diretamente do trabalho de campo dele junto aos Marubos na Amazônia central – e depois então a gente fez duas versões de Raptada pelo raio [2009], que foram o Raptada pelo raio 2.0 e o Cia. Livre canta Kaná Kawã.
As mudanças tinham a ver especialmente com alguma coisa que a gente trabalhou depois, a seguir, junto com a Cia. Oito Nova Dança no Xapiri, Xapiripë, que era esse elemento dos encantados que aparece no mito Raptada pelo raio, em que a esposa de um homem está grávida e é raptada a partir da fofoca dos vizinhos e passa a ser cobiçada pelo povo raio, que aparece, se manifesta e, se a gente disser num plano bem materialista, ela é alvejada por um raio e é torrada, morre. A partir disso, essa mulher faz o caminho dos mortos e, no percurso, o marido, assim como no mito de Orfeu e Eurídice, não se conforma com a morte dela e vai atrás de resgatar seu corpo. Para tanto, ele faz uma catábase [fase de declínio de uma doença], vai descendo para o mundo dos mortos a fim de tentar resgatá-la, até chegar à conclusão de que o que é morto é morto e o que é vivo é vivo. E que, pelo bem dos vivos, principalmente, essa mistura não deve acontecer. Portanto, é um mito de separação.
Mas, ali, tinha esse elemento que a gente não entendia muito bem, que era a experiência do contato do corpo vivo com esse mundo dos encantados sobre o qual levantamos diferentes interpretações em cada versão do espetáculo, desde o mundo da comunicação, da imagem esvaziada, pensando na sociedade do espetáculo [conceito criado pelo francês Guy Debord com vistas a consumo e capitalismo], até chegar em outro lugar muito diverso – e que talvez a Lu possa falar um pouco do que foi a experiência do corpo no Xapiri, Xapiripë –, quando a gente foi investir profundamente em como tratar materialmente, na cena, esse dilema que é tão presente para os povos ameríndios, que é a coexistência de mundos paralelos e a presença dos encantados na vida ordinária. Uma presença nem sempre amigável, porém, uma presença que marca muito a experiência dos povos da floresta porque, para eles, os encantados são o plano real mesmo, eles estão todos aqui, enquanto conversamos, e isso não é menos real do que aquilo que a gente consegue tocar ou ver em situações ordinárias. Foi por isso que a gente voltou tantas vezes para esse espetáculo e fizemos o trabalho junto com a Cia. Oito falando desse tema, dos espíritos que dançam, que são os Xapiris.
Lu
A gente teve essa entrada mesmo no corpo em transformação. O princípio do processo criativo tinha a ver com ancestralidade exposta no corpo. Teve um processo bem individual de cada um buscar essa aproximação porque o assunto é tão vasto que eu só consigo vivenciar no meu corpo se pensar me aproximando, me transformando, buscando frequências no corpo. Por isso a dança vem como uma linguagem de frente mesmo. A partir daí a gente relacionou, com a ajuda do Renato Sztutman, um antropólogo que estava junto com a gente no processo, essas ancestralidades individuais que tinham a ver com oito intérpretes-criadores, com oito povos indígenas. Eu trouxe a vértebra da baleia como uma aproximação da minha ancestralidade, ele me relacionou com os Guaranis porque eles sempre tiveram uma relação muito forte com o mar. De modo que o Renato foi buscando links dessas ancestralidades individuais com esses oito povos, aí vieram cantos, línguas e a gente foi criando essa rede que era o espetáculo Xapiri, Xapiripë.
Lucia
Achei interessante o ponto da ancestralidade porque, para mim, é um tema superdifícil. Não sei resolver esse tema, não tenho uma relação com a minha ancestralidade, não sei onde é que está isso ainda, preciso tomar muita ayahuasca para descobrir. Mas eu resolvi a questão pensando no corpo em transformação, tanto é que o povo que me coube, que eu passei a trabalhar foi o Marubo, um povo que tem por característica um mundo material pouco interessante. Na narrativa dos antropólogos, quando você vai numa aldeia Marubo, eu nunca fui pessoalmente, é uma aldeia até pobre se comparada a aldeias do Xingu, que têm uma exuberância das casas, do jeito que a sociedade se organiza nos seus elementos plásticos da vida cotidiana. Os Marubos não têm isso porque, de fato, o plano de consistência mais sagrado para eles é o imaterial, ou seja, o plano realmente dos encantados. Então, para eles, esse é um elemento importante. E, para mim, como uma materialista de plantão, coube-me trabalhar com essa possibilidade, essa passagem constante de um corpo que nunca chega à sua pele definitiva, está sempre em troca de pele – e por isso os Marubos.
Tem também uma divisão dos percursos que se seguem a partir desses espetáculos. Durante um tempo, a Cia. Livre suspende a investigação sobre os povos ameríndios e vai trabalhar com narrativas da relação entre Brasil e África [em A travessia da calunga grande, de 2013]. Porque tínhamos um projeto anterior que era pensar o que constituía a identidade nacional. Fomos atrás de um certo desmonte do mito das três raças. Desmonte porque, de fato, isso também é uma construção cultural nossa: pensar no mito das três raças como um mito de formação da identidade nacional. Então, fizemos um espetáculo que tinha a ver com essa questão.
