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Artigo

Um crítico em busca do teatro brasileiro

25.11.2022  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Marcos Magaldi, base de fotomontagem

Panorama do teatro brasileiro completa 60 anos de sua publicação (Difel, 1962). É uma das obras centrais entre as escritas pelo crítico, professor e historiador Sábato Magaldi (1927-2016) e referência para a história do teatro no Brasil. O livro é a um só tempo síntese histórica e roteiro de trabalho. Organiza, aprofunda, desdobra os estudos que o autor já vinha desenvolvendo desde que começara a escrever no Diário Carioca, em princípio dos anos de 1950, e, depois, em mais de 20 anos de colaboração com o Jornal da Tarde, de São Paulo, a partir de 1966. A atividade jornalística seria complementada pela participação junto ao Suplemento Literário, do jornal O Estado de S. Paulo.

O historiador João Roberto Faria descreve este momento de formação, que já seria o momento de intervenção diante de um teatro que se erguia enquanto a crítica se inventava: “[Sábato] escreveu sobre dezenas de dramaturgos, brasileiros e estrangeiros. Trabalhando ao lado de Décio de Almeida Prado, diretor do Suplemento e crítico teatral do jornal, dedicava-se ao noticiário, redigindo textos mais longos, nos quais preparava o público para assistir a um espetáculo, por meio da análise e interpretação da obra de um determinado autor” (FARIA, 2015, p. 381-382).

Parte dos estudos que serviriam à atuação jornalística resultaria no fundamental O texto no teatro (Perspectiva, 1989). A este repertório juntam-se as aulas de História do Teatro Brasileiro ministradas por ele na EAD, a Escola de Arte Dramática, em São Paulo. É dessas atividades que nasce o seu Panorama, em que alinha aos relatos de observação histórica o profundo conhecimento a respeito das correntes estéticas estrangeiras que influenciaram e desenvolveram-se na cena moderna. Na paralela, o crítico foi um espectador presente, acompanhou por décadas a criação teatral que subia aos palcos em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Programa de época

No eixo historiográfico, Panorama do teatro brasileiro traduz o programa e as inclinações artísticas com a qual estava afinada uma geração de críticos. Visto hoje, sua extraordinária contribuição, bem como seus limites, devem ser compreendidos nestes termos, os da pauta de um programa de época. Foi uma geração que, quanto ao teatro, pouco teorizou sobre o próprio fazer. A teoria tem que ser deduzida da práxis. Em todo caso, os elementos fundamentais deste projeto que se punha ao tempo em que o teatro se renovava estão resumidos na apresentação de Exercício findo (Perspectiva, 1987), em que Décio de Almeida Prado faz o balanço da crítica moderna. Uma crítica que teve entre seus pressupostos a ideia de que a literatura dramática é o centro do qual a representação surge, e deve a ela – à dramaturgia – certo princípio de adequação. Cenários, indumentária, iluminação e atuação respondem ao eixo textual. O texto teatral antecede o espetáculo e nele está a sua coordenada de pensamento. Extrair do texto as formas significativas é a tarefa do diretor, visto já não mais como mero ensaiador de marcas e vigia das convenções, e sim como criador. Ali quando “os encenadores reinavam tranquilamente (em tese ao menos) sobre os intérpretes, como ditadores benévolos ou sádicos, não se falando ainda em criação coletiva” (PRADO, 1987, p. 24). Também é parte do programa apresentar aos artistas e ao público a cultura dramática estrangeira, e incentivar o autor nacional.

A propósito dos 60 anos da publicação do livro ‘Panorama do teatro brasileiro’, de Sábato Magaldi, não é que a cena não se esforçou por seguir as recomendações que lhe valeriam o progresso. Não é que não tenha tentado cumprir os caminhos indicados para modernizar-se no sentido estrito das formas e, mesmo, aqui e ali, das relações de produção. É que, nas circunstâncias dadas, as terminologias de época que indiciariam o esperado avanço formal tombam reiteradamente no chão escorregadio de uma história que não escapa dos paradoxos. Pois, o que é a modernidade ou as diversas contemporaneidades do teatro – se entendidos com a expectativa da renovação e efetiva sedimentação em um sistema estético aguardado –, quando o processo social é marcado pela impossibilidade do salto qualitativo? O que é, para um crítico, avaliar o teatro brasileiro e os traços de sua modernidade possível, em 1962, se àquela altura, e hoje ainda, não escapamos de muitas das determinações do Brasil dos séculos XVI ou XVII?

