4.4.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 04 de abril de 1996. Caderno A – capa
Autor e diretor revela em “Nowhere Man”, sua nova peça, apresentada em Curitiba, necessidade de ampliar canal com espectador
VALMIR SANTOS
Gerald Thomas no centro de uma entrevista coletiva é um festival de pérolas. Com ironia contumaz e bem-humorada – ainda que algumas respostas soem ríspidas -, ele adianta pouco de “Nowhere Man”, na véspera da estréia em Curitiba, semana passada. Mas fala à vontade do se “estilho”, critica congêneres brasileiros (exceção de Antunes Filho, a quem devota respeito confesso), enfim, não faltam as idéias e, claro, as polêmicas.
CRIAÇÃO – Primeiro eu penso na ação e depois na dramaturgia. Geralmente crio as cenas já com o ator na cabeça.
DAMASCENO – O Fausto aqui é um misto dele comigo. [É indagado se Damasceno seria seu Luis Melo, em referência ao ex-ator de Antunes]. Pode até ser, mas não estou despedindo ele por fax e quero que ele compre mais eletrodomésticos (ri).
FAUSTO – Qualquer ser em crise, em momentos étnicos e culturais de