BiocríticaFátima Saadi conta...
No prólogo e no epílogo de seu livro O teatro é necessário?, o ensaísta e professor Denis Guénoun (nascido em 1946) tece uma série de considerações a respeito da vida do teatro, que, cada vez mais, ultrapassa as atividades de formação e exercício das profissões estritamente relacionadas à criação de espetáculos teatrais e se espraia pelo que antes era considerado com certo desdém pelos profissionais das artes cênicas – e também pela imprensa – como marginal, menor, utilitário ou terapêutico.[1]
A amplitude do espectro de atividades e interesses abarcado pelos 11 sites, blogs e revistas eletrônicas de crítica, que serão o ponto de partida deste pequeno texto para o projeto Biocrítica, do Teatrojornal, é a primeira e importantíssima diferença que vejo em relação às colunas teatrais como as conhecíamos, digamos, desde a década de 1980 até o início da década de 2010, em jornais e também em revistas impressas, em especial as não acadêmicas.[2]
Em 1981, o crítico Yan Michalski (1932-1990), que trabalhava no Jornal do Brasil, desde 1964, concede uma entrevista aos Cadernos de Teatro do Tablado na qual lamenta a diminuição, na imprensa, dos espaços dedicados à cultura de modo geral e ao teatro em particular. Menciona explicitamente que O Estado de S. Paulo, que, na época, dispunha de três críticos, Clóvis Garcia (1921-1912), Ilka Marinho Zanotto (1930) e Mariangela Alves de Lima (1947), estava restringindo a colaboração de cada um deles a quatro ou cinco pequenas matérias por mês.[3] Nem sempre tinha sido assim. Nos primeiros meses de trabalho de Yan no Jornal do Brasil, ele apresenta notícias do teatro francês (4/6/64); avalia e faz sugestões a propósito da atuação do Serviço Nacional de Teatro (13/6) e dos candidatos à direção do órgão (2/7); comenta a falta de infraestrutura do Teatro Municipal de Niterói, cujos técnicos alugavam a preços extorsivos os equipamentos de luz de que o teatro não dispunha (20/6); deplora o baixo nível do repertório teatral dos clubes do Rio de Janeiro (30/8) e, em 18/9, a pedido da Associação de Teatro Amador, elabora uma lista de peças que poderiam ser montadas por seus afiliados, oferecendo de quebra o endereço do Teatro de Arena e do Tablado, onde cópias delas poderiam ser encontradas. Era todo um mundo que se descortinava para o leitor, em torno e para além do espetáculo, dando relevo à análise crítica das montagens, inserindo-a em seu tempo e tornando mais palpável o contexto em que a vida teatral se desenrolava.
As críticas se preocupam com os modos de produção, com a composição da equipe, o histórico do grupo ou companhia, os pressupostos da encenação, buscando criar uma interface entre quem escreve, quem produz e quem lê. O trabalho da crítica evolui segundo uma partitura que não está previamente composta. Nas análises mais bem-sucedidas, parte-se do jogo instaurado entre, por um lado, o espetáculo, suas condições de produção/criação e enunciação e, por outro, a disponibilidade e o repertório de quem assiste, com vistas a refratá-lo, lançando-o em uma cadeia de conexões e sentidos que o tangencia sem traduzi-lo, que o põe em questão sem julgá-lo, mas propondo sobre ele um juízo suficientemente aberto para promover ou acolher o dissenso e suficientemente pessoal para que ali reconheçamos uma nova obra em articulação com a obra de que se partiu
Em 1984, já desligado da crítica jornalística desde 1982, depois de 19 anos de trabalho, Yan publica no número comemorativo da centésima edição dos Cadernos de Teatro o artigo O declínio da crítica na imprensa brasileira no qual não apenas lamenta que a crítica teatral se veja “reduzida a pequenos comentários opinativos sobre espetáculos isolados, ainda tolerados, mais do que valorizados e prestigiados, em alguns raros diários e revistas semanais”, como detecta uma “ofensiva anti-analítica”, que considerava os leitores “os críticos mais especializados” do teatro, abrindo para eles e suas opiniões as páginas do Caderno B, ao mesmo tempo que restringia a quase nada o espaço dedicado às colunas sobre teatro. [4] Para ele as perspectivas da crítica teatral jornalística no Brasil eram melancólicas: jornais desaparecendo devido a sucessivas crises sistêmicas, ou sobrevivendo a duras penas como anunciantes de produtos, entre eles o teatro, que os leitores não valorizavam mais como antes.
