Menu

Crítica

A revolução não será encenada

14.5.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Mauro Kury

O encontro da Armazém Companhia de Teatro com a dramaturgia do chileno Guillermo Calderón em Neva constitui a primeira montagem a partir de uma peça hispano-americana em seus 36 anos de trajetória. E isso se dá de forma substancial. A despeito do permanente cultivo à alteridade e à consciência crítica em seus trabalhos, como em Angels in America (2019) e O dia em que Sam morreu (2014), sobressaem agora as crispações da arte de atuar e de performar passando por sobretons do drama naturalista e por visões de mundo idealizada ou antirromântica presentes no texto.

Entre as interfaces da dramaturgia está a efervescência política na Rússia de 118 anos atrás, em meio a levantes da sociedade civil, sobretudo operários, no plano interno, e em plena guerra com o Japão, no externo. As entrelinhas desse panorama vão mostrar que elas também servem à leitura de regimes autocráticos em terras chilenas ou brasileiras, portanto latino-americanas.

Somam-se a isso os corrosivos diagnósticos de Calderón acerca de imaginários, naturezas e causas da letargia nos processos históricos em nações capitalistas (a começar pelas contradições do receituário neoliberal em seu país). Nem os paradoxos e idiossincrasias de seu meio artístico escapam ao dramaturgo que traz a formação de ator no currículo. Ele tinha 34 anos quando escreveu a obra que o projetou, em 2005, dez a menos do que Anton Tchékhov viveu entre os séculos XIX e XX.

Nessa triangulação aberta a múltiplos planos do que é e não é em ‘Neva’, uma festa para a metalinguagem na peça do chileno Guillermo Calderón e na montagem da Armazém Companhia de Teatro, Patrícia Selonk expressa o texto com a sabedoria de quem o abraça como uma composição musical, tradutora de silêncios e estados interiores valorizados pela ação não verbal. O conceito de vivência sedimentado pelo Teatro de Arte de Moscou (TAM), do trabalho de ator sobre si mesmo, surge modulado, ou melhor, desviado em partituras de fala e de gesto característicos da atuante. Essa mediação singulariza o jogo dramatúrgico repleto de nuances entre sentidos, sentimentos e convicções

Quer como pano de fundo, quer pela descrição visceral no texto, a situação política e econômica na Rússia era explosiva em 1905, quando a guarda imperial do czar Nicolau II matou centenas de trabalhadores, liderados por um padre, durante manifestação popular em meio a greve, fome e carestia. O massacre ocorreu em 9 de janeiro daquele ano (ou 22 de janeiro segundo o calendário atual) e ficou conhecido como Domingo Sangrento. Esse enfrentamento deflagrou a primeira de três revoluções que afetaram os rumos do país. As outras vieram em fevereiro e outubro de 1917.

No espetáculo, é delineadora a atuação de Patrícia Selonk, cofundadora da Armazém, para a personagem da atriz Olga Knipper. De origem alemã, Knipper foi casada com Tchékhov e interpretou alguns de seus papeis tão logo vieram à luz sob a lendária companhia do Teatro de Arte de Moscou (TAM), fundada em 1898 pelos diretores Konstantin Stanislávski e Vladimir Nemiróvitch-Dântchenko, pilares do teatro russo moderno e paradigmáticos da cultura teatral forjada no Ocidente, drama realista à frente.

A peça de Calderón imagina Knipper tentando retomar o ofício após seis meses da morte do também médico Tchékhov, por tuberculose. Ela tem 36 anos e divide a sala de um teatro em São Petersburgo com dois atores: Masha (atuada por Isabel Pacheco), de origem proletária e mesmo nome de personagens em A gaivota e As três irmãs, e Aleko, de berço aristocrata. A viúva soa mais alienada da realidade que os pares quanto à marcha de cidadãos e cidadãs pelas ruas, sob ataque das forças de segurança, o que impossibilita a chegada dos demais integrantes da companhia (possivelmente estão entre as vítimas da violência) para o ensaio de O jardim das cerejeiras, peça em que Tchékhov pôs ponto final no ano de sua morte. Por outro lado, a Knipper ficcionalizada domina com profundidade os princípios coletivos e individuais de quem lida com a arte do teatro.

Nessa triangulação aberta a múltiplos planos do que é e não é, uma festa para a metalinguagem, Selonk expressa o texto com a sabedoria de quem o abraça como uma composição musical, tradutora de silêncios e estados interiores valorizados pela ação não verbal. O conceito de vivência sedimentado pelo TAM, do trabalho de ator sobre si mesmo, surge modulado, ou melhor, desviado em partituras de fala e de gesto característicos da atuante. Essa mediação singulariza o jogo dramatúrgico repleto de nuances entre sentidos, sentimentos e convicções.

