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Crítica

Gravitações do lapso no Terça em Cena

13.4.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Print da tela

Diante da combinação de peças curtas na mesma noite, é incontornável especular sobre pontos de conexão ou disjunção entre elas. A memória do Festival Cenas Curtas (MG), da Mostra Cenas Breves (PR) ou da série Prêt-à-porter do Centro de Pesquisa Teatral (SP) traz a excitação por fios invisíveis, ou nem tanto. Tal qual na versão online do Terça em Cena, projeto da companhia La Plongée e do grupo Cemitério de Automóveis voltado ao texto em pequeno formato e que chega à 67ª edição. Um menu de quatro dramaturgias errantes, na acepção de que escapam à fixidez e têm vocação nômade, gestadas sob a urgência da pandemia. Suas entrelinhas são indagadoras do quanto pode durar o lapso, esse decurso de tempo em que as coisas se precipitam por meio da palavra e são resolvidas ou atravancadas em ato.

O tempo da reticência, traduzido não só por silêncios, materializa-se no encontro virtual de duplas de personagens, sendo a mãe a figura subjacente a três desses diálogos que, resumidamente, tratam de seres em busca de amor e reconhecimento, apesar de, é possível desconfiar, nem eles terem certeza disso. Gravitam a partir desse vazio.

Na travessia das quatro peças da 67ª edição do projeto, o caráter experimental é estruturante sem fechar-se em círculo. Seja com autores que se autodirigem, seja com quem delega a função, prevalece o desejo comum de comunicar as vulnerabilidades dos dias e mensurar as distâncias nessas tentativas de encontro

As peças de abertura e de enceramento possuem traços existencialistas. Não era nada, escrita e dirigida por Marcos Gomes, reúne dois solitários, peixes fora d’água em seus momentos lacunares. Uma vendedora e um corretor de imóveis são funções que prenunciariam questões pecuniárias, mas o primeiro encontro tramado por aplicativo de paquera dá mais margem do que se imagina para ler o quanto ela e ele, interpretados por Fernanda D’Umbra e Walter Figueiredo, respectivamente, são antípodas.

No entanto, quem assiste não demora a intuir o match das misérias pessoais desnudadas sem que o dramaturgo julgue moralmente tais polos. As hesitações de lado a lado, sob as alcunhas @kate21 e @enzo_braz, permitem intuir carências e abismos. Abduções da realidade e calmantes são algumas das codependências que os afastam, equilibristas sobre redes sem proteção. Entre cuidar de gatos e plantas, zelar por si é um pesadelo em terra de zero alteridade.

Print da tela Walter Figueiredo e Fernanda D’Umbra em ‘Não era nada’, texto e direção de Marcos Gomes

Na outra ponta, Mickey Rourke explicita a influência do dramaturgo e diretor Mário Bortolotto sobre a escrita de Lucas Mayor, também diretor, na mesma proporção que se descola e imprime voz própria. São outras sensibilidades em jogo. Bortolotto representa o Homem confinando (nas cavernas etílicas?), cidadão monossilábico às voltas com a videochamada do Garoto, mais para interrogatório, crescido com a fixação de encontrar quem foi seu pai, nem que atalhe pela ficcionalização.

Com apurado senso para construir distanciais abissais, Mayor parece fazer um contraponto a ‘Homens, santos e desertores’, a peça de Bortolotto, de 2002, estreada no ano seguinte sob encenação de Fernanda D’Umbra. O autor interpretava o Homem estoico e solipsista que recebe o Garoto ressentido pela ausência do pai, um motociclista desbundado que caiu no mundo. Brecha para o veterano, ex-seminarista, rememorar com o jovem interlocutor alguns dos seus ritos iniciáticos. O texto de 18 anos atrás, sugestiva maioridade simbólica, pode ser sintetizado neste trecho: “Garoto. Faz o que você tem que fazer. E não responsabilize ninguém por sua felicidade. Ela é inevitável”, despacha o guru.

O Garoto de hoje é atuado por Gabriel Oliveira (o do passado era Gabriel Pinheiro), num timming audiovisual-virtual que transcende as lentes da câmera com emoção esculpida. Oliveira fala a língua do olhar, à qual Bortolotto responde no mesmo grau. Essa contracena é marcante por desarmar a defensiva do mais velho e desaguar em terceira via não convencional, no melhor estilo obra aberta. O teatro em tela não abre mão do drama como ele é em sua complexidade.

Print da tela Cristina Vilaça em ‘Estou exausta mas continuo prática’, texto de Bruna Pligher e direção de Antoniela Canto

As outras duas peças no miolo da programação soam mais solares, porém expressam as sombras interiores tanto quanto. Estou exausta mas continuo prática,  texto de Bruna Pligher e direção de Antoniela Canto, apanha a cinquentona Sandra exultante no “monólogo” com Márcio, sujeito oculto com quem passou a flertar a partir de comentários no Facebook. Ela é atuada por Cristina Vilaça. A euforia movida a drinque cor de anis e biquíni asa-delta (não basta tê-lo, é preciso usá-lo dentro de casa, como ela assente) mexe com o imaginário de quem está do outro lado da ligação. A certa altura, Sandra comenta sobre os medicamentos para combater a crise de ansiedade, em tese destinados à mãe dela. O verismo das imagens contrastam a depressão d’alma.

Por fim, a voltagem erótica recai sobre Amor livre, texto de Renata Mizrahi e direção de Cynthia Falabella, em que o não pactuado ganha contornos tragicômicos. Rebeca e Juliano namoram há três anos e a pandemia os distanciaram em suas casas (um deles é do chamado grupo de risco), daí as conversas pelo Zoom. Depois do brinde virtual com vinho, ele resgata uma ideia antiga, atribuída a ela: quer abrir o relacionamento. Mas como, e a Covid-19?

Tendo como pano de fundo uma paródia do livro Ética do amor livre: guia prático para poliamor, relacionamentos abertos e outras liberdades afetivas (Elefante Editora, 2019), das americanas Janet W. Hardy e Dossie Easton – se não à obra, aos menos uma paródia ao título –, a dramaturga expõe como as percepções de si e do outro são desconstruídas em poucos minutos. Do êxtase ao desencanto, mas sempre personagens dissimulados, esse casal leva Carolina Cardinale e Pablo Perosa a atuarem sob o fio da navalha da caricatura que esses filhos da classe média fizeram de suas vidas e conjecturam, firmemente, multiplicar.

Printa da tela Carolina Cardinale e Pablo Perosa em ‘Amor livre’, texto de Renata Mizrahi e direção de Cynthia Falabella

Na travessia do Terça em Cena, o caráter experimental é estruturante sem fechar-se em círculo. Seja com autores que se autodirigem, seja com quem delega a função, prevalece o desejo comum de comunicar as vulnerabilidades dos dias e mensurar as distâncias nessas tentativas de encontro. Exceção a uma das criações, a transmissão dessas ilhas intercambiantes transcorreu sem efeitos visuais, por vezes assumindo luz inconstante, de maneira que todo peso é atribuído ao enunciado. A palavra como veículo expresso nas telas divididas ou plenas.

Está programada para terça (13), às 21h, a reprise desta sequência, mas os ingressos gratuitos, via plataforma Sympla, se esgotaram. O projeto Terça em Cena surgiu em 2013, parceria da companhia La Plongée com o Cemitério de Automóveis, sob curadoria de Mayor. Vingaram mais de 150 peças.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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