Ele se voltou então para a universidade, na esperança de que ali o pensamento crítico sobre teatro encontrasse campo fértil. Como professor da cadeira de crítica teatral do Departamento de Teoria do Teatro da Unirio, propôs que criássemos uma revista, que coordenou por quatro anos, até que ela encerrou sua trajetória em 1983, depois de infrutíferas tentativas de obter algum apoio junto a órgãos públicos e editoras.
O número zero da revista Ensaio/Teatro foi lançado em 1979 e incluía críticas de espetáculos, ensaios sobre temas ligados à história e à teoria do teatro, entrevistas e resenhas. Esse esquema se manteve relativamente inalterado por três números, que se preocuparam em cobrir, com vagar e na profundidade possível para nós estudantes, o que achávamos relevante na vida teatral do momento – do Macunaíma, de Antunes Filho (1929-2019), passando pelos 12 espetáculos que a segunda edição do projeto Mambembão trouxe de várias cidades do país para o Rio e São Paulo, até as pesquisas absolutamente marginais de Amir Haddad (1937) com o grupo que acabou se transformando no Tá na Rua, para citar apenas algumas das matérias.[5]
Já estávamos com a pauta do quarto número engatilhada, quando uma mudança de rota se impôs. Desde 1965 a Escola de Teatro funcionava na Praia do Flamengo, 132. No dia 13 de março de 1980, professores, funcionários e alunos foram expulsos de lá pela tropa de choque da PM, no governo do general João Batista Figueiredo, irmão do então reitor da universidade, o dramaturgo Guilherme Figueiredo. A explicação? Havia corrido o boato de que a União Nacional dos Estudantes iria retomar o prédio que ocupara de 1942 até 1º de abril de 1964, quando os novos donos do poder o incendiaram, na tentativa de reduzir a cinzas a participação dos estudantes na vida do país, sob o regime ditatorial que se iniciava.
Diante dos fatos, decidimos dedicar a edição da Ensaio/Teatro à história do prédio, desde o momento em que os estudantes expulsaram dali o Clube Germânia, durante a campanha pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial em apoio às tropas aliadas, até a nossa violenta expulsão seguida pela demolição do prédio, ao arrepio da lei. Entrevistamos antigos presidentes da UNE e até Nelson Rodrigues (1912-1980), que, por algum tempo, era o jornalista responsável pelo noticiário da entidade. Foram ouvidos integrantes do Centro Popular de Cultura, o CPC, e, também por meio de entrevistas, foi resgatada uma parte da pré-história da Escola de Teatro, que se originou do Conservatório Nacional de Teatro, ligado em seus primórdios ao Serviço Nacional de Teatro.
O editorial desse número explica a situação, reiterando, no entanto, nossa intenção de “a partir do próximo número dedicar-nos ao nosso propósito de contribuir, através de edições trimestrais, para o desenvolvimento da ensaística teatral brasileira, com estudos minuciosos de diversos aspectos da dramaturgia e da encenação no Brasil e no mundo.”[6] Passados 40 anos, e olhando os seis números editados (cada um num formato, ao sabor dos recursos e/ou do apoiador do momento), creio que a edição especial sobre a Praia do Flamengo, 132, que estampa tão orgulhosamente a palavra TEATRO na capa e mostra, na quarta capa, detalhes arquitetônicos da nossa combalida fachada, prefigurava, mantidas as devidíssimas proporções, a preocupação com o entrelaçamento das questões mais prementes do momento e a vida do teatro, que caracteriza os sites, blogs e revistas eletrônicas de hoje.