A expectativa de que o teatro se cria nas relações entre texto e representação, com prevalência do primeiro, está anunciada por Magaldi já no primeiro capítulo, “O teatro como catequese”, em que analisa as manifestações cênicas na jornada jesuítica. Ali o autor demarca uma perspectiva: definir a existência do teatro na raiz textual, com extensão à representação. Mas não se trata, para ele, de qualquer forma textual. A noção de gênero aparece bem resguardada, qual seja: antes da ribalta há materiais de certo gênero, de certa ordem, que a favorece.

Embora já seja uma característica da pedagogia crítica naquele momento, a abordagem histórica pede atenção dobrada às observações sobre o quadro social. Assim, a articulação entre o padrão dramatúrgico vislumbrado e sua possível tradução cênica é mediada por notas contextuais. Como percebeu o editor Jacó Guinsburg, isto se dá, por exemplo, no ensaio sobre o teatro de José de Alencar, em que Magaldi não endossa totalmente o clichê romântico que carimbaria a obra do autor cearense e ilumina a influência do meio, em uma dramaturgia que mesmo não tendo a densidade dos seus romances, “já ia penetrando no mecanismo da cidade em crescimento, com substituição dos padrões aristocráticos pelos métodos da burguesia ascendente” (p. 103). São constatações que, se não investigam implicações mais fundas a respeito das incongruências nos confrontos entre formas de escrita e processo social, ao menos desenham as circunstâncias do acontecimento cênico com interesse no flagrante mais imediato dessas relações.

Mesmo que a diretriz analítica seja esta e alcance todo o livro, na nota introdutória à terceira edição (1997) o autor compreende os novos rumos do teatro, com considerações importantes a respeito da encenação, vista como arte autônoma. E complementa dizendo que, no entanto, seguir as novas orientações “importaria em escrever outro livro”.

De fato, teóricos como Bernard Dort já mostravam, em meados dos anos de 1970, que a representação tende a emancipar-se do texto, a exercer uma função supra literária na cena contemporânea (DORT, 1977). A encenação é mais que um jogo de possibilidades e de arranjos formais projetado do texto e chama atitudes criativas que tratam os elementos da montagem, agora relativamente autonomizados, em disposição horizontal e sem hierarquias prévias.

No livro em análise o dissenso entre essas concepções está bem intuído. Modelo robusto da recusa, em certo momento, do padrão de gênero – depois relativizado pela encenação – está nas passagens que comentam a dramaturgia fora da ordem de Oswald de Andrade, sobre a qual se esmiúça juízo exemplar quanto à legitimação da experiência. Mesmo que reconheça entusiasmadamente a sua inventividade, supõe a falta de vocação do autor para o palco: “Tanto O homem e o Cavalo como A morta e O rei da vela talvez sejam incapazes de atravessar a ribalta. Mas a sua não-funcionalidade se explica por excesso, por riqueza, por esquecimento dos limites do palco – nunca por indigência, por visão parca, por voo medíocre” (MAGALDI, 1962, p. 204).

Divulgação – CosacNaify/Revista Pesquisa Fapesp Imagem estilizada de cena de ‘O rei da vela’, peça de Oswald de Andrade montada pela primeira vez em 1967, por José Celso Martinez Corrêa, junto ao Teatro Oficina: cinco anos após publicação do ‘Panorama’, no intervalo entre o golpe civil-militar de 1964 e a decretação do AI-5, em 1968, encenação expôs a viabilidade inequívoca do texto que emerge com força em meio à deflagração do autoritarismo