Lu
No processo do Xapiri, Xapiripë a gente teve a oportunidade de ir se aproximando dos Guaranis, descobrimos que moram na nossa cidade. Eu, até então, não sabia que os Guaranis moravam em Parelheiros e no Jaraguá, Ou seja, coabitamos a mesma cidade. Pela proximidade, conseguimos fazer um certo campo porque não deu para a gente ir para o Xingu. Eles assistiram aos nossos ensaios, houve uma primeira troca com os Guaranis e a partir daí eu achei que a gente tinha que falar deles, tinha que abordar essa questão, essa proximidade e essa invisibilidade em relação a eles que estão aqui junto com a gente. Tanto a intervenção urbana quanto o Juruá, quanto Os um e os outros são desdobramentos dessa aproximação com os Guaranis.
Santos
A minha experiência como espectador do espetáculo foi bastante mobilizada pela presença desse coro Guarani M’Byá em cena, dessa aldeia de Parelheiros. Como vimos pelas imagens, o espetáculo é um manancial de informações, de lidar com ancestralidade, com a urgência da questão indígena e da confrontação com esse governo, da dimensão política da obra. Por outro lado, ficava prestando atenção nessas presenças, nesses corpos, seus silêncios, seus olhares penetrantes. Há uma serenidade transmitida por esse corpo Guarani, ao mesmo tempo em permanente estado de atenção, seja mulher, homem, criança… Nas duas sessões havia a presença de uma criança com aquela que possivelmente é sua mãe, em cena.
Essas qualidades de presenças somadas à revisita do material coletados por artistas em campo e posteriormente elaborados como forma, como cena, essa é uma questão muito delicada, principalmente no meio audiovisual, no documentário, no sentido de pensar acerca dessa captura e de como ela é devolvida, digamos assim, de como se dá essa relação do ponto de vista ético, inclusive.
Consegui perceber que havia integridade na relação de vocês com as fontes indígenas. A maioria dos criadores de Os um e os outros teve a experiência de convívio na aldeia. Como você disse [para Lu], a Cibele estava no Xingu e ela relata e compartilha isso na dramaturgia, inclusive está em cena. Noto cuidado em lidar com esse material e, ao mesmo tempo, das duas companhias trazerem, ancorarem as suas poéticas, as suas linguagens e a investigação artística dos respectivos percursos. Afinal, como fazer isso e, ao mesmo tempo, lidar e se deixar impregnar por esses humanos, por essa presença indígena em contraponto ao antropocentrismo [aos sistemas filosóficos e crenças que posicionam o ser na centralidade em relação a todo o universo].
Essa presença na voz deles, no canto em tupi, nos instrumentos criados por eles mesmos… Não sei se coro é a melhor categoria para falar, porque remete a uma expectativa grega e muito encaixotada na convenção teatral. Eu não sei como nomear, mas não chamaria de coro. É uma presença de outra dimensão. Na medida em que avança para um depoimento documental e autobiográfico, com a questão da urgência mesmo, isso transforma os referenciais estéticos, eles vão para outros lugares. O processo criativo se deixou conversar com essa margem, a depender do ponto de vista.
O corpo correlato à dança, stricto sensu de bailarino, vide a própria trajetória da Cia. Oito, é desconstruído essencialmente, da mesma forma que os atores, na atuação da Cia. Livre, tampouco mergulham nessa experiência como se fosse fácil, reconhecível nos códigos do teatro, da dança ou dança-teatro. É um outro lugar também que eu não sei nomear, mas que passa por uma dimensão de espiritualidade, palavra que também carrega ritualidade. Então, eu fui bastante tocado por essa conversa e por essa presença que se dá de uma forma efetiva. Se a considerarmos a noção de povos da floresta, como o teatro e a arte podem estar nesse mesmo lugar, numa certa horizontalidade possível sem exotismo, sem estereotipar? São questões como essas que entrevi vocês acolhendo e sendo acolhidos.
Por exemplo, na minha trajetória da prática da crítica de teatro e do jornalismo cultural, é comum a ideia de que a origem do teatro estaria na vinda de José de Anchieta e da Companhia de Jesus, da catequização do processo que foi feito lá atrás, muita coisa da historiografia brasileira passa por essa visita no século XVI. Ao mesmo tempo, essa presença hoje, em 2019, me faz pensar profundamente essas origens, como se a ideia de uma elaboração cênica estivesse talvez séculos atrás ainda, é de uma ordem primitiva, de uma ordem ancestral, portanto é difícil categorizar e localizar no tempo esse início e onde estão as origens dessa dimensão cênica. Em que medida os gestos, movimentos e danças da experiência indígena já não dariam sinais de uma presença cênica, em termos do que anos mais tarde se designou teatro e dança sob influências colonizadoras.
Quando falo manancial é porque existe na cena contemporânea um apetite muito forte por uma ideia de projeção de imagens, de dramaturgia aplicada a tais recursos audiovisuais em cena. Em alguns momentos eu temia que isso seria um campo dominante em Os um e os outros, mas, aos poucos, esses conteúdos vão adquirindo uma noção de documento. Agregam informações e dados da realidade, ao mesmo tempo que destaca, inversamente, a figura do Presidente da República e seu discurso inconsequente, seu rosto, a face do inominável, e isso, sim, causou incômodo por acreditar que esse outro, esse inimigo, àquela altura, já soava suficientemente em nosso imaginário com a aura negativa que carrega. Temia que ofuscasse inclusive a presença indígena. Mas não foi o que aconteceu. Logo depois, pelo mesmo recurso das projeções, vem um momento absoluto em que vocês respondem com a presença e a fala da Sônia Guajajara [participação em vídeo]. Aquela atitude, para lá de brechtiana, coloca tudo em suspensão por cerca de quatro minutos, voltando a atenção do público para o pensamento muito claro dessa liderança dos povos indígenas. Sônia situa como chegamos até aqui, em que ponto estamos. Lugar de fala espelhado na porção biográfica dos jogadores, dos atuantes, dos bailarinos quando, no início, a gente vê como, em alguma medida, esse material passou pelas suas vidas também. Então, o projeto artístico tem nexo e afeta. Vi muita gente chorando na plateia pelo estado de coisas, por esse homem, essa mulher, esse criança Guarani, pela inteireza de como eles se posicionam no canto, na fala, nos instrumentos musicais que tocam. Como eles são naturalmente assim e como a gente pode reexaminar as nossas percepções de mundo a partir desses sujeitos em cena.
Escrevi uma crítica a partir do espetáculo levando em conta a presença dos Guaranis em cena. Visitei a aldeia desse povo no bairro do Jaraguá [a Tekoa Pyau], na década passada. Na ocasião, orientava o Trabalho de Conclusão de Curso de um grupo de estudantes de Jornalismo que elaborou livro-reportagem a partir da voz das crianças e dos adolescentes daquele território. Assim, considero que o fato de a encenação contracenar com os indígenas e a própria caminhada das duas companhias remetem a uma concepção historiográfica, seja da memória do massacre dos povos originários desde 1500, seja no modo de como as artes da cena abordam essa temática. Os um e os outros contextualiza e reconhece a complexidade do desafio, a começar pelo trançado que faz com Brecht e Müller. O aspecto da denúncia e da urgência também está posto. Toca-se nessas questões, problematiza-se essas presenças historicamente invisibilizadas. É perceptível como os artistas não índios também estão se autoquestionando em relação a esse trabalho, a esse contato, a essa aventura.
Talvez agora vocês pudessem falar sobre essa ideia instigante de jogadores, porque todos assinam, é uma cocriação.
Lucia
Gostei muito de sua síntese de coisas que estão lá no espetáculo, obrigada. Queria comentar sobre isso que você falou da dimensão espetacular, da diferença entre o Sesc Pompeia e o Tusp. Acho que esse é um elemento bastante importante a se considerar. Certo desmonte do estado espetacular, que eu acho que é um elemento que a gente está tocando e não sabe muito onde isso vai dar. E nem muito os limites disso, à medida em que estamos trabalhando também com um grande continente de teatro, que é o pensamento brechtiano.
Em certo sentido, a gente está lidando com uma tensão mesmo: entre a possibilidade de desmontar o teatro e recorrer a Brecht para fazer isso, uma certa contradição. Considerando a dimensão que tinha no Pompeia, um espaço cênico mais grandioso [a temporada aconteceu no teatro projetado por Lina Bo Bardi, palco com duas plateias para 774 pessoas], penso que o espetáculo se ajusta mais ao Tusp [sala multiuso, plateia bifrontal configurada feito corredor, 98 lugares].
A gente concebeu um espetáculo que tem muito mais a ver em jogar com a dimensão histórica, que é grande, que ultrapassa o indivíduo, daí o contato direto necessário para um tipo de abordagem do épico que a gente deseja fazer. Pensando o épico da malandragem, do sujeito brasileiro… Mas agora acho que estamos entrando em outro território, e que tem a ver com o desmonte da espetacularidade, na cena como um todo, desmonte da coreografia. Aliás, um procedimento de trabalho que a Lu já está fazendo há muito tempo, pensando um corpo que não tem só passos a executar, descobrindo outras formas de contorno desse corpo. Isso também tem a ver com a interpretação, com a saída do estado de representação para outro estado, provocando outra relação com a plateia. E assim constatamos que o mais ideal para isso é o espaço do Tusp.
Lu
As manifestação
política, artística, sagrada ou profana, para eles não são em nada separadas. A
gente percebe isso, está tudo ali muito mais integrado mesmo. Por exemplo,
quando levamos a pré-estreia de Esquiva para a [Terra Indígena] Tenondé-Porã,
lá em Parelheiros, o mestre veio conversar e falou que o coração dele estava
confuso. Perguntou qual era a nossa religião. A gente estava fazendo uma
intervenção artística e, aí, como conversar com isso? Porque é tudo junto… A
gente amargou bem esse comentário porque ele não estava feliz, estava confuso.
Na medida em que entramos em contato com os Guaranis e fomos para a intervenção
urbana Esquiva, era essa questão do Xondaro
que ganhou relevo [o Xondaro é uma manifestação característica dessa cultura e
se refere não apenas à dança, mas ao treinamento do guerreiro e ao modo de ser
Guarani]. Pois o guerreiro Guarani treina a esquiva, o corpo que consegue se
esquivar facilmente, com leveza. Seu treinamento é a esquiva, é uma dança, uma
música, uma manifestação que se apoia no corpo e por meio dele se esquiva – porque
não se trata de confrontar, mas esquivar-se.
Quando a gente foi para o Brecht, quando a Cibele resolveu fazer Os Horácios e os Curiácios, nos deparamos com o mote de um guerra entre desiguais e que, ao final, depois da construção das três batalhas, na terceira delas o Horácio foge se esquivando. Com isso, ele ganha forças para voltar e separar o inimigo. O inimigo, por sua vez, se cansa e fica dividido.
Então, o que parecia uma fuga, na verdade era uma esquiva. E esse foi o link encontrado para se aproximar da questão dos Guaranis a partir da peça Os Horácios e os Curiácios. A guerra entre desiguais tinha a ver com essa esquiva-fuga, o que fez muito sentido e foi quase um chamado: a gente precisava olhar para tudo isso com mais atenção.
Lucia
Você falou [para
Santos] que esse estado de presença deles é natural e eu gostaria de discordar
disso. A Lu comentou sobre um treinamento que foi criado culturalmente e sobre
o qual a gente pode falar longamente. Esse comportamento, essa presença
sedimentados na história dos Guaranis. O Xondaro mostra exatamente isso. Existe
alguma coisa ali que é cultivada por uma modalidade cultural, uma experiência
social deles que é essa prática da esquiva que, claro, reflete um pensamento
sobre a experiência deles e talvez muito antiga, não deu para a gente rastrear quando
é inaugurada, anterior à chegada do Padre José de Anchieta e da Companhia de
Jesus. Só para pensarmos que para nós parece natural. Por exemplo, as coisas
que temo quando vejo os meninos [indígenas] comendo uma pizza e tomando uma
caipirinha de limão. Fico pensando: “O quanto pode ser que a gente já promova em
termos de alterações para o bem e para o mal nesse estado de presença”. Fico
pensando: “Tomara que o nosso teatro não corrompa alguma coisa que é uma
presença muito íntegra”. A repetição é uma das coisas que às vezes eu pego como
uma destruição, ela vai diferenciando e diferenciando… O natural é que eu
acho que não é exatamente assim.
Santos
Na minha fala de abertura, faltou pontuar que o texto é de Brecht, mediado
pelo Heiner Müller, e está praticamente na íntegra. Essa correlação da
dramaturgia de origem alemã com parte do universo dos povos originários do Brasil
não acontece de forma artificiosa, maniqueísta. Ao contrário, revela-se
orgânica a possibilidade de convívio, de experiência desses dois mundos. Traz aspectos
de um chamado aos públicos para deslocar-se também diante do que ele está
vendo, de uma perspectiva crítica, de distanciamento, que são características
fortes em Brecht. Isso acontece especialmente na troca de olhares entre atuantes
e espectadores na hora da ciranda, do pisar firme no tablado feito chão
enraizado. É ritualística a maneira como essa circularidade se dá, volta para a
cena e depois se desmancha, borrando esses territórios ora imaginários, ora
demarcados concretamente nas realidades geográficas e sociopolíticas do país.
Abre para participação do público:
Nayara Scalco – Bióloga e espectadora
Eu vim aqui hoje porque queria dividir com vocês o que a peça tocou em mim. Precisei ver duas vezes. Fiquei sabendo dela no domingo passado, pela manhã, por meio de uma amiga que viu no sábado e me mandou um WhatsApp, dizendo que pensou em mim desde o primeiro ao último minuto.
Fui uma das pessoas que chorou muito. Voltei ontem com a minha irmã porque precisava ver de novo, precisava ouvir os sons da peça. Tenho uma aproximação com o povo Guarani M’Byá desde 2005, eu trabalho com saúde indígena e a semana passada foi muito intensa na minha vida. O espetáculo me despertou uma série de sentimentos, desde a fidedignidade de várias cenas… Eu não sei quem já teve a oportunidade de ver um ritual de cura numa festa do povo Guarani M’Byá, mas algumas cenas me remeteram àquela atmosfera que para mim até hoje é indescritível. Não sei dizer o que são as sensações daquele espaço, daquele lugar, a presença dos Guarani M’Bya, o quanto que o texto de 1933 dialoga com a nossa realidade, que é muito mais intensa hoje. Mas não só a partir de um Bolsonaro, pois nós temos uma realidade histórica que vem dificultando esse contexto indígena e tudo isso foi mexendo muito comigo.
Vocês trouxeram elementos muito interessantes, do som, do cheiro. Então, a peça te traz uma atmosfera que me remeteu o tempo todo à casa de reza dos Guaranis e isso mexeu muito comigo. Queria parabenizar vocês porque acho que é fundamental a gente trazer esses elementos hoje para discussão.
Quando vocês perguntam na peça: “O que vocês fariam se vocês soubessem que a nossa forma de vida consumista vai acabar com o mundo em 30 anos?”… A nossa forma de vida consumista vai acabar com o mundo em 30 anos. E o que nós estamos fazendo hoje? A peça nos convida a pensar com elementos muito bacanas de fazer com que todo mundo conheça um pouquinho mais da cultura Guarani M’Bya que é, como você colocou [para Lu], a gente sequer sabe, num modo geral, que eles estão na cidade de São Paulo, na aldeia do Jaraguá, por exemplo.
Para mim, a atitude mais linda que eles tiveram foi o dia em que desligaram a internet e a televisão em protesto ao processo de desmarcação de terra deles. Enfim, queria dividir um pouco dessa minha sensação porque foi uma peça que me tocou muito e precisei realmente ver de novo.
Lucia
A
gente esteve no ritual da erva-mate, a gente foi na passagem do ritual do novo
para velho e, realmente, acho que a referência do espaço é essa aí mesmo. O
Marcos inclusive falava um trecho na apresentação dele que tinha a ver com essa
experiência indescritível sobre a qual você estava falando e que ele tentava
descrever em um minuto, mas depois ele desistiu. O que acontece na casa de reza
também não é a nossa ficção sobre o que é uma experiência transcendental ou
algo assim.
Marcos Damigo – Ator do espetáculo
Eu acho que esse foi um dos grandes nós do trabalho, porque a gente narra
uma luta entre dois povos e nós somos um dos povos. Nós somos brancos e de um
recorte muito específico, ainda por cima, porque somos todos realmente brancos,
classe média, identificados com o outro lado da batalha, para complexificar um
pouco mais a situação. Sinto que muito tempo de ensaio foi dedicado à “dichavação”
dessa questão de como traduzir sem representar, como trazer para a gente e ao
mesmo tempo instaurar sem ocupar um lugar de fala que não é o seu. Enfim, é
muito complexo e acho que a gente ainda não resolveu, e que talvez nem seja o
caso de resolver. Essa fricção é o que move o trabalho também, mas é bom ouvir
um depoimento como o seu.
Emerson – Espectador
Eu
vi o espetáculo e tenho uma colocação. O que o Valmir, a Lucia e a Lu disseram
me esclarece um pouco a sensação que tive ao sair da sessão. Estudo teatro e, como
artista, lidamos com o cotidiano de treinamento na busca de chegar a estados ou
lugares para representar algo. Minha sensação vinha da criança indígena em
cena, era o que ficava forte em mim. Fiquei pensando o porquê, o que tinha
nessa criança , esse corpo indígena junto com outros atores. A criança que em
determinado momento está tossindo, que passa para lá e para cá, que conduz os
pais.
A gente tenta racionalizar e pensar que esse é um elemento distanciador do Brecht e que te leva a outro lugar: ao invés de distanciar, te chama para a ancestralidade. O ser indígena tem em si, já na sua cultura, essa prática. Carrega em seu próprio corpo toda essa ancestralidade. Quando em cena, o tempo inteiro meu olho como que atritava com aquele corpo que não é dali, de dentro do teatro, mas ao mesmo tempo surge natural, ali, na dele, sem criar vozes, sem treinar corpo, sem precisar representar, mas sendo eles mesmos.
E fechando com a fala da Kerexu [que acompanhava a criança, mirim, no
coro convidado do povo Guarani M’Bya], aí eu
não estava mais no teatro. Não entendia o que ela dizia, mas estava sentido, com
outros tipos de percepção, uma ancestralidade com a sonoridade, por meio do tom
que ela se expressava, daí eu já estava em outro lugar escutando. E é muito
louco também esse movimento da gente como espectador faz, de ir até lá dançar
junto quando vocês chamam e, ao mesmo tempo, não deixar de ser espectador. Isso
tem muito a ver com o Brecht, a tentativa de te deslocar o tempo inteiro na
experiência com a arte. Fiquei pensando no porquê desse texto, quando poderia
ser qualquer outro sobre o embate entre dois grupos. Porque é tão forte a
questão indígena e poderia ser uma peça só sobre ela. E é, de certa forma. Vocês
acharam um texto, um caminho.
Lu
O texto teve a ver mesmo com a guerra entre desiguais. Na verdade, no
Brecht, um tem o arco maior e o outro, um pequeno. Um tem uma lança… Então
são as mesmas armas, mas com alcances diferentes. O texto é muito claro quanto
a isso, a desigualdade. Por isso a questão da esquiva-fuga no texto, que
comentei há pouco. É uma peça didática, uma peça de aprendizagem, portanto tem tudo
a ver levá-la para escolas, para o ensino médio, porque tem informação para
passar e a gente precisa chegar a essa faixa etária. Estamos fazendo nos
teatros, mas muito provavelmente o futuro do trabalho tenha a ver com isso, em
ir para as escolas.
Lucia
Tem muita gente que não gosta das peças didáticas do Brecht, assim como muitas
pessoas de teatro que as acham dramaturgia menor se comparadas a outras fases
da produção desse autor. Quebrou minha perna fazer essa peça porque eu também
pensava assim. Vejo que o texto tem uma concisão, como se fosse uma plataforma,
que é uma coisa muito difícil da dramaturgia conseguir fazer. A gente não mexeu tanto na peça, mas tentou
muito. Fomos obrigados a retornar porque o cara é terrível, chega numa espécie
de estrutura que é muito sintética e que tem muito a ver com a cena
contemporânea. Porque a peça é para ser invadida e ocupada pelo que você puder
refletir sobre o aprendizado que ela te proporciona individualmente e como
coletivo. Então, realmente, a experiência que tive quebrou a opinião acerca das
peças didáticas.
Outra coisa que eu queria falar é que os Guaranis treinam, e treinam muito. Vou voltar nesse ponto do não-natural. Eles treinam muito porque têm uma elaboração muito grande em termos de experiência social. A Lu pode contar quantas vezes eles treinam o Xondaro por dia. Talvez eles não treinem o teatro, mas eles têm um corpo construído de alguma forma que faz com que a presença deles seja muito potente. Essa presença silenciosa é uma coisa dificílima.
E pensando a criança, ontem eu estava assistindo à cena da cura, que é de verdade e a Kerexu já disse que não está representando, acho que ela faz como se dedicasse à Lu, dada a compreensão que ela teve não da cena, mas do que a Lu disse que precisava como experiência humana, com a morte do pai [da bailarina] e tudo mais, a Kerexu faz nessa chave. Mas pensando naquela cena do Galileu Galilei [em A vida de Galileu], que tem o Andreas [filho da governanta] e o Brecht diz que o coloca ali para que a gente seja obrigado a ver a cena do Galileu determinada pelo ponto de vista da criança. E ontem, vendo o espetáculo, tive exatamente a mesma sensação, de que eu deveria olhar pelo ponto de vista da criança para entender o que estava se processando de mais profundo naquele momento.
Santos
Na
sessão que o Emerson comentou, a Kerexu falou predominantemente em tupi e às
vezes em português. Nesse dia, ela falava e se expressava emocionalmente em
tupi, mas quem não compreende a língua, como no meu caso, foi atravessadíssimo.
Incrível como isso acontece. Lembrando que essa foi a última peça de
aprendizagem do Brecht, escrita em 1933, quando já está no exílio à época, sob
o nazismo. Eu nunca havia visto uma experiência cênica a partir de Os Horácios
e os Curiácios, com vocês testemunhamos
como o teatro, a dança e a arte acontecem em simbiose.
Lu
Sobre a questão da criança, a gente fez um encontro de Xondaros, ficamos
seis dias dormindo na aldeia e chegaram vários Xondaros. Impressiona a relação
que eles estabelecem com as crianças. Onde estão as nossas crianças? Os nossos
velhos? Esse é um buraco que a gente tem na nossa sociedade e eles vivenciam
isso claramente. Era uma reverência absurda com os Xondaros mais velhos, eles
falando por horas e todo mundo ouvindo. Eles falando num guarani arcaico, uma
coisa que os jovens nem falam mais, e as crianças o tempo inteiro atravessando
o espaço, e ninguém atrapalha. Não existe essa de deixar a criança em casa.
Valmir
Pode detalhar o que é o Xondaro?
Lu
É o guerreiro Guarani e, também,
um modo de vida deles, uma presença. Xondaro é esse que treina a esquiva, é o
canto e a dança como luta, mas como é tudo junto, como eu falei das
manifestações, então não é uma pessoa. Na verdade, é um pensamento que está por
trás desse corpo.
Valmir
O
Brecht declara que a presença do espadachim, da espada na trama é uma
inspiração vinda da Ópera de Pequim, uma citação portanto oriental. Dá para
fazer um vínculo com isso?
Lu
É oriental e tem muito a ver com o corpo do Aikidô [arte marcial japonesa].
Inclusive, tem um texto do Renato [Sztutman, antropólogo orientador no processo
de criação] no programa de Os um e os outros que trata da esquiva. “O
canto e a dança como luta, a luta como canto e dança – é um modo de viver na
cidade sem se deixar capturar por ela. É assim que a Cia. Oito e a Cia. Livre se
permitem afetar pela esquiva Guarani para criar a sua própria esquiva, o seu
próprio modo de habitar a Pauliceia. Redescobrir uma São Paulo indígena, Guarani,
tanto no passado como no presente. Dançar e cantar sobre antigas ocupações
indígenas! (…) Dançar conforme uma outra música!”.
Beth Néspoli – Teatrojornal
A
respeito do lugar de fala, fica muito claro quando vocês vão lá e entram em
contato com essa cultura e compartilham com a gente, como foi feito no Vem
vai, o caminhos dos mortos, esse
enriquecimento de culturas que faz todo mundo se aprimorar ou ter uma outra
visão de mundo possível. A diferença é quando essas pessoas vêm para a cena, e
não só para vocês, porque de qualquer maneira vocês já estariam contaminados
por isso se fosse só uma pesquisa e se eles não estivessem como presença ali na
cena. A mudança é como poética, como arte, como forma de afetar essas
presenças, esse real em cena.
Talvez uma coisa meio óbvia, mas quando se diz lugar de fala, tem essas confusões todas e fica muito evidente a importância disso quando ganha esse tipo de dimensão, como acontece nesse espetáculo. Mas como é isso para vocês? É possível de novo Vem vai, o caminhos dos mortos, ou isso já é uma impossibilidade? Ou talvez vocês nem consigam pensar sobre isso nesse momento. O Valmir falou sobre ética, quando você vai lá, faz uma pesquisa e traz para cá. Mesmo o [diretor inglês] Peter Brook, que trabalha com um elenco multicultural, recebe críticas pontuais sobre isso também, sobre esse europeu que vai lá e tem essa ideia de ampliar a sua cultura, mas, na verdade, nem sempre está trocando, praticando essa alteridade toda. É muito complicado mesmo e eu não sei se estou consigo formular exatamente, mas queria saber de vocês como seria esse caminho de volta do Vem vai. É possível? Não é mais?
Marina Andrade Leonardi, arquiteta e espectadora Complementando, eu fiquei curiosa para entender, na prática, como se deu a integração deles no processo de construção do espetáculo. Se estiveram presentes, se estavam sempre nos ensaios ou no processo criativo também.
Lucia
Vou responder à pergunta da Beth. Creio que sim no Vem vai, o caminho dos mortos [2007-2009], porque ele se construiu como um plano de narrativa. Então, a gente poderia continuar narrando porque nós nos identificávamos como Povo das Paulistas narrando uma história. Acho que a gente não voltaria a fazer, por exemplo, A travessia da calunga grande [2013], que foi um espetáculo muito problemático, realizado em um momento político da sociedade brasileira no qual eu, por exemplo, podia atuar como uma escravizada, coisa que jamais faria. Para mim, neste momento, esse texto teria que ser reescrito para que a gente pudesse fazê-lo [dramaturgia de Gabriela Amaral Almeida em parceria com a Cia. Livre]. E porque também foi um trabalho que convidou a militância dos movimentos negros, atores e atrizes que fizeram o coro com a gente, mas esse procedimento tampouco conseguiu constituir uma coralidade. E aí, sim, uma coralidade pensada até no modelo do teatro grego, porque o texto era inspirado no Édipo. Enfim, acredito que esse espetáculo não poderia ser feito pela companhia pela questão mesmo da representatividade, o plano político do que é o movimento negro e o que ele está reclamando hoje.
Já Raptada pelo raio [2009], também se sustenta pela questão da narrativa, nós somos contadores de uma história, só que não estamos tão implicados na nossa identidade, vamos dizer, ou na nossa representatividade da branquitude, que agora isso se tornou uma questão mais importante. A gente está mais implicado em saber que, de fato, representa uma forma hegemônica e que desfruta de uma série de privilégios em nossa branquitude. Então, acho que isso está presente nesse novo espetáculo. Não dá para fazer essa peça sem a presença dos Guaranis porque, de fato, eles fazem com que a gente enxergue a nossa branquitude e lide com ela na cena e em todos os dias em que a equipe chega no teatro e vamos comer o lanche junto com eles. Agora, a Lu pode contar um pouco como isso se deu enquanto processo. Eles escancaram a nossa branquitude e a nossa branquitude tem que ser pensada, os nossos privilégios têm de ser politicamente pensados no nosso teatro.
Lu
A presença deles foi uma questão também para nós durante todo o processo, no sentido de como conseguir ensaiar, se teria que ir para lá [na aldeia] ou vir para cá; se tinha que trazer um Guarani para ficar com um mês para conviver com a gente. Que sentido faria para ele? Eu pensava muito no músico, em chamar algum músico, porque a linguagem poderia vir mais pontual. Enfim, mil questões foram levantadas. A gente acabou chegando na aldeia Kalipety [na Terra Indígena Tenondé-Porã], onde a gente fez todo o processo de Esquiva [2016]e Juruá [2018], chegamos a ir para o Jaraguá, na Tenondé-Porã [aldeia com o mesmo nome da Terra Indígena], mas na Kalipety uma liderança ficou muito próxima e, querendo ou não, faz sete anos que ela nos conhece. Então era um lugar de confiança, já estabelecido. Sabem quem somos e acho que a gente tem essa rebarba desse tempo, por mais que algumas pessoas não tiveram todo esse histórico. São sete anos se aproximando e chegando. Quando perguntamos quem participaria, eles próprios se organizaram. A criança, a gente nem sabia qual idade tinha. Eles não ensaiaram com a gente. Ensaiaram apenas na casa da Lucia, uma semanas antes.
Lucia
Nós fomos, mostramos o espetáculo lá, eles assistiram mais ou menos, a Kerexu não assistiu, mas os músicos sim, foram, tocaram com a gente, mas na hora que eles quiseram, sem combinar. No Ipiranga [abertura de processo de Os um e os outros através da ação Morte e dependência na terra do pau Brasil, na Ocupação Museu do Ipiranga em abril de 2019], eles vieram, apresentaram o Xondaro, assistiram ao nosso trabalho e, no dia seguinte, propuseram uma entrada, o que tinha a ver também com a presença de duas lideranças que são muito eloquentes, falam muito bem, que são a Jerá [Poty Mirï, professora e liderança Guarani] e o Thiago [Henrique Karai Djekupe, ativista Guarani], mas que não estão agora fazendo. Essa ideia de que a liderança deveria representá-los, eles mesmos desmontaram à medida em que as lideranças não foram, então eles escolheram duas famílias. A Kerexu me falou recentemente, numa conversa durante nosso lanche, que o nome dela era Kerexu Porã, ela é a criança, e que ela não conseguia falar em público porque era muito tímida e há um tempo conseguiu falar, então o seu nome mudou para Kerexu Mirim. O fato dela ter mudado de Porã para Mirim é como se ela tivesse se empoderado ou se emancipado. Estava me dizendo o quanto agora está muito mais preparada por causa do espetáculo para ser a Kerexu que ela deseja ser.
Kerexu é um nome que tem a ver com crianças que nascem muito pequenas, é como uma flor muito pequenininha, muito delicada. Mas a princípio isso não vem exatamente do fato de ela já ser alguma coisa; tem a ver com o entendimento deles de que essa família é que deveria vir para estar junto com a gente.
E a gente só soube quem estaria com a gente um dia antes da estreia. Chegaram no dia da estreia. As coisas foram mudando, eles foram se integrando. No começo, por exemplo, ela não falava, eles propuseram como terminaria o espetáculo. Ela disse: “Deixa que eu faço”. Eles propuseram, vamos cantar aqui, vamos cantar ali e a gente foi acolhendo as mudanças. Então, como acontece hoje é muito diferente da estreia.
E acho também que a Cibele dirige bem pouco, ela fala o mínimo possível. Às vezes dá vontade de falar. No dia em que vi o Rafael, de 16 anos, se apresentar e dizer que era um agricultor e que queria agradecer à tia por ter dado a ele a oportunidade de ser agricultor… Quem que poderia escrever um texto mais lindo do que esse? Mas também nunca mais ele falou, mesmo todo mundo pedindo.
Santos
Para encerrar, dado o adiantado da hora, queria que vocês falassem sobre aquela convocação, daquele passagem em que o público participar da roda e dessa musicalidade.
Lu
O final do espetáculo foi uma proposta da Kerexu. São dois movimentos. A gente faz um jogo, tem uma partitura que vai jogando com a música e entre nós. O final dessa partitura tem a ver com o mover-se coletivamente, num mesmo pulso. Esse apoio no espaço horizontal vai gerando uma força centrípeta, o centro do espaço em relação a esse círculo. E se você se deixar apoiar por esse espaço e por esse tempo, entra no que a gente chama de prazer motor, prazer de se mover. E eu aposto nisso. O público percebe esse prazer motor e isso também provoca o desejo de estar junto, de que podemos estar juntos vivendo aquilo, aquela sensação. Então, antes de convidar, a gente propicia essa frequência do espaço, essa força centrípeta, de maneira que o público fica facilzinho de vir… Algumas pessoas ficam observando, mas a grande maioria normalmente se disponibiliza, fica permeável ao convite.
Santos
Quero lembrar e agradecer às três pessoas da equipe de criação que vieram acompanhar e participar dessa conversa: a Fernanda Haucke, o Roberto Alencar e o Marcos Damigo. Obrigado às presenças da Lucia Romano e da Lu Favoreto. Bem como à equipe do Itaú Cultural e às intérpretes de Libras. Até a próxima.
.:. O espetáculo Os um e os outros cumpriu temporadas no Tusp, no Centro Universitário Maria Antônia, de 11 a 27 de outubro de 2019, e no Sesc Pompeia, de 5 a 22 de setembro.
.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Os um e os outros.
Equipe de criação:
Jogadorxs: Adriano Salhab, Cibele Forjaz, Fernanda Haucke, Fredy Allan, Gisele Calazans, Lu Favoreto, Lucia Romano, Marcos Damigo, Roberto Alencar, Vanessa Medeiros
Contrarregra em cena: Jackson Santos
Músicos em cena: Adriano Salhab e Gabriel Máximo
Composições de trilha original, direção musical e arranjos: Adriano Salhab e Guilherme Calzavara
Desenho de som e sonoplastia: Ivan Garro
Direção de arte: Cla Mor, Marília de Oliveira Cavalheiro e Valentina Soares
Arquitetura cênica e objetos: Marília de Oliveira Cavalheiro
Figurinos e objetos: Valentina Soares
Vídeo: Cla Mor e Fábio Riff
Assistência de vídeo: Annick Matalon, Lucas Brandão e Mariana Caldas
Operação de vídeo: Cla Mor
Vídeo mapping: Fábio Riff e Mariana Caldas/Vapor 324
Luz: Cibele Forjaz e Matheus Brant
Operação de luz: Matheus Brant e Nara Zocher
Identidade visual e projeto gráfico: Julia Valiengo
Assistência de direção: Gabriel Máximo e Jackson Santos
Preparação e direção vocal: Lucia Gayotto
Preparação corporal e direção de movimento: Lu Favoreto
Assessoria de imprensa: Márcia Marques | Canal Aberto
Produtoras: Bia Fonseca e Iza Marie Miceli | Nós 2 Produtoras Associadas
Direção-geral e encenação: Cibele Forjaz
Coro convidado do povo Guarani M’Bya [em revezamento]: Jerá Poty Mirī | Jerá Guarani, Tatarndy Germano, Karai Negão, Karai Tiago, Poty Priscila, Karai Tataendy Ricardo, Claudio Karai, Cleonice Kerexu Mirim, Germano Nhamandu e Justina Kerexu