Crítica
Diante da combinação de peças curtas na mesma noite, é incontornável especular sobre pontos de conexão ou disjunção entre elas. A memória do Festival Cenas Curtas (MG), da Mostra Cenas Breves (PR) ou da série Prêt-à-porter do Centro de Pesquisa Teatral (SP) traz a excitação por fios invisíveis, ou nem tanto. Tal qual na versão online do Terça em Cena, projeto da companhia La Plongée e do grupo Cemitério de Automóveis voltado ao texto em pequeno formato e que chega à 67ª edição. Um menu de quatro dramaturgias errantes, na acepção de que escapam à fixidez e têm vocação nômade, gestadas sob a urgência da pandemia. Suas entrelinhas são indagadoras do quanto pode durar o lapso, esse decurso de tempo em que as coisas se precipitam por meio da palavra e são resolvidas ou atravancadas em ato.
O tempo da reticência, traduzido não só por silêncios, materializa-se no encontro virtual de duplas de personagens, sendo a mãe a figura subjacente a três desses diálogos que, resumidamente, tratam de seres em busca de amor e reconhecimento, apesar de, é possível desconfiar, nem eles terem certeza disso. Gravitam a partir desse vazio.
Na travessia das quatro peças da 67ª edição do projeto, o caráter experimental é estruturante sem fechar-se em círculo. Seja com autores que se autodirigem, seja com quem delega a função, prevalece o desejo comum de comunicar as vulnerabilidades dos dias e mensurar as distâncias nessas tentativas de encontro
As peças de abertura e de enceramento possuem traços existencialistas. Não era nada, escrita e dirigida por Marcos Gomes, reúne dois solitários, peixes fora d’água em seus momentos lacunares. Uma vendedora e um corretor de imóveis são funções que prenunciariam questões pecuniárias, mas o primeiro encontro tramado por aplicativo de paquera dá mais margem do que se imagina para ler o quanto ela e ele, interpretados por Fernanda D’Umbra e Walter Figueiredo, respectivamente, são antípodas.
No entanto, quem assiste não demora a intuir o match das misérias pessoais desnudadas sem que o dramaturgo julgue moralmente tais polos. As hesitações de lado a lado, sob as alcunhas @kate21 e @enzo_braz, permitem intuir carências e abismos. Abduções da realidade e calmantes são algumas das codependências que os afastam, equilibristas sobre redes sem proteção. Entre cuidar de gatos e plantas, zelar por si é um pesadelo em terra de zero alteridade.

Na outra ponta, Mickey Rourke explicita a influência do dramaturgo e diretor Mário Bortolotto sobre a escrita de Lucas Mayor, também diretor, na mesma proporção que se descola e imprime voz própria. São outras sensibilidades em jogo. Bortolotto representa o Homem confinando (nas cavernas etílicas?), cidadão monossilábico às voltas com a videochamada do Garoto, mais para interrogatório, crescido com a fixação de encontrar quem foi seu pai, nem que atalhe pela ficcionalização.
Com apurado senso para construir distanciais abissais, Mayor parece fazer um contraponto a ‘Homens, santos e desertores’, a peça de Bortolotto, de 2002, estreada no ano seguinte sob encenação de Fernanda D’Umbra. O autor interpretava o Homem estoico e solipsista que recebe o Garoto ressentido pela ausência do pai, um motociclista desbundado que caiu no mundo. Brecha para o veterano, ex-seminarista, rememorar com o jovem interlocutor alguns dos seus ritos iniciáticos. O texto de 18 anos atrás, sugestiva maioridade simbólica, pode ser sintetizado neste trecho: “Garoto. Faz o que você tem que fazer. E não responsabilize ninguém por sua felicidade. Ela é inevitável”, despacha o guru.
O Garoto de hoje é atuado por Gabriel Oliveira (o do passado era Gabriel Pinheiro), num timming audiovisual-virtual que transcende as lentes da câmera com emoção esculpida. Oliveira fala a língua do olhar, à qual Bortolotto responde no mesmo grau. Essa contracena é marcante por desarmar a defensiva do mais velho e desaguar em terceira via não convencional, no melhor estilo obra aberta. O teatro em tela não abre mão do drama como ele é em sua complexidade.

As outras duas peças no miolo da programação soam mais solares, porém expressam as sombras interiores tanto quanto. Estou exausta mas continuo prática, texto de Bruna Pligher e direção de Antoniela Canto, apanha a cinquentona Sandra exultante no “monólogo” com Márcio, sujeito oculto com quem passou a flertar a partir de comentários no Facebook. Ela é atuada por Cristina Vilaça. A euforia movida a drinque cor de anis e biquíni asa-delta (não basta tê-lo, é preciso usá-lo dentro de casa, como ela assente) mexe com o imaginário de quem está do outro lado da ligação. A certa altura, Sandra comenta sobre os medicamentos para combater a crise de ansiedade, em tese destinados à mãe dela. O verismo das imagens contrastam a depressão d’alma.
Por fim, a voltagem erótica recai sobre Amor livre, texto de Renata Mizrahi e direção de Cynthia Falabella, em que o não pactuado ganha contornos tragicômicos. Rebeca e Juliano namoram há três anos e a pandemia os distanciaram em suas casas (um deles é do chamado grupo de risco), daí as conversas pelo Zoom. Depois do brinde virtual com vinho, ele resgata uma ideia antiga, atribuída a ela: quer abrir o relacionamento. Mas como, e a Covid-19?
Tendo como pano de fundo uma paródia do livro Ética do amor livre: guia prático para poliamor, relacionamentos abertos e outras liberdades afetivas (Elefante Editora, 2019), das americanas Janet W. Hardy e Dossie Easton – se não à obra, aos menos uma paródia ao título –, a dramaturga expõe como as percepções de si e do outro são desconstruídas em poucos minutos. Do êxtase ao desencanto, mas sempre personagens dissimulados, esse casal leva Carolina Cardinale e Pablo Perosa a atuarem sob o fio da navalha da caricatura que esses filhos da classe média fizeram de suas vidas e conjecturam, firmemente, multiplicar.

Na travessia do Terça em Cena, o caráter experimental é estruturante sem fechar-se em círculo. Seja com autores que se autodirigem, seja com quem delega a função, prevalece o desejo comum de comunicar as vulnerabilidades dos dias e mensurar as distâncias nessas tentativas de encontro. Exceção a uma das criações, a transmissão dessas ilhas intercambiantes transcorreu sem efeitos visuais, por vezes assumindo luz inconstante, de maneira que todo peso é atribuído ao enunciado. A palavra como veículo expresso nas telas divididas ou plenas.
Está programada para terça (13), às 21h, a reprise desta sequência, mas os ingressos gratuitos, via plataforma Sympla, se esgotaram. O projeto Terça em Cena surgiu em 2013, parceria da companhia La Plongée com o Cemitério de Automóveis, sob curadoria de Mayor. Vingaram mais de 150 peças.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Doutor em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado pelo mesmo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.