Cinco anos depois da publicação do Panorama, o Teatro Oficina estrearia a montagem de O rei da vela (1967), dirigida por José Celso Martinez Corrêa. O espetáculo mostraria – no intervalo que vai do golpe militar ao Ato Institucional Número 5 –  a viabilidade inequívoca do texto oswaldiano, que emerge com força cênica em meio à deflagração do autoritarismo. Trata-se de  um exercício de iconoclastia estética na hora em que o disciplinamento da vida é proclamado como política de Estado. Se o ponto de vista for o do contraste entre as recomendações sobre a viabilidade da dramaturgia e a necessidade do enfrentamento das circunstâncias pela desobediência, neste momento a história terá dado razão a Oswald de Andrade e ao Oficina. Em meio à crise e ao fechamento institucional que se estenderia por mais de duas décadas (1964-1985), a montagem colocaria em teste a validade dos aparatos de gênero dramatúrgico como critério de definição da teatralidade. Não é um lance fortuito. Trata-se, como hoje sabemos, da passagem para uma série de modificações no estatuto da representação e, além, da sociologia do teatro.

Liberdade, enquadramento

A tomar por esta encruzilhada, que terá muitos desdobramentos, é notável o movimento pendular, à procura de síntese, que marcaria o olhar da crítica sobre a história do teatro brasileiro, ao menos até final da década de 1970: o desejo de nacionalização da escrita e a dívida de difícil compensação com as estruturas que vêm da tradição teatral europeia. Liberdade e enquadramento é a contradição sobre a qual se caminha e que não por acaso gera o sempre constatado desapontamento diante da desconfiança sobre a existência da cena nacional. “O teatro brasileiro não existe” (ibid., p. 9), diz Magaldi no início do livro, como a antecipar a conclusão. E avança por todo o miolo. Quando, por exemplo, analisa a produção de Artur Azevedo na segunda metade do século XIX: “Ele faz parte entranhada da vida teatral brasileira. Por isso, quando morreu, sua patriarcal figura deixou um imenso vácuo. Caiu de súbito um vazio sobre a paisagem cênica” (ibid., p. 166). E já ao final, na primeira edição, ao dizer que as insuficiências recaem sobre a produção historiográfica: “Ainda está por escrever-se uma História do Teatro Brasileiro” (Ibid., p. 289). Não é uma chegada muito alentadora se considerarmos que vem já nos anos de 1960, depois da passagem do primeiro modernismo.

São questões retomadas subliminarmente nos dois apêndices que atualizam a obra de 1962. O primeiro é um estudo de 1987 e trata da dramaturgia moderna. Nele aparece uma avaliação sobre a espera, frustrada, de um salto que pudesse atestar alguma originalidade em direção a um teatro, enfim, nacional. Um projeto nublado pelo contraditório “atraso” no cozimento das influências e ao mesmo tempo pela difícil assimilação dos modelos estrangeiros, quando se considerava o caminho que vai do texto à representação: “Não será absurdo invocar que a atualização estética empreendida a partir do modernismo provocou o sufocamento de valores espontâneos da arte nacional (…) Sob um certo ângulo, as mais arrojadas encenações brasileiras das últimas décadas não passam de devoração antropofágica de modelos estrangeiros” (p. 294). Para chegar a esta conclusão, avalia ou reavalia autores que, entre os anos de 1920 e 1970, participaram da tentativa de nacionalização moderna do texto, como Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Ariano Suassuna, Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri e Dias Gomes.

O segundo apêndice, de 1996, é um balanço da passagem do projeto moderno para a cena contemporânea. O marco escolhido é a montagem de Macunaíma, dirigida por Antunes Filho em 1978, a partir da rapsódia romanesca de Mario de Andrade. A escolha da montagem como bandeira divisória dos períodos é justificada com um sólido argumento, que nos diz sobre o fim do AI-5 e, com ele, o relaxamento da censura, que havia forjado, a fórceps, parte importante dos processos criativos e formas dramatúrgicas desde 1964. Na sequência, nos explica Magaldi, nosso teatro inspira os ares de fim de século das vogas europeia e estadunidense, com o conhecimento das poéticas de encenadores como Robert Wilson, Peter Brook, Tadeusz Kantor, Kazuo Ohno e Pina Bausch. A tradução mais imediata destas influências é a liberalidade do teatro, agora sob a regência de direções que passaram, entre outras coisas, a experimentar o patchwork de materiais. É o caso de Antunes Filho e o seu Nelson Rodrigues, O eterno retorno (1981), que sintetizava a obra rodrigueana partindo não de um, mas de quatro textos diferentes.