A seguinte passagem da peça traduzida pelo produtor cultural Celso Curi dá a medida do quanto a palavra é estruturante nesse projeto, na voz de Olga/Selonk:

Não queima nada, Masha. Não queime nada. Quem sabe a Rússia não se incendeie sozinha. Aconteça o que acontecer, nós sempre teremos a arte. Quem sabe, passado muito tempo, as coisas continuem como estão. Continue havendo pobres, continue havendo ricos, continue havendo soldados disparando contra as pessoas nas ruas. Mas nós sempre vamos poder seguir sonhando e sempre vamos poder seguir dizendo: nada muda, tudo segue igual, é preciso queimar tudo. É a vida Masha.

Mas Masha não vai condescender, como se verá no desfecho.

Patrícia Selonk é Olga Knipper, que busca sair do luto ensaiando 'Jardim das cerejeiras', última obra do dramaturgo russo Anton Tchékhov (1860-1904), que tem passagens em "Neva', do chileno Guillermo Calderón, atuadas por Felipe Bustamante
Mauro Kury Patrícia Selonk é a atriz alemã Olga Knipper (1868-1959), que busca sair do luto ensaiando ‘Jardim das cerejeiras’, última obra do dramaturgo russo Anton Tchékhov (1860-1904), cujas passagens dele em ‘Neva’ são atuadas por Felipe Bustamante; uma peça do chileno Guillermo Calderón em montagem da Armazém Companhia de Teatro

Por contraste, Aleko e suas derivações, por Bustamante, sobretudo aquelas em torno da aura fantasmal de Tchékhov, onipresente na narrativa, bem como a Masha vivida por Pacheco, decerto a consciência mais aguda e não menos contraditória a respeito do mundo em chamas lá fora, ambas as atuações se ressentem em determinados momentos em que as falas sugerem presumir mais gravidade pelo que reportam/revelam.

Isabel Pacheco, por sua vez, equaliza essas forças subjetivas no antológico monólogo final, veloz, algo delirante, misto de manifesto de guerrilha com o ímpeto juvenil carregado até certo ponto pela ingenuidade na análise dos eventos sociais e políticos no olho do furacão. Afinal, Calderón escreve a partir do movimento de quem volta um século atrás para reimaginar o que a relação teatro-sociedade poderia legar e, daqui do futuro, o século XXI, sabe (sabemos) que o cenário segue bastante distópico, com a reiteração da história que acontece como tragédia e se repete como farsa, no dístico de Marx.

Aliás, um dos achados na escrita de Anton Tchékhov é a fluidez sobre o que entende por drama ou comédia, sem que ambos os gêneros fossem necessariamente estanques. Por isso o autor definiu A gaivota e O jardim das cerejeiras como comédias em quatro atos, apesar da densidade dos diálogos e monólogos nas respectivas tramas.

A direção de Paulo de Moraes lança mão desse ativo em razão das inúmeras transições às quais o elenco precisa sustentar voz, corpo e pensamento. Efeitos de luz, paisagens sonoras e microfones são os elementos mais mobilizados para instaurar o teatro dentro do teatro, a orgia pirandelliana. Inclusive nas horas ásperas, como na reconstituição da morte de Tchékhov. Ou na abertura ao humor em plena representação de um texto de Dostoiévski: aqui Bustamante encontra o registro ideal para induzir à ambiguidade a partir da ilusão.

Solos de guitarra, uma saudação a Gal Costa e a eloquência com que Selonk faz o meio de campo para a profusão de saídas e entradas nos mais distintos ambientes, discursos e temporalidade – sem que o trio arrede o pé do palco –, são algumas das resoluções desse trabalho erguido no ano passado, por meio de campanha de arrecadação na internet, ainda sob os reflexos da pandemia de Covid-19, essa que, a rigor, não acabou. Sabe-se que o vírus é competente em prover variantes.

Dessa forma, a apropriação de Neva pela Armazém conecta-se sobremaneira à identidade artística da companhia nascida em 1987, em Londrina (PR), onde logo adotou um barracão como sede, favorecendo a concepção multiuso do espaço cênico, e 11 anos depois migrou para o Rio de Janeiro, vindo a ocupar uma sala com pé-direito de quase sete metros na Fundição Progresso, o icônico centro cultural da Lapa. Evidentemente, as dimensões do Teatro Paulo Autran no Sesc Pinheiros são gigantes se comparadas à escala do espaço onde a montagem foi ensaiada e fez primeira temporada. A Armazém mostra-se calejada nessa transposição, dessa vez sem fazer uso da projeção de imagens, cabendo principalmente ao desenho de luz de Maneco Quinderé e à música de Ricco Viana as sutilezas e dilatações outras encarnadas por quem atua.