Tudo o que diz respeito ao teatro ou serve para refletir sobre ele e sobre o contexto social, político e cultural em que ele se insere encontra espaço nesses novos veículos. Cada um tem seu recorte e monta as pautas em consequência de seu horizonte de interesses. De modo geral, privilegiam espetáculos fora do mainstream e iniciativas de grupos e companhias estáveis cujo trabalho ofereça articulações interessantes a respeito das questões candentes no momento. É preciso sublinhar que esse tipo de trabalho não encontrava praticamente nenhum espaço na mídia impressa. Além disso, críticas de espetáculos de alunos de cursos de teatro e de grupos estreantes nas lides teatrais vêm integrar as edições, ao lado de artigos teóricos (brasileiros e estrangeiros), coberturas de mostras, festivais, seminários e encontros, alguns organizados pelos próprios sites e tendo a prática da crítica como mote.
Desde a primeira década do século XXI e, mais especificamente desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, as leituras mais acuradas das iniciativas teatrais entrelaçam de modo vigoroso criação artística, lutas identitárias, militância política e um referencial teórico bastante amplo, que inclui muitas áreas do pensamento e busca fornecer instrumentos que nos habilitem a desler a narrativa oficial da realidade brasileira e a reconfigurá-la segundo novos parâmetros.
Muda não só o referencial teórico, mas também a relação de quem escreve com aquilo que está sendo abordado. Cai por terra o mito da imparcialidade, que, de algum modo, visava a assegurar aos leitores/espectadores/consumidores que o autor do texto apenas aplicava ao objeto em questão o seu conhecimento técnico. Não que esse conhecimento deixe de ser importante, mas outras variáveis vêm se juntar a ele.
Aquele que escreve se lança no texto, deixa marcas que antes talvez se esmerasse em ocultar. Descreve suas sensações e impressões, antes e durante a sessão, menciona, se for o caso, seu lugar de fala, externa seus sentimentos diante do que acabou de ver, confessa que foi lançado de uma ideia a outra até se decidir pela que vai nos apresentar e sublinha que ela tangencia o espetáculo, criando uma nova narrativa com ele, não sobre ele. Em conexão com isso, desaparece quase completamente a análise totalizadora que, decupando o espetáculo, buscava oferecer aos leitores, mesmo àqueles que não o tivessem visto, a possibilidade de reconstruí-lo a partir de seus elementos. O espetáculo é reiterado como uma vivência e a crítica só adquirirá seu sentido pleno quando lida por quem assistiu à montagem.
O modelo de crítica jornalística a que estávamos habituados começava por considerações sobre o dramaturgo, em seguida fazia um apanhado da trama, depois mencionava en passant alguns dos elementos cênicos, silenciando sobre os outros, e terminava com a recomendação do espetáculo (implícita o mais das vezes) ou por sua condenação sem atenuantes (essa às vezes ofensivamente explícita). Na crítica não normativa proposta pelas publicações virtuais de que estamos falando, o texto teatral perde muito da sua centralidade na produção do sentido do espetáculo. Os demais elementos cênicos adquirem relevância e a narrativa desenvolvida por qualquer um deles pode servir de fio condutor ao raciocínio que está sendo proposto na apreciação do espetáculo. As críticas se preocupam com os modos de produção, com a composição da equipe, o histórico do grupo ou companhia, os pressupostos da encenação, buscando criar uma interface entre quem escreve, quem produz e quem lê. O trabalho da crítica evolui segundo uma partitura que não está previamente composta. Nas análises mais bem-sucedidas, parte-se do jogo instaurado entre, por um lado, o espetáculo, suas condições de produção/criação e enunciação e, por outro, a disponibilidade e o repertório de quem assiste, com vistas a refratá-lo, lançando-o em uma cadeia de conexões e sentidos que o tangencia sem traduzi-lo, que o põe em questão sem julgá-lo, mas propondo sobre ele um juízo suficientemente aberto para promover ou acolher o dissenso e suficientemente pessoal para que ali reconheçamos uma nova obra em articulação com a obra de que se partiu.