Outros encenadores que de fato tiveram prolífica atuação adiante são Gerald Thomas (a quem credita admiração, mas identifica resultados desiguais em qualidade), William Pereira, Marcio Aurelio. Aderbal Freire-Filho, o veterano Zé Celso, mais Francisco Medeiros (“pela mais convincente materialização cênica das teorias de Antonin Artaud”), Gabriel Villela, Eduardo Tolentino de Araújo, a quem defende da acusação de conservadorismo: “Basta ver os espetáculos Vestido de noiva e Rasto atrás para concluir que, sob a aparência nada bombástica das duas montagens, surge uma imagem profunda dos textos” (ibid, p. 319).

Para a compreensão do Panoramaé entãofundamental observar as idas e voltas entre a coordenada textocêntrica e a emergência de um teatro fora dos escaninhos, orientando, muitas vezes a contrapelo, o estudo histórico. Mesmo quando o enquadramento não funciona – ou sobretudo quando não funciona. Dos 20 ensaios do livro, cerca de 3/4 são dedicados a autores e autoras. Isto é explicado como consequência da fragilidade dos registros, da dificuldade do acesso às fontes a respeito dos eventos. E, naturalmente, em função da efemeridade do teatro, uma arte cujo acontecimento dissipa-se, restando quando muito o texto, seu componente perene. Mas não há dúvida que a prevalência da orientação pela literatura dramática é uma eleição em uma militância intelectual que embora já assimilasse perfeitamente as ideias mais avançadas de autonomia da cena em relação ao texto, não comportava o conceito de teatralidade como o entendemos hoje.

Talvez por isso haja pouco interesse, no livro, pelas teatralidades populares, ou as dos povos originários, que só podem ser consideradas por fora do padrão “culto” do teatro concebido como gênero de escrita inspirado na tradição eurocêntrica. Mas há um teatro vigoroso que existiu, existe, às margens da visibilidade, o que inclui o registro histórico. Há, por exemplo, uma boa documentação sobre a cena popular da Amazônia durante o ciclo econômico da borracha. Teatros do povo que aconteceram em diálogo com os grandes teatros de ópera, e atravessaram a História sobrevivendo até hoje em folguedos, cordões, atos sacros e variantes, no norte do país (MAUÉS, 2010). No nordeste há uma longa tradição da cena popular. Nesse sentido, sem que seja necessário sair do olhar sudestino, há, por exemplo, os estudos de Mário de Andrade empreendidos no fim da década de 1930. Mesmo sob a orientação do “folclórico” são, senão uma referência abrangente de fontes que sirvam à historiografia do teatro, ao menos um contraste importante entre pontos de vista a respeito das valorações em torno do processo cultural.  

Vazios e teatralidade

Este delay, visto agora, marca uma parte dos capítulos e encontrou revisão em pesquisas que consideraram mais detidamente o aspecto da representação não como cumprimento da literatura dramática ou em correspondência a gêneros, mas em relação a contextos sociológicos singulares. Por exemplo, a passagem que foi chamada pelo autor de “Vazio de dois séculos”, compreendida como ausência da atividade teatral após o período jesuítico. Exceção feita ao baiano Botelho de Oliveira (1637-1711), diz: “não se descobriram textos que tenham sido representados durante o século XVII. Os pesquisadores anotam, aqui e ali, uma encenação, ao ensejo de uma festa comemorativa” (ibid., p. 25). O mesmo registra o historiador quanto ao século XVIII, quando aparece um teatro regular em muitas cidades, apresentado em casas de ópera. Magaldi avaliza os aspectos comunitários que cercam a representação naquele momento e as condições estruturais que são fundadas: “cabe-nos considerar essa inovação um progresso essencial da atividade cênica, sobretudo porque os prédios teatrais foram utilizados por elencos mais ou menos fixos, com certa constância no trabalho”. No entanto, defende que “sob o prisma da dramaturgia, persiste o vazio, porque só nos chegou o texto de O parnaso obsequioso, de Cláudio Manuel da Costa”.

Independentemente das leituras nem sempre convergentes a respeito do que pode ou não ser considerado dramaturgia brasileira (como as que giram em torno da obra de Antonio José da Silva, O Judeu), o que foi posto em pauta posteriormente por pesquisadores é a ideia mesmo de teatralidade que sustenta o argumento. O que salta das revisões mais avançadas é a reposição do conceito de teatralidade não apenas como algo restrito ao arcabouço estético stricto sensu e sim ao cruzamento entre as soluções artísticas e suas condições materiais de existência. Assim vista, a teatralidade é a assimilação, em ato, de contextos culturais determinados. Salvo engano, é o que propõe, recentemente, a pesquisadora Mariana Soutto Mayor. Em um estudo sobre o Triunfo Eucarístico, festividade de Vila Rica, atual Ouro Preto (MG), acontecida no século XVIII, Soutto Mayor lança olhos menos às categorizações internas ao teatro (de todo modo, formulações posteriores à experiência) e mais às contradições que demarcam a existência do espetáculo no contexto da sociabilidade colonial:

“É preciso também pensar nos modos de produção envolvidos, no sentido de entender como a festa pôde existir de forma material (…) O Triunfo, como objeto de estudo, propõe uma contraditória questão: como a maior festa colonial mineira pôde ser realizada principalmente por uma organização religiosa leiga, formada por pardos, mulatos e negros, em uma sociedade estamental, hierarquizada e escravista?” (SOUTTO MAYOR, 2012).

Assim, o que parece acidental para Magaldi, quando propõe que o teatro sofreu de um esvaziamento por 200 anos, é retomado em outros termos, que orientam a percepção de outras formas de “cidadania cultural”. Formas paradoxais, de difícil enquadramento, entendidas amplamente, a arrastar para si os seus entornos. De qualquer maneira, formas efetivas, acontecidas, a experimentar o precário amálgama do que podemos chamar, sob este ponto de vista sem dúvida mais problemático, Teatro Brasileiro.

André Gomes de Melo O crítico Antonio Candido (1918-2017) durante solenidade de abertura da 9ª Festa Literária Internacional de Paraty (RJ), em 2011: para o pensador, os epígonos são tão importantes quanto as referências centrais na análise das obras, sempre com uma compreensão aguda das desconexões do andamento histórico

A dificuldade de origem está intuída, como em outros panoramas críticos e históricos daquele período. A começar pelos títulos. Prado publica a sua síntese de quase dez anos de trabalho (de 1955 a 1964) dois anos depois do livro de Magaldi. Sai no ano do golpe, com um título que, no contraste involuntário com a conjuntura, só pode soar dramaticamente irônico: Teatro em progresso. Este é antecedido de uma preliminar “Apresentação do teatro brasileiro” (1956). A sua posterior “História concisa do teatro brasileiro”, de 1994 (retomada em 1998), mostra a mesma insuficiência essencial no trajeto histórico do teatro. Por isso, diz Prado, será preciso considerar que para cumprir este trajeto sem assumir buracos é preciso conceder, arrolando não só o que se julgara resultado artístico satisfatório como aquilo que serve melhor como “documento de época”, ou seja, obras sem grande valor estético. Nesse aspecto Prado tende a aproximar-se de Antonio Candido, ainda que não com os mesmos objetivos. Por ter mais gosto pela sociologia da arte e em que pese a condição de um horizonte distante, ao defender na sua Formação da literatura brasileira, em 1975, que os epígonos são tão importantes quanto as referências centrais para a formação do sistema literário, Candido apresenta na análise das obras uma compreensão aguda das desconexões do andamento histórico (CANDIDO, 1993).

Se comparada a esta atitude crítica, em Magaldi o problema da formação aparece mais intuitivamente. Isso não impede que o repertório discutido diga, autonomamente, sobre os descompassos de fundo que, de todo modo, permanecem lá, subliminares. Em termos mais próximos a nós, é como diz o professor e encenador José Fernando Peixoto de Azevedo nas suas reflexões a respeito da historiografia teatral e os problemas em torno da ideia de formação: “as insuficiências desse teatro revelam não apenas as dificuldades de um processo de aclimatação de temas e formas, mas também antecipam limites desse processo quando nos devolvem ao modelo e à sua impossibilidade de universalização” (AZEVEDO, 2016, p. 161). E estende, a exemplificar: “a escravidão negra é uma invenção daquela modernidade” (ibid.)

Teatros brasileiros

Nas últimas notas do segundo apêndice, que articulam autores e diretores importantes e à vista no final dos anos de 1990 – majoritariamente homens, brancos e sudestinos –, Magaldi aponta, de passagem, em uma direção que provavelmente não teve tempo para assimilar melhor, como espectador. Cita o diretor Antônio Araújo e as encenações de O paraíso perdido e O livro de Jó, junto ao Teatro da Vertigem, ressaltando que “as possibilidades de exploração do espaço enriquecem sobremaneira o rigor criativo”. Mas não o vincula ao trabalho grupal. A cultura de grupos não era novidade histórica – teve, desde os anos 1950, um papel importante nas formulações estéticas e políticas que seriam operadas no século seguinte. Foi elemento relevante na assunção das aporias que os intelectuais modernos tentaram enfrentar.

Os laboratórios de criação operados pelos grupos no final do século XX e adiante assumiriam tais impasses não mais como problema e sim como condição favorável a um teatro que já não corria atrás de formas e gêneros modelares. Teatro que assumia deliberadamente uma política de erros, tornados produtivos porque já não tributários do cumprimento de tarefas e sim de necessidades que faziam ver que as formas “erradas” são, para o caso, as mais acertadas se considerado o diálogo efetivo com a vida em sociedade. A ideia de necessidade talvez seja mesmo justa. É a necessidade que faz com que coletivos de São Paulo tenham demandado ao Estado uma lei própria, a Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, criada em 2002. O programa provocou, precariamente que seja, mudanças de paradigma em frentes já pautadas na cena moderna, mas que aqui encontraram um momento de inflexão e estimularam respostas, ainda que provisórias, para questões como a aderência do público à criação teatral, a participação do Estado no incentivo da arte pública e novos modos de organização para a criação. Coisas que tiveram fundas consequências não só no campo da produção como, ademais, na ordem estética propriamente dita.    

Para um balanço aventuroso e certamente extemporâneo do Panorama traçado pelo seu autor, é relevante considerar novamente que há uma distância importante entre a modernidade esperada – seu ponto de chegada – e a realidade efetiva do palco. A manifestação do desajuste – e alguma melancolia sempre evidenciada diante dele – persiste porque, intuímos agora, não se trata apenas de projetar e verificar as etapas a serem cumpridas até o efetivo amadurecimento do palco nacional. Não é que a cena não se esforçou por seguir as recomendações que lhe valeriam o progresso. Não é que não tenha tentado cumprir os caminhos indicados para modernizar-se no sentido estrito das formas e, mesmo, aqui e ali, das relações de produção. É que, nas circunstâncias dadas, as terminologias de época que indiciariam o esperado avanço formal tombam reiteradamente no chão escorregadio de uma história que não escapa dos paradoxos. Pois, o que é a modernidade ou as diversas contemporaneidades do teatro – se entendidos com a expectativa da renovação e efetiva sedimentação em um sistema estético aguardado –, quando o processo social é marcado pela impossibilidade do salto qualitativo? O que é, para um crítico, avaliar o teatro brasileiro e os traços de sua modernidade possível, em 1962, se àquela altura, e hoje ainda, não escapamos de muitas das determinações do Brasil dos séculos XVI ou XVII?