Mauro Kury Isabel Pacheco em primeiro plano e Patrícia Selonk ao fundo: visões distintas da arte do teatro e das lutas por mudanças sociais entre as personagens atrizes

Numa analogia com as confrontações de classe, de ideias e de funções da arte, a companhia talvez tenha encontrado nesse trabalho o mote existencial para olhar no retrovisor de três décadas e meia e autoquestionar-se por diferentes motivos, como concerne a qualquer experiência humana duradoura.

O teatro como filosofia de vida, suas dores e delícias, estaria sugerido, por exemplo, na maquete de edifício convencional que aparece no espaço cênico. Ela está ali para arder burguesias de ontem e de hoje. Mas para quem acompanha boa parte da linha de tempo da Armazém, a crise dos atores, dos personagens e do público (também instigado a sair do conforto), essa crise provocadora na obra-prima chilena de pendor universal também daria margem a um frame da memória do espetáculo Da arte de subir em telhados (2001), em que o teto cedia e seus atuantes-personagens caíam em outra dimensão. Pois a Armazém capaz de teatralidades e invenções arquitetônicas dessa natureza anda a exercitar o caminho da autoanálise caminhando. Quem sabe, Olga, Masha e Aleko lhes são mais próximos do que se imagina.

De volta ao mais recente espetáculo, a concepção é muito distinta daquela que Calderón e sua então companhia, Teatro en el Blanco, trouxeram pela primeira vez ao Brasil, em 8 de maio de 2008. Neva (2006) participou da programação da 3ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, saudosa iniciativa da Cooperativa Paulista de Teatro que intercambiava criadores da região, mais Caribe, Portugal e Espanha. Em sessão única, com mais de 300 lugares preenchidos na Sala Jardel Filho, no Centro Cultural São Paulo, o público saiu impactado pela atuação de Trinidad González (como Olga), Paula Zúñiga e Jorge Becker. Com direção do próprio dramaturgo, os atores ocupavam uma espécie de losango no tablado com área de cerca de 3 m². A iluminação ficava a cargo dos atuantes, revezando um refletor em suas mãos. A tônica era o breu, como a espelhar a pós-ditadura Pinochet (1973-1995), os resquícios de leis do período sangrento ainda vigentes.

A mesma tradução de Curi moveu o núcleo Isso Não É Um Grupo, de São Paulo, a montar Neva em 2016. Sob atuações de Flavia Melman, Michelle Gonçalves e Ernani Sanchez, a direção de Diego Moschkovich estreitou a relação da plateia bifrontal com a cena e aludiu, como subtexto, à crise política do país naquele ano do golpe parlamentar que impichou Dilma Rousseff (PT).

São seres e circunstâncias medindo a voltagem a cada criação, cientes de que a revolução não será encenada, mas a arte persistirá como um dos seus veículos mais sublimes.

.:. O jornalista colaborou com a campanha de arrecadação da companhia para produzir a obra analisada.

Serviço

Neva

Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, tel. 11 3095-9400)

Sexta e sábado, 21h; domingo e feriado, 18h. De 14 de abril a 14 de maio de 2023

R$ 40 (inteira), R$ 20 (meia) e R$ 12 (credencial plena)

80 minutos

14 anos

700 lugares

A atriz Isabel Pacheco e a maquete que pode simbolizar arder os alicerces da burguesia ou aludir a essa arte como razão de viver de quem dedica anos e décadas a uma companhia ou grupo
Mauro Kury A atriz Isabel Pacheco e a maquete que pode simbolizar arder os alicerces da burguesia ou aludir a essa arte como razão de viver de quem dedica anos e décadas a uma companhia ou grupo

Ficha técnica

Texto: Guillermo Calderón

Montagem: Armazém Companhia de Teatro

Direção: Paulo de Moraes

Tradução: Celso Curi

Com: Patrícia Selonk (Olga Knipper), Isabel Pacheco (Masha) e Felipe Bustamante (Aleko)

Interlocução artística: Jopa Moraes

Iluminação: Maneco Quinderé

Música: Ricco Viana

Figurinos: Carol Lobato

Instalação cênica: Paulo de Moraes

Maquete ‘Teatro de Arte de Moscou’: Carla Berri

Mecânica da maquete: Marco Souza

Assessoria de Imprensa: Ney Motta

Design gráfico: Jopa Moraes

Fotografias: Mauro Kury

Preparação corporal: Patrícia Selonk e Ana Lima

Técnico de montagem: Djavan Costa

Assistente de produção: Malu Selonk e Amanda Rumbelsperger

Produção local São Paulo: Pedro de Freitas

Produção: Armazém Companhia de Teatro

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados