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Crítica

Relatos de um corpo imaginário

A partir do espetáculo 'Cabo enrolado', da Cia Graxa (SP)

22.9.2025  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Zelu Torres

Em Cabo enrolado, da Cia Graxa (SP), a vinheta instrumental de Imunização racional faz um sobrevoo-relâmpago na paisagem sonora e desperta da memória os versos da canção mais conhecida pelo título informal Que beleza, primeira faixa do disco Tim Maia racional vol. 1 (1975): “Que beleza é saber seu nome/ Sua origem, seu passado/ E seu futuro/ Que beleza é conhecer/ O desencanto/ E ver tudo bem mais claro/ No escuro”. Poderia ser uma boa súmula ante a experiência de presenciar o que é narrado e proporcionado no espetáculo que tem na musicalidade uma das suas vigas mestras. O que pode ser ilustrado pelo acompanhamento espontâneo da batida de pé, em diferentes momentos, por quem está posicionado na plateia, uma arquibancada da Sala Multiuso do Espaço Cultural Renato Russo, na programação do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.

Julio Lorosh testemunha, concebe, escreve, dirige e atua performando voz, em alguns instantes ao microfone, cabendo ao edifício corpo transmutar o espaço cênico aparentemente vazio, dissipando os indícios de uma atuação solo. Afinal, como na cultura hip hop, quem dança breaking pode receber a força gravitacional da roda de pares e passantes.

Já nos primeiros minutos sobressai a vibração de ocupar e povoar a narrativa com a desenvoltura de quem ginga e joga amparado por sete outras pessoas em sintonia fina na execução de instrumentos musicais, operação na mesa de luz, projeção de vídeo, contrarregragem e demais expedientes-chave, inclusive em interações vocais simultâneas, como se expusessem em bando o nervo exposto das metrópoles na atualidade: a condição precarizante de quem trabalha com entregas sobre duas rodas. Uma gente confrontada diariamente com a exploração do modelo de negócios das plataformas digitais que se aproveitam da taxa de desemprego e da falta de regulamentação para transferir todos os riscos da atividade a quem está montado na moto ou na bicicleta.

Em sua radiografa dramatúrgica cravada de dados sociais, políticos e econômicos, muitos deles derivados de vivências próprias, sem jamais perder de vista o horizonte da linguagem, o espetáculo ‘Cabo enrolado’, escrito, dirigido e atuado por Julio Lorosh e cocriado por mais sete pessoas da Cia Graxa ao redor da cena, alcança sínteses e perguntas provocadoras acerca da naturalização com que a desumanidade das relações de trabalho vêm escalando, a ponto de lembrar práticas do período da escravidão

Assim como existe a chamada internet das coisas, rede de dispositivos físicos equipados com sensores e outras tecnologias que permitem trocar dados entre si e com sistemas, a criação da Graxa mostra a engrenagem das coisas por trás do mercado de entregas por aplicativo. A dramaturgia agrega um breve dossiê histórico com informações pouco difundidas acerca do universo cotidiano de quem presta serviço como motoboy. Desde os anos 2000, primeiros passos da telefonia móvel, quando havia carteira assinada, até a chegada dos smartphones, GPS e aplicativos, com as pequenas empresas engolidas pelas gigantes da tecnologia. E sob o imperativo da informalidade, contrato de trabalho virou cadastro virtual.

A peça desmonta o discurso enganoso das empresas do ramo, em geral controladas por multinacionais. Como no vídeo publicitário Viver é uma entrega, da Ifood, veiculado na televisão e na internet no período mais agudo da pandemia, um escárnio para com milhões de trabalhadores da periferia que não tiveram a oportunidade de ficar em confinamento em razão das medidas sanitárias, longe disso.

Para ilustrar como funciona o sistema na prática, o narrador chega a estabelecer analogia com um software, “que triangula as suas entregas aceitas e recusadas, porque você não pode revisar todas, senão você é bloqueado”. Esse dispositivo gera uma pontuação para o trabalhador continuar sendo acionado para entregas, ou não. “É o pior dos carmas. Antes, já era ruim competir contra seus colegas de trabalho. Agora, é pior, é contra você mesmo”. E emenda: “A última palavra em gestão humana do trabalho é o gerenciamento algoritmo rimando com os métodos arcaicos do capataz”.

O tom de denúncia, contudo, não esmorece o poder de elaboração estética contrastado à dureza do retrato. Demais integrantes da companhia usam camisas de diferentes times de futebol e articulam-se como numa jam session, o clima de improviso como forma potente de correia de transmissão ciceroneada por Lorosh.

Zelu Torres Cena em que o jovem adulto irrompe na figura do trabalhador motoboy em ‘Cabo enrolado’, da Cia Graxa, de São Paulo, sob dramaturgia, direção e atuação de Julio Lorosh

A tônica da exploração na base da pirâmide social soa ainda mais contundente quando enunciada a partir do ponto de vista desse trabalhador informal, o sujeito periférico motoboy, como se propõe a montagem. Afinal, “todo mundo quer dignidade”, segundo diz o narrador em uma das intervenções sobre desigualdades de classe, renda e raça que permeiam a primeiro peça da Graxa, estreada em 2023, sendo a companhia fundada em 2019, com raízes nas zonas sul e leste da capital paulista.

E antes de seguir com a análise a partir de Cabo enrolado, parênteses para um breve panorama. Entregadores por aplicativo que carregam caixas nas costas sobre veículo de duas rodas tornaram-se frequentes nos centros urbanos assim como avançam no imaginário e na materialidade do teatro feito reflexo da perversão do capitalismo e sua doutrina vigente neoliberal que tratora as condições de trabalho e, consequentemente, de vida.

Mochilas, bags ou bolsas, como também são conhecidos os recipientes com isopor térmico revestido para transportar alimento, bebida e demais produtos, viraram marcadores de cena para fabular realidades prementes. Sinais dos tempos pontuados em espetáculos como Circomuns (2021), do Circo Teatro Palombar, sediado no bairro Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo; Estudo n°1 – Morte e vida (2022), com Grupo Magiluth, do Recife (PE); Tá pra vencer (2024), criação de Ailton Barros, Filipe Celestino, Jennifer Souza, Naruna Costa, Emicida e Jhonny Salaberg; Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso (2025), direção de Felipe Hirsch e dramaturgia de Caetano W. Galindo, Guilherme Gontijo Flores, Juuar e Hirsch, mais colaboração de textos improvisados pelo elenco; e por fim Réquiem SP (2025), do Grupo Cena 11 (SC), sob coreografia de Alejandro Ahmed e direção musical de Maíra Ferreira regendo Orquestra Sinfônica Municipal e Coral Paulistano, em que um piloto de manobras radicais chamado Darlan Star Motos faz uma intervenção cênica no Theatro Municipal, entra pela plateia no piso térreo, sobe rampa até o palco e simula a entrega de um documento a uma das bailarinas, para depois cometer acrobacia sobre uma roda – os três últimos trabalhos também produzidos na capital paulista.

De volta a Cabo enrolado, e à maneira de contraponto, se o diretor Antunes Filho (1929-2019) tinha no guarda-chuva preto uma espécie de assinatura extensiva ao gesto de atrizes e atores, sobretudo nos anos 1980 e 1990, imprimindo uma camada expressionista por meio da qual a realidade era como que distorcida em favor da leitura subjetiva de sentimentos e emoções inerentes à condição humana, a Cia Graxa, adepta do lema “teatro de mãos sujas”, navega por outra face da subjetividade ao instaurar o real como matéria-prima para fabular.

Em sua radiografa dramatúrgica cravada de dados sociais, políticos e econômicos, muitos deles derivados de vivências próprias, sem jamais perder de vista o horizonte da linguagem, Lorosh alcança sínteses e perguntas provocadoras acerca da naturalização com que a desumanidade das relações de trabalho vêm escalando, a ponto de lembrar práticas do período da escravidão.

No centro dessa mirada socioeconômica resiste a humanidade na formação de quem é criado na periferia. Antes do motoboy-narrador vir à baila, o espetáculo traça a genealogia da criança, do menino, do adolescente, até desaguar no jovem adulto. No prólogo, o atuante-narrador situa o ponto de partida e o cavalo de pau já na largada. “Essa peça começou em 2015, quando atendi um telefonema e do outro lado da linha estava o meu irmão, que tinha acabado de ser baleado. O meu irmão trabalhou uns 15 anos e ficou tetraplégico. A história da peça não é a história dele, não é a minha”, pontua. Tamanha dissidência revela-se determinante à obsessão inventiva do projeto que dosa autobiografia em favor da plenitude do ato revolucionário de excitar a imaginação.

Zelu Torres Lorosh pisa os espaços da plateia e cênico para expor a engrenagem das coisas por trás do mercado de entregas por aplicativo e a exploração pelas empresas de tecnologia

Em cruzo com a obra de tintas realistas de Plínio Marcos (1935-1999), Lorosh saúda, ainda no prólogo, uma fala do dramaturgo ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1988, ano do nascimento da Constituição Cidadã. Em mais um exemplo da autodeclarada fé e desejo manifesto pelo teatro, ofício de existência, o santista alude à “solidão daquela garotinha que é obrigada a migrar e ficar no seio da família estranha como empregada doméstica”, bem como ao “desespero daquele garoto que é obrigado a sufocar os apelos vocacionais e se debruçar sobre livros de contabilidade e atender fregueses rabugentos”.

A dramaturgia transita desenvolta por tempos e espaços com uma expressão de sentimentos em diferentes fatias da vida do narrador. De sua casa, o moleque de 12 anos vê o mundo de nuances comunitárias, fraternas e cruéis por meio dos furos, ou “frestas”, como prefere, ao citar os tijolos baianos. “Tudo fazia parte das constelações de alvenaria”, como diz. A exemplo da falta d’água ou das mulheres que, como sua mãe, andavam na madrugada silenciosa e temerosa até o ponto de ônibus para atravessar a cidade e trabalhar, boa parte delas para cuidar dos outros enquanto deixava os filhos em casa, seu caso. A criança também carrega seus fantasmas. “Eu tinha 12 anos. Não foi a primeira vez que vi um corpo apagado pelo clarão. Mas assistir o mundo das frestas de barro me davam segurança, me davam distância. Ficar ali, de peito aberto diante do corpo, me deu a sensação de familiaridade”, relata.

A vida escolar voa e a história salta para os 18 anos, quando a percepção sagaz já o localiza no espírito da economicidade que aprendera na lida doméstica com a mãe, nos carnês de prestação colocados em cima do guarda-roupa ou da geladeira, “com uma santinha em cima, porque a glorificação brasileira é a linha de crédito estendida, não é não?”. É nessa idade que financia a primeira moto  e toma pé do ciclo vicioso: “Fazer uma dívida para se sustentar, depois trabalhar para pagar a dívida que você fez para sobreviver”. O rapaz parece levitar em cena no encontro com o vendedor na concessionária, capturando a frequente fascinação juvenil pelas cilindradas.

Com o acúmulo das jornadas de trabalho, vem a consciência das regras do jogo para a categoria dos “motoca”, consequentemente, dos artifícios para quebrá-las e aumentar a produtividade. A explicação é técnica, didática e tem pitada de autocrítica: “É isso que é enrolar o cabo. É torcer a manopla do acelerador, fazendo ela dar uma volta do motor, aumentando com isso a liberação de gasolina e a combustão. O impacto da combustão dentro do motor. Ou seja, quebrar constantemente as regras, ultrapassar limites de velocidade, passar semáforos vermelhos, quebrar constantemente as regras, não só garante o funcionamento do aplicativo, mas também da cidade como um todo”.

Enquanto dá a real, o homem feito está casado, prestes a ser pai (pouco fala da companheira), e parece sentir sobre os ombros o peso da subsistência. Contrariamente à culminância trágica que se desenha, a encenação lança mão de um achado que traduz à perfeição o dia a dia de entregadores: o narrador empilha caixas de papelão, nove embalagens de pacote como nove costumam ser os meses de gestação. É aqui que a beleza do teatro ajuda a contrariar todas as estatísticas. Lorosh ergue com as mãos a torre de caixas sobrepostas. Desloca-se lentamente, equilibra-se, deixa a plateia em suspenso, diz o texto, até repousar os volumes em outro canto do chão da sala multiuso. Nada desmorona, tudo se transforma. A estrutura provisória esculpida no ar constitui uma das essências dessa sábia criação que colhe a lira do asfalto em dias tão brutais.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.

Cabo enrolado

Cia Graxa

O espetáculo participou da edição comemorativa dos 30 anos do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, com sessões dias 27 e 28 de agosto de 2025, na Sala Multiuso do Espaço Cultural Renato Russo 508 Sul. Estreou em 9 de maio de 2023, no Centro Cultural da Penha, zona leste de São Paulo, contemplado na 19ª edição do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura. Selecionado na 5ª Mostra de Teatro Heliópolis – A Periferia em Cena, em 2023. Fez temporada no Sesc Belenzinho entre 8 e 17 de novembro de 2024.

Zelu Torres A cena-síntese em que Lorosh ergue a pilha de nove caixas, a ponto de ficar oculto atrás da escultura esculpida no ar
Zelu Torres Sete outras pessoas cocriadoras em sintonia fina com música, luz, vídeos e demais recursos conformam uma espécie de bando que contribui para tocar o nervo exposto das metrópoles na atualidade: a condição precarizante de quem trabalha com entregas sobre duas rodas

Ficha técnica

Concepção, interpretação, direção e dramaturgia: Julio Lorosh

Músicos: Matheus Vieira e Cesar Aranguibel

Criação musical: Cesar Aranguibel, Dunstin Farias, Julio Lorosh e Matheus Vieira

Direção musical e arranjos: Cesar Aranguibel

Composição: Dunstin Farias e Julio Lorosh

Operação de vídeo: Rafael Americo

Desenho e operação de luz: Felipe Tchaça

Operação de som: Nick Guaraná

Contrarregra: Júlia Tavares

Assistente geral: Guynho Sousa

Design gráfico: Malako

Vídeoarte: Malako

Cenografia e figurino: Walison Martins e Júlio Lorosh

Preparação corporal: Castilho

Registros fotográficos: Lorena Rezende e Wes Barba

Vídeo: Malako

Produção geral: Uli Dias (Encantaria Produções)

Coordenação geral: Gunã

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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