Na referida nota à terceira edição (1997) Sábato avaliou a necessidade de que as visadas abertas fossem renovadas. Diz ele: “talvez apenas uma verdadeira História do Teatro brasileiro, realizada por vários estudiosos, possa satisfazer a legítima curiosidade dos leitores”. Vinte e cinco anos depois, a experimentação cênica tanto quanto a pesquisa acadêmica diversificaram-se. A projeção de uma abordagem agora mais diversa encontraria tentativa de solução nos dois volumes de História do teatro brasileiro (Perspectiva/Edições Sesc, 2012 e 2013), sob a direção de Faria. A publicação de fato multiplica temas de trabalho, sendas teóricas, modos de legitimação do teatro. E contam com a colaboração de uma equipe grande de pesquisadores, o que tende a ampliar o escopo, com a inclusão do resultado de novas pesquisas, bem como de uma representação geopolítica mais abrangente. Captura, nesse sentido, uma disposição em curso, que é a da revisão histórica a partir do conhecimento regional, gerado nas práticas cênicas e nas universidades, Brasil afora. As diversas histórias do teatro brasileiro são hoje escritas nos palcos, espaços não teatrais e academias, a partir de diferentes repertórios e realidades, que por questões logísticas, mas também por conta do ponto de vista de classe, não poderiam, à altura e do lugar em que Magaldi escrevia, serem alcançadas por ele. Os diversos Brasis seguem, agora mesmo, escrevendo as suas próprias histórias descentradas.

Junto a isso a pauta poética e política também ficou mais complexa. O que hoje chamamos estudos de gênero já não tem a ver prioritariamente com a literatura dramática e sim com as relações de poder a partir da identidade, no sentido da sexualidade e do comportamento. Os diversos teatros negros ocuparam parte do protagonismo e com eles uma outra história, antes parcialmente ocultada, e seus novos esquemas conceituais estão em discussão. A chamada virada performativa tomou pelo avesso o que antes parecia assentado no núcleo duro do fenômeno teatral, deslocando definitivamente as ideias e valores em torno do teatro como representação do real.   

O que provavelmente sobrevive, alheio a todas as atualizações sofridas no Panorama, tanto quanto em boa parte da criação e da teoria da cena, é a disposição para um teatro que tenta pertencer a um campo que muitas vezes se recusa a nos comportar; ou, ao contrário, nós é que não nos comportamos bem nele. Nas décadas recentes, os impulsos de renovação mostram parte da produção tentando corresponder aos escaninhos dos teatros informados pelos estudos teatrais. Nesse sentido, o importante livro do professor Sábato Magaldi é atualíssimo. Ainda que involuntariamente, nos recoloca no centro imaginado de uma cena nova que continua a repor velhos impasses.

Referências bibliográficas

AZEVEDO, J. F. P. Transições canceladas: teatro e experiência no Brasil (notas para um programa de trabalho). Sala Preta (USP), v. 16, p. 161, 2016.

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. 7. ed. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1993.

DORT, B. “A representação emancipada”. In: O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977.

FARIA, J. R. A crítica teatral de Sábato Magaldi. Estudos Avançados, 29 (84). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.

MAGALDI, S. Panorama do teatro brasileiro. 4. ed. São Paulo: Global, 1996.

MAUÉS, M. Pássaros juninos do Pará: a matutagem e suas relações com o cômico popular medieval e renascentista. Repertório T. & D. Ano 3. No. 14, 2010.

PRADO, D. A. P. Exercício findo. São Paulo: Perspectiva, 1987.

SOUTTO MAYOR, M. F. Estudo da teatralidade na colônia: formas espetaculares do “Triunfo Eucarístico” nas Minas Gerais do século XVIII. Informação/ Dissertação de Mestrado. Anais do VII Congresso da Abrace – Associação Brasileira de Pesquisa em Artes Cênicas. Porto Alegre: ABRACE, 2012.

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A edição mais recente de Panorama do teatro brasileiro, pela Global.

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O vídeo a seguir foi realizado pelas Edições Sesc São Paulo no lançamento de Amor ao teatro (2015), livro organizado pela escritora e esposa de Sábato Magaldi, Edla van Steen (1936-2018), inaugurando a Coleção Sesc Críticas com textos redigidos entre as décadas de 1950 e 2000.

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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