Os blogs, sites e revistas se originam do desejo de partilhar o pensamento sobre teatro construído de forma mais aprofundada do que nas críticas jornalísticas, porém evitando o jargão acadêmico. Em alguns casos, seu território faz fronteira tanto com a universidade quanto com o jornalismo. A revista eletrônica Questão de Crítica começou pelo desejo de Daniele Avila Small, então aluna do curso de Teoria do Teatro da Unirio, de ampliar o alcance das críticas que postava em seu blog pessoal. A Tribuna do Cretino é um projeto de extensão proposto por Edson Fernando, professor da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará no intuito de acompanhar o panorama teatral de Belém. Outras dessas publicações provêm do jornalismo, como o Teatrojornal, o blog do Macksen, o Satisfeita, Yolanda? e o site Horizonte da Cena, que, nas palavras de Luciana Romagnolli, “nasceu em um salto das páginas de jornal para as páginas digitais”.[7] O processo de qualificação acadêmica de muitos dos participantes desses veículos transparece, sobretudo, no interesse pela construção de um instrumental que mobilize diferentes saberes na apreensão do fenômeno teatral, encarado de modo “expandido”, para retomar um termo recorrente nas referências aos múltiplos terrenos em que o teatro se ancora. Esse processo de pensamento, integra, de forma cada vez mais decidida, a urgência do real que nos confronta, sem escapatória possível, com a imensa desigualdade do país, assentada sobre, para enumerarmos apenas alguns dos fatores, a espoliação capitalista, o racismo estrutural, o patrimonialismo e o ódio ao diferente, categoria sob a qual são englobadas todas as minorias sociais e também boa parte dos artistas.
Tentar lançar sobre a vida do teatro um olhar que a projete contra tudo o que a cerca sem perder de vista que há uma especificidade nessa maneira de estar no mundo é a tarefa deste momento na crítica do teatro. Muita coisa mudou para melhor. Quem escreve atualmente sobre a vida do teatro em sites, blogs e revistas eletrônicas não precisa, como os jornalistas da grande mídia, se submeter ao fantasma da limitação de espaço, nem à linha política do jornal nem tampouco ao “gosto médio” do leitor (por menos explícitas que fossem essas duas últimas coerções). Ainda há prazos a cumprir, mas não mais a obrigatoriedade de cobrir toda a temporada teatral da cidade.
O destinatário de uma crítica em jornais da grande imprensa era, sem dúvida alguma, o leitor/espectador/consumidor. Yan deixa isso bem claro na entrevista de 1981 aos Cadernos de Teatro:
“O que me estimula é mais um tipo de diálogo que se tenta estabelecer com o leitor no sentido de talvez dar a ele elementos para uma fruição mais completa do ato de ir ao teatro: e sobretudo estimulá-lo a comparar a sua própria reflexão crítica com a reflexão crítica do crítico. Claro que isso nem sempre acontece, mas quando acontece acho que aí se cumpre uma função realmente importante. Acho que positivamente não faz parte da função da crítica jornalística estabelecer um diálogo com o criador do espetáculo. E isso muitas vezes me é cobrado. Eu acho que é evidente que tendo que entregar a matéria no dia seguinte, de manhã, com uma limitação de 60 linhas, e sabendo que eu tenho que fazer uma coisa que tem de ser assimilada por alguém realmente leigo, eu não posso entrar num tipo de cogitações que possam trazer alguma informação nova ao diretor, ao ator ou coisa assim. Isso seria o papel da revista especializada.”[8]
Quem é o destinatário, o interlocutor privilegiado do que se escreve nos blogs, sites e revistas eletrônicas de crítica? Numa primeira aproximação, eu diria que são os que se interessam pela reflexão sobre arte, aí incluídos os criadores. Muitos dos que idealizam e escrevem nessas publicações são eles próprios artistas (atores, autores, performers, dramaturgistas, cenógrafos, designers, iluminadores, músicos, bailarinos e assim por diante). O aficionado diletante não está excluído, mas precisa ter curiosidade pelas articulações do fenômeno artístico, porque, de modo geral, as críticas vão dialogar com os pressupostos (sempre singulares) dos espetáculos e procurar surpreender o trabalho de linguagem desenvolvido para configurá-los.
