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Reportagem

Montagens de peças de Jon Fosse no país

O norueguês Nobel de Literatura

6.10.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ingvild Festervoll Melien

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2023, atribuído pela Academia Sueca na quinta (5), o escritor e dramaturgo norueguês Jon Fosse, de 64 anos, é encenado no Brasil desde pelo menos 2004. Em março daquele ano, Denise Weinberg assinou a montagem de O nome, sob produção do Núcleo Experimental do Sesi, então coordenado por Isabel Setti. A criação inaugurou um espaço intimista e não teatral, o Mezanino, com cerca de 50 lugares, mantido em atividade até hoje na arquitetura de aço e concreto do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista.

Seguiram na trilha dessa escrita para a cena artistas como Marcos Damaceno Companhia de Teatro, atual Cia.Stavis-Damaceno, Fernanda D’Umbra, Alexandre Tenório, Monique Gardenberg, Mário Bortolotto, Companhia de Teatro Os Satyros, Rita Clemente, Emílio de Mello, Luciano Alabarse e Teatro Número Três, envolvendo cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo.

O nome trata do retorno de uma filha grávida à casa dos pais, acompanhada do pai da criança que virá. O cotidiano é tensionado pelas queixas de saúde e de trabalho, por pai e mãe que quase não se falam, enquanto filha e namorado tampouco se comunicam.

Em entrevista ao Jornal da USP, por ocasião da estreia, Weinberg apontou que a “dramaturgia extremamente sucinta” “mexe com as pulsões atuais, pessoas que comem muito, bebem muito, se drogam muito, compram muito”. Atriz que recém havia saído do Grupo Tapa após 21 anos de trabalho continuado, vindo a retornar em produções futuras esporádicas:

O texto do Fosse tem um vocabulário pobre, repetição, frases curtas, é como a gente fala hoje em dia, principalmente a juventude. Os personagens conversam sobre o nada, sobre o tempo, estão sempre fugindo para não resolver o problema. (Jornal da USP, 22 mar. 2004)

À primeira vista fiquei em dúvida em montar ‘Inverno’, mas você vai lendo e descobrindo um universo nas entrelinhas. (…) É uma dramaturgia formal, musical, cheia de métricas. É um poema contemporâneo, sem nenhum melodrama, nenhum rompante emocional

Rita Clemente, diretora em Belo Horizonte

Três anos depois, em 2007, foi a vez de Fernanda D’Umbra dirigir Roxo, em que Fosse elaborou “uma trama simples”, no dizer do crítico Sérgio Salvia Coelho: “um garoto, entre a morte da avó que o criava e a eminente iniciação sexual com uma ambígua groupie de sua banda em formação, decide desertar de tudo”, escreveu na Folha de S.Paulo, salientando que não havia nenhuma grande ação a ser empreitada, nenhum abandono sério também, definindo-a como “uma quase história de amor”.

A propósito da encenação que ocupou o Espaço dos Satyros, na Praça Franklin Roosevelt, região central, Coelho observou que para falar acerca da adolescência “é preciso ficar perto da essência, sem sucumbir à idealização nem à farsa”, sob o título Fernanda D’Umbra expõe a adolescência sem floreios.

Ou seja:

“Tarefa para Jon Fosse, o dramaturgo contemporâneo norueguês (da peça Roxo, em cartaz na cidade) que, de tempos em tempos, burla a prudência dos produtores e vem parar como um tijolo nos palcos nacionais” (Ilustrada, 23 abr. 2007, p. E5)

Em sua coluna em O Estado de S. Paulo, com texto intitulado O novo teatro, o escritor Marcelo Rubens Paiva captou a dramaturgia como “um instante no cotidiano vazio de jovens urbanos, que sonham com a fama (acreditam ser a solução de seus problemas)”.

A saber:

Querem ter um projeto de amanhã, uma meta. Montam uma banda de garagem. Há um pequeno e mordaz detalhe: não sabem tocar nada. O único prazer que lhes resta é A Garota, vivida por uma atriz menina de talento grande (Júlia Novaes), que é fã da quase banda e reveza seu afeto e tédio entre eles. A peça dura 40 minutos (como a maioria das peças de Fosse). Tem quatro cenas. O clima está construído entre as pausas. (Caderno 2, 14 abr. 2007, p. D16)

Divulgação Bruna Longo em cena de ‘O nome’ (2004), direção de Denise Weinberg para o Núcleo Experimental do Sesi (SP)

Tanto O nome como Roxo tiveram tradução de Alexandre Tenório, um trabalhador profícuo na operação de verter dramaturgias em inglês para o português brasileiro, a exemplo de Harold Pinter, britânico contemplado com o Nobel de Literatura 2005. Aliás, dentre autoras ou autores afeitos à prática dramatúrgica, o mais recente foi o austríaco Peter Handke, em 2019. Ao final desta reportagem, estão listados dez nomes laureados também pela escrita de peças.

Por falar em línguas, no mesmo 2005, em Curitiba, a atuante Leonarda Glück traduziu Garota no sofá, de Fosse, objeto de leitura dramática pela CiaSenhas naquele ano, ambas iniciativas no projeto Novas Leituras – 1º Ciclo de Dramaturgia, promovido pelo Centro Cultural Teatro Guaíra.

Também em 2005, e na capital paranaense, a Marcos Damaceno Companhia de Teatro, atualmente Cia.Stavis-Damaceno, em referência à atriz Rosana Stavis, produziu o espetáculo Sonho de outono, peça de Fosse na qual a ação se passa em um cemitério. Um homem e uma mulher conversam sobre o amor, a morte e suas hesitações. O diálogo os transcende, agrega outras pessoas e o signo da renovação, quem sabe, subjaz ao da finitude. Na temporada paulistana, em 2008, Damaceno cogitou sobre as intenções do dramaturgo que traduziu, em entrevista a Gabriela Mellão, na Folha de S.Paulo, sob o título Ritmo conduz montagem de Jon Fosse. “O que lhe interessa é o fluxo, a maneira como a história avança, recua, acelera, para em seguida ser suspensa e depois retomada”. O diretor disse “que concebeu a encenação com os ouvidos. Abaixava a cabeça e escutava, experimentando tons até obter o resultado que transita entre o humor e o trágico.” (Ilustrada, 23 out. 2008, p. E10)

Dada a manutenção de Sonho de outono em repertório por anos, a Cia.Stavis-Damaceno tornou-se uma das principais plataformas para a difusão da estética e do pensamento dramatúrgico do norueguês desde o panorama curitibano. Assim como o fez Tenório empenhado nas traduções desde a capital paulista.

Ainda em 2006, o próprio levou à cena uma terceira incursão na obra de Fosse, Alguém vai vir, que cumpriu temporada na chamada Sala Experimental do Teatro Augusta. Em resumo, casal que demonstra amor de limites quase doentios procura uma morada antiga com o intuito de se isolar completamente, entre montanhas e com vista para o mar, mas ainda assim a possibilidade de imaginar a chegada de alguém os impede de aproveitar o momento. A crise interior das personagens, Ele e Ela, vai se revelando durante a peça com a chegada de um estranho vizinho.

Por volta de 2014, Tenório e a atriz e diretora Lavínia Pannunzio firmaram parceria com uma produtora para levantar nova montagem de Alguém vai vir inscrevendo o projeto em editais ou programas públicos ou privados de apoio à cultura. Ao que consta, tal espetáculo ainda não vingou, quem sabe a premiação de eco planetário, precedida há pouco de penoso período de pandemia, possa reavivar a ideia.

Em pensata para o referido projeto, Pannunzio expôs as linhas de força que a moviam perante o texto:

Alguém vai vir é uma peça repleta de elementos narrativos que mistura corpos em movimento – ou a ausência dele – e palavras que se repetem quebrando completamente a possibilidade de uma abordagem psicológica desse universo, transformando o trabalho da encenação em brutal experiência de linguagem. O que chamo de “espetáculo de alto risco”. São palavras que se repetem, que exigem decifração. Palavras invariavelmente cruéis. Os personagens se deslocam – através da ausência quase absoluta de movimento – num emaranhado de medos e projeções que servem para aprisioná-los. (…) Parto de uma ideia simples: transformo ações banais do cotidiano – os personagens cozinham, comem, bebem, não fazem nada – em um mundo imaginário, teatral, transformado em pura atmosfera. Fantasmagoria. (…). Meu interesse na obra de Jon Fosse é que ele fala de um único tema, em um único lugar, a partir de uma ideia concreta. A interação texto-encenação cria a linha dramatúrgica e uma gramática de movimentos, tensões e intenções.

De volta a 2007, a atriz Renata Sorrah chegou a São Paulo para temporada no Sesc Anchieta com a produção carioca Um dia, no verão, também texto de Fosse, sob direção de Monique Gardenberg, com personagens quase sem ação, a anos-luz de uma comédia, o que costumava gerar críticas infundadas por parte da audiência que a acompanha em telenovelas. Na reportagem de Luiz Fernando Vianna, na Folha, encimada pelo título Nos limites da loucura, Sorrah contra-argumentou:

Não gosto de ouvir “Ah, esse tédio é escandinavo!”. Ou “Por que montar uma peça norueguesa?”. Porque é um ser humano igual a gente falando de coisas humanas como solidão, incomunicabilidade. Há um patrulhamento em cima. A peça poderia se passar em qualquer lugar. (Ilustrada, 23 set. 2007, p. E1)

Em 2009, foi a vez de outra montagem de Sonho de outono, agora vinda do Rio de Janeiro, com o ator Emílio de Mello assinando direção. “Os textos dele têm uma aparência de realismo, mas não são. Os diálogos parecem tratar de temas cotidianos, mas há sempre muitas camadas. Se a gente tentar uma abordagem realista, sentimental, nada acontece, tem de ser conceitual. Não há construção psicológica de personagens, relações de causa e efeito. Isso me interessa hoje”, declarou a Beth Néspoli em O Estado de S. Paulo, na reportagem intitulada Mais uma chance de conhecer o bom texto de Jon Fosse, acerca de um texto sem linearidade, sem pontuação, em que as “figuras” em cena nem nome têm, são pai, mãe, mulher. (Caderno 2, 6 nov. 2009, p. D8)

Cofundador do Grupo Cemitério de Automóveis, o ator e dramaturgo Mário Bortolotto dirigiu Noturnos em 2010, mais uma peça de Fosse traduzida por Tenório. À maneira de sinopse, personagem Ele não consegue mais sair de casa. Personagem Ela não consegue mais ficar. Ele passa a maior parte do seu tempo deitado no sofá, lendo. O bebê chora. Ela sai com uma amiga e, quando não tiver mais forças, lhe dirá aquilo que decidiu.

Em entrevista a Gabriela Mellão para a Folha de S.Paulo, Bortolotto dirige montagem ‘musical’ de relação em crise, na semana de estreia no Espaço Parlapatões, na Roosevelt, o artista concluiu: “O texto tem um naturalismo estranho. É quase uma novela, mas você tem de entender que a parada não está no que é dito, mas no subterrâneo.” (Ilustrada, 5 nov. 2010, p. E8)

Clayton Leite Atuantes do grupo carioca Teatro Número Três em ‘Violeta’ (2023), direção de Marcio Freitas

A escrita ritmada, quase matemática, que flerta com o silêncio e o ritmo, eram também alguns dos aspectos que atraíram a Companhia de Teatro Os Satyros a montar Adormecidos. Ainda que esteticamente o autor se distancie dos padrões frequentemente adotados pelo grupo, ponderou o informe de comunicação, existe um ponto comum ao dramaturgo. “Fosse tem uma pesquisa temática próxima do Satyros, tratando de temas como solidão, amor e velhice”, comentou o diretor e cofundador Rodolfo García Vázquez em publicação do site da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, em 18 out. 2013.

Inverno foi o texto escolhido pela diretora Rita Clemente, de Belo Horizonte, para o primeiro contato com Fosse no palco. A estreia ocorreu no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna e o receio preliminar de lidar com uma escrita aparentemente hermética logo evoluiu a outros patamares de instigação, como contou à jornalista Carolina Braga no portal UAI:

Queria um texto para dialogar, para falar de questões delicadas e ter um ator trocando junto, dar espaço para a interpretação. À primeira vista fiquei em dúvida, mas você vai lendo e descobrindo um universo nas entrelinhas. (…) É uma dramaturgia formal, musical, cheia de métricas. É um poema contemporâneo, sem nenhum melodrama, nenhum rompante emocional (Portal UAI, 1º ago. 2014)

Na trama de Inverno, uma mulher e um homem se encontram em um banco na rua, desaguando contextos e entrelinhas.

Em Porto Alegre, o diretor Luciano Alabarse conjugou dois dramas curtos de Fosse em Lilás, peça-título do espetáculo, e The guitar man, escritas na última virada de milênio. No primeiro enredo, cinco jovens músicos se encontram num porão para o ensaio de sua banda em meio a conflitos verbais e físicos acentuados pela presença de uma convidada. Na segunda parte, inclusive com a mudança de espaço cênico que implica também no deslocamento de espectadores, transcorre o monólogo em que o personagem abdica da carreira numa banda e relata perrengues da vida.

Sobre a temporada de estreia no Teatro Renascença, em 2019, Alabarse comentou na reportagem de Júlio Boll para o jornal digital GZH, intitulada Peça “Lilás” encena tempos de incerteza espelhados no ensaio de uma banda:

O Fosse é um dramaturgo que não brinca em serviço. Traz uma urgência desesperada à cena. Seus textos apontam um mundo em decomposição, a crônica de fracassos anunciados. Há sempre um fio de esperança tênue que mantém a perspectiva de um futuro incerto. (GZH, 13 fez. 2019)

Uma das criações mais recentes em torno de Fosse é Violeta, peça que adota outra tonalidade de cor ao título da mesma trama – agora no porão de uma fábrica abandonada, as reviravoltas do ensaio da banda de jovens quando o guitarrista leva uma garota ex-namorada do baterista –, encenada por Marcio Freitas junto ao grupo carioca Teatro Número Três, em atividade desde 2010. A temporada de estreia será no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, a partir de sábado (7) até o dia 29 deste mês.

No material de divulgação, o diretor destacou que a pesquisa sobre a musicalidade da fala é um dos fundamentos para a composição, como informou o portal da Fundação Nacional de Artes, a Funarte, vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) e responsável pela administração do espaço localizado na região central:

Em nossos espetáculos, sempre chamaram a atenção do público as formas inusitadas de trabalharmos a fala. Nesse sentido, investigar as nuances do texto de Jon Fosse é um percurso de interesse natural. A métrica rigorosa do autor é uma potente fonte de tensão cênica, com seus vazios e seus ecos. (Portal da Funarte, 4 out. 2023)

No perfil de Fosse apresentado em telejornal do canal GloboNews, no dia da premiação, a correspondente Cecília Malan, baseada em Londres, rememorou uma passagem relativa ao escritor traduzido em mais de 50 línguas e cuja prosa inovadora dá voz ao indizível, no entendimento do comitê do Nobel de Literatura:

Perguntado uma vez sobre qual foi o melhor conselho que já recebeu sobre a arte de escrever, respondeu: “Pense antes de escrever e pense depois de escrever, mas não enquanto estiver escrevendo. Simplesmente deixe a escrita escrever-se sozinha”.

Em suma, pode-se concluir que Jon Fosse é mais conhecido no Brasil pela dramaturgia do que pelas demais faces de sua obra, em poesia e prosa, mantendo a mesma espessura de linguagem e tônicas existencial e introspectiva. No momento, foram publicados apenas dois livros dele: Melancolia (Tordesilhas, 2015, tradução de Marcelo Rondinelli), em que narra a história de um pintor nórdico, e É a Ales (Companhia das Letras, 2023, de Guilherme da Silva Braga), memórias de uma mulher cujo marido saiu para navegar com seu barco há mais de 20 anos e nunca mais voltou, retraçando acontecimentos que remontam a cinco gerações, até a trisavó, que dá nome à história.

.:. TEXTO MODIFICADO em 12 out. 2023. Foi corrigida a informação de que “jamais uma mulher que tenha escrito para a cena recebeu o Nobel, seja ela cisgênero ou transgênero”. O leitor Frank Abreu chamou a atenção para a austríaca Elfriede Jelinek, premiada em 2004.

.:. Trecho de Sonho de outono (2006), com a Cia.Stavis-Damaceno (PR)

.:. Dez autores teatrais que fazem parte da história do Nobel de Literatura

1. Jon Fosse, Noruega (2023)

2. Peter Handke, Áustria (2019)

3. Harold Pinter, Reino Unido (2005)

4. Elfriede Jelinek, Áustria (2004)

5. Dario Fo, Itália (1997)

6. Samuel Beckett, Irlanda (1969)

7. Jean-Paul Sartre, França (1964)

8. Eugene O’Neill, Estados Unidos (1936)

9. Luigi Pirandello, Itália (1934)

10. George Bernard Shaw, Irlanda (1925)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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