O diálogo com outras formas artísticas para além das artes da presença é a marca distintiva do trabalho de algumas dessas publicações. A Revista Barril, de Salvador, dedicou-se, de início, ao teatro em suas diversas manifestações e, dois anos depois, transformou-se numa revista de ensaios sobre artes. Em São Paulo, a revista Antro Positivo se distingue por sua abertura a outros domínios e por seu incentivo à criação literária, musical e visual. O site Horizonte da Cena conta em sua equipe com o crítico de cinema Victor Guimarães que escreve não só sobre espetáculos teatrais.[9]
As publicações virtuais se dedicam ainda à relevante função de registro da vida teatral local, não só por meio de notícias e críticas dos espetáculos que compõem o panorama da cidade ou do estado, mas também pela organização de dossiês com farto material documental e reflexivo, nos quais têm papel central as detalhadas entrevistas com artistas, gestores e animadores culturais, historiadores e arquivistas.
O blog Satisfeita, Yolanda?, além de promover saborosas conversas com os profissionais pernambucanos de diversas áreas e épocas, realizou um trabalho importantíssimo ao acompanhar e denunciar os desmandos da censura em relação ao espetáculo O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, com Renata Carvalho, tendo montado um dossiê a respeito de seus dissabores, exemplares das atividades repressivas que se desencadearam com fúria sobre os artistas desde a campanha eleitoral de Bolsonaro à Presidência, intensificando-se desde então. O site Agora Crítica Teatral desenvolve um projeto de montagens em convênio com o Goethe Institut de Porto Alegre no qual os editores funcionam como dramaturgistas, publicando em seguida o relato dos processos de criação. O blog Parágrafo Cerrado, de Cuiabá, se originou de uma oficina de Beth Néspoli, promovida pelo Sesc local em 2016. O grupo de paragrafadores, todos envolvidos com a vida teatral da cidade, se reveza escrevendo sobre os espetáculos de seus colegas e vivencia, assim, a crítica nas duas pontas. Com isso, aprofundam a análise da conjuntura do teatro não apenas em sua cidade, mas no estado do Mato Grosso como um todo.
As formas e as circunstâncias da apreciação crítica são postas em jogo e disso resultam textos originados de conversas ou de troca de mensagens entre dois comentadores que se dispõem a pensar sobre o que viram no teatro; há o desafio de críticas-relâmpago, entregues poucos minutos após o fim do espetáculo e também críticas escritas por horas a fio em uma instalação que tenha alguma interface com o espetáculo, e narradas por um leitor ao longo do processo (a revista Antro Positivo refere mais de dez formatos de escrita propostos a seus colaboradores, entre eles os que acabamos de mencionar). Há ainda, na Revista Barril, a crítica da crítica, em que alguém da equipe do espetáculo comenta, a pedido dos editores, o texto do crítico. Para dar voz a todos os envolvidos no fenômeno teatral, a Tribuna do Cretino instituiu as seguintes rubricas: Palavra do Crítico, Palavra do Artista, Palavra do Leitor/Espectador; Palavra Tréplica. O site Horizonte da Cena propõe crítica produzida sob forma de entrevista com alguém ligado por suas pesquisas a aspectos específicos de uma dada montagem (ver, por exemplo, a delicada e vigorosa análise em forma de diálogo entre o editor Clóvis Domingos e Nina Caetano, performer, dramaturga e militante feminista, que discute o espetáculo AntigonaS, apresentado apenas por mulheres numa ocupação em Belo Horizonte, onde elas vivem[10]). Há também o desejo de experimentar a dimensão da oralidade no pensamento crítico, o que transparece nas diferentes iniciativas propostas por esses veículos: programas de rádio (a revista Quarta Parede tem um programa semanal na Rádio Frei Caneca FM, do Recife), podcasts, videocasts. A Revista Barril, em sua seção Reverbera, veicula vídeos curtos, criados por artistas de diferentes áreas a partir de sua fruição de uma obra, em geral montagens teatrais. Já responderam ao convite para reverberar espetáculos muitos atores, performers, dançarinos, dramaturgos, multiartistas, diretores, maquiadores, iluminadores, poetas, cineastas e videomakers.
Algumas das publicações trabalham com edições fechadas, outras em fluxo contínuo. A periodicidade varia muito, na medida em que praticamente todas elas funcionam sem apoios permanentes, contando com suportes eventuais para a realização de ações específicas. O Teatrojornal, por exemplo, conta com o apoio do Itaú Cultural para a realização do Encontro com Espectadores (que, suspenso pela pandemia, foi substituído pela Biocrítica, de que este texto participa), já a ação Crítica Militante, conjunto de 72 textos elaborados, em 2016, por um conjunto de autores de vários pontos do país, foi propiciada por um edital do ProAc, do Estado de São Paulo. Atualmente, anúncios do Sesc são veiculados em suas páginas como forma de viabilizar a existência do site. A revista eletrônica Questão de Crítica, criada em 2008, efetivou uma impressionante quantidade de encontros, prêmios, intercâmbios, participação em seminários e festivais em parceria com, entre outros, Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Espaço Sesc, também no Rio, e programa Rumos Itaú Cultural. Para mencionar apenas algumas das iniciativas, foram três Encontros Questão de Crítica e a organização de dois diferentes prêmios, o Prêmio Questão de Crítica, que abrangeu espetáculos e iniciativas do circuito teatral carioca e o Prêmio Yan Michalski, para espetáculos de estudantes das escolas de formação profissional da cidade. O site Horizonte da Cena realizou, no âmbito do projeto Conexões, na Funarte-MG, uma ocupação entre outubro e dezembro de 2015. O site Agora Crítica Teatral, de Porto Alegre, criado em 2015, pôde contar, em seu primeiro ano de vida, com o apoio do Goethe Institut. A revista Antro Positivo aceita doações de seus leitores. A Quarta Parede recorre a editais públicos sempre que eles se apresentam e em 2020 criou quatro podcasts no âmbito do projeto CulturaEmRedeSescPE. Enfim, a saga que todos os que trabalham com arte no país conhecem: irregularidade ou inexistência de projetos públicos de apoio às artes e algumas poucas instituições culturais que funcionam como parceiras, sempre em menor número do que seria necessário, infelizmente.
Salta aos olhos o caráter coletivo das publicações eletrônicas e não só o das que o reivindicam expressamente como traço constitutivo, como o site Horizonte da Cena, a revista Quarta Parede o blog Parágrafo Cerrado. De um modo mais geral, a preocupação com o coletivo transparece também nos múltiplos gestos que visam a abrir espaço para a discussão das questões políticas e sociais, das quais o teatro nunca pode ser apartado. Também nesse sentido, em 2014, a necessidade da troca de experiências e de fortalecimento mútuo levou à criação da plataforma DocumentaCena (inicialmente com a adesão da revista Questão de Crítica, dos sites Teatrojornal e Horizonte da Cena e do blog Satisfeita, Yolanda?, agora já sem a participação do Teatrojornal, que decidiu privilegiar o trabalho de cobertura do teatro em São Paulo). A plataforma tem realizado, com todos ou alguns de seus integrantes, atividades de curadoria e organização de mostras como a I Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro, em novembro de 2016, na Caixa Cultural de Curitiba, por inciativa de Daniele Avila Small e Luciana Romagnolli. Além disso, a plataforma tem se encarregado da cobertura crítica de vários festivais, entre eles a MITsp, em diversas de suas edições.
Entre as muitas ações promovidas pelas publicações virtuais, das quais já falamos um pouco, gostaria de mencionar as campanhas lançadas pela revista Antro Positivo, iniciativa do crítico de cultura Ruy Filho e da artista gráfica e designer Pat Cividanes. Com uma pegada publicitária, execução primorosa e colaboração de vários artistas e outras pessoas da nossa vida pública, as campanhas atacam problemas importantes do momento. Só como exemplo: “Liberdade na arte / liberdade na vida”, em que duas pessoas do mesmo gênero se beijam; “Artista não vive de vento” (contra a diminuição do apoio às produções artísticas); “Deixem o espaço do teatro em paz” (contra a especulação imobiliária e as perseguições aos artistas, desencadeadas nos últimos anos), “Saia já do foco” (contra o uso do celular durante as apresentações teatrais).
Vimos, até agora, que as publicações eletrônicas escapam de várias restrições que atormentavam a crítica jornalística, entre elas as imposições de pauta e a limitação de espaço, tanto para o texto quanto para as fotos. No ambiente virtual, o ritmo continua sendo apertado, não só porque praticamente todos os colaboradores trabalham de forma voluntária e têm que ganhar seu sustento em outra parte, mas também porque, com o encolhimento da duração das temporadas, para se publicar a crítica antes de o espetáculo sair de cartaz, há que se apressar, e muito.
A ampliação do espaço permitiu textos críticos mais longos, entrevistas mais pausadas e farto uso de material visual. No entanto, o papel da imagem, em especial o das fotos de espetáculos, muitas vezes é apenas ilustrativo, sem que haja preocupação em identificar claramente os que nelas figuram, o que aumentaria seu valor com documentação e registro.[11]
Depois de vários anos de atividades – a revista Questão de Crítica começou em 2008, o site Teatrojornal em 2010 e o blog Parágrafo Cerrado, a mais jovem publicação das aqui comentadas, já tem quatro anos –, uma infinidade de materiais foi criada e está à nossa disposição, de modo amigável até para pessoas como eu, sem grande intimidade com a vida online. De maneira geral, o conjunto de publicações visitadas constrói inumeráveis e eficazes jogos de referências entre os diferentes materiais veiculados, transformando uma visita a um site sobre teatro numa deliciosa e tentadora errância entre críticas, reportagens, entrevistas, traduções, resenhas de edições, relatos e discussões sobre processos de espetáculos, videocasts e podcasts.
Essa profusão me faz pensar em imensas bibliotecas labirínticas ou em enciclopédias infinitas em que os conteúdos remetem diligentemente a outros do mesmo domínio ou de áreas afins, criando uma enorme galáxia de ideias e imagens.[12] Olhando em retrospecto, e correndo o risco do anacronismo, é como se as enciclopédias, inventadas no século XVIII, tivessem sido literalmente desfolhadas e suas ideias, agora com outro espírito e outra roupagem, mas com o mesmo desejo de multiplicidade sem totalização, chegassem até nós por meio da internet.
Para concluir, gostaria de agradecer a Valmir Santos e à equipe do Teatrojornal o convite para escrever este texto, o que me permitiu recapitular muito da nossa vida nestes últimos dez anos, com as inflexões dos movimentos de rua em 2013, do golpe de 2016, e da pouco honesta campanha eleitoral de 2018, com a vitória do atual mandatário. A pandemia veio colocar em perspectiva tudo o que fizemos e em dúvida tudo o que ainda faremos. Algumas publicações se recolheram, suspendendo ou diminuindo em muito suas atividades, outras se empenharam em recuperar memórias, estreitar laços afetivos, propor formas de contato à distância. Nas minhas andanças por esses onze sites, revistas e blogs, me alegrei com a imensa produção de pensamento na nossa área e nas áreas conexas, pude ler textos preciosos de críticos que admiro e de outros que eu não conhecia e que passei a admirar: seus escritos conseguem trazer para a apreciação das obras teatrais as preocupações que nos tomam hoje, em especial a do lugar do estético num mundo que nos exige lutas em que ele vai precisar se colocar de outro modo. Como? É o que estamos, no momento, tentando perceber.
Pude ouvir ou ler entrevistas com pessoas fundamentais para a nossa área, conhecer ou rever por meio dos videocasts boa parte do Brasil teatral que não entrega os pontos. Foram dois meses de muito trabalho e muita alegria – que acho que é como trabalham os que trabalham com teatro no país. A indignação nos acompanha, mas não nos impede do resto.
Com muita indignação e muita dor, dedico este trabalho aos mais de 224 mil mortos por coronavírus neste país desgovernado. E a todos os seus familiares e amigos.
Rio, 31 de janeiro do segundo ano da peste, 2021
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Entre os muitos e excelentes livros e estudos brasileiros sobre crítica, gostaria de mencionar alguns que, em diferentes momentos, foram importantes para a minha apreensão do fenômeno: os textos de Gerd Bornheim, Gênese e metamorfose da crítica e Da crítica, que integram o volume Páginas de filosofia da arte (Uapê, 1998); o estudo de Flora Süssekind, Rodapés, tratados e ensaios, em sua coletânea Papéis colados (Editora da UFRJ, 2002); e os livros A crítica cúmplice, Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno, de Ana Bernstein (IMS, 2005); Razões da crítica, de Luiz Camillo Osorio (Jorge Zahar Editor, 2005) e O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada, de Daniele Avila Small (7Letras, 2015).
.:. Leia mais sobre o dossiê Biocrítica que abriga a trajetória de 11 casas de crítica na internet, além de textos analíticos do panorama que perpassa oito estados.
Fátima Saadi (Rio de Janeiro, 1955) é tradutora e dramaturgista. Estudou teoria do teatro na Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Fez mestrado e doutorado em comunicação e cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na Unirio, foi aluna de Yan Michalski, que propôs a criação da revista Ensaio/Teatro, reminiscência importante na criação da Folhetim/Ensaios, ideia de Antonio Guedes, diretor da companhia Teatro do Pequeno Gesto, para substituir os programas de espetáculos que elaboravam. A Folhetim durou de 1998 até 2013, editou 30 números e criou a coleção Folhetim/Ensaios, para veicular ensaios mais longos do que os que a revista comportava. Em 2018 a companhia criou em seu site uma aba para edições independentes sobre teatro, as Edições Virtuais, que publicou Incursões e excursões: a cena no regime estético (2018), de Edélcio Mostaço, e A configuração da cena moderna ― Diderot e Lessing, reelaboração do doutorado de Fátima Saadi.
[1] GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? Trad. Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004.
[2] O caso das revistas acadêmicas é um pouco diferente porque, entre suas muitas linhas de pesquisa, se encontram veios que, em diálogo com outras disciplinas, já há bastante tempo trabalham ideias e reportam iniciativas que deslocam o espetáculo do foco de seus estudos.
[3] MICHALSKI, Yan. Cadernos de Teatro n. 90. Rio de Janeiro: O Tablado, p. 10-19, jul/ago/set 1981.
[4] MICHALSKI, Yan. O declínio da crítica na imprensa brasileira. Cadernos de Teatro n. 100, p. 10-13, jan/jun 1984. O texto foi republicado no site Questão de Crítica. Ver http://www.questaodecritica.com.br/tag/o-declinio-da-critica-na-imprensa-brasileira/ (acesso em 26/1/2021)
[5] Não podemos esquecer também a colaboração preciosa de críticos e pesquisadores já experimentados, como Mariangela Alves de Lima e Antonio Mercado, além de artigos do próprio Yan.
[6] Ensaio/Teatro n. 4. Praia do Flamengo, 132. Rio de Janeiro: Edições Muro, 1980, p. 4.
[7] ROMAGNOLLI. A vista alcança além. Teatrojornal. Ver https://teatrojornal.com.br/2021/01/a-vista-alcanca-alem/ (acesso em 27/1/2021)
[8] MICHALSKI, Yan. Cadernos de Teatro n. 90, art. cit., p. 13.
[9] Ver sua excelente crítica sobre o show de David Byrne, American utopia, em que os princípios da constituição da cena são discutidos a partir de seu reviramento pela performance do músico e de sua banda. GUIMARÃES. Victor. David Byrne, artista da cena. Horizonte da cena, 30/05/2018. https://www.horizontedacena.com/david-byrne-artista-da-cena/ (acesso em 31/01/2021)
[10] AntígonaS – Uma conversa crítica com Nina Caetano. Por Clóvis Domingos e Nina Caetano. Horizonte da Cena, 05/02/2020. https://www.horizontedacena.com/antigonas-uma-conversa-critica-com-nina-caetano/ (acesso em 29/1/2021)
[11] Boa parte das publicações veicula as fichas técnicas dos espetáculos analisados, o que contribui com a construção da história do teatro brasileiro em que todas essas iniciativas estão engajadas, mesmo que este não seja o seu mote principal.
[12] É curioso observar que a noção de círculo está contida tanto na palavra enciclopédia e quanto no termo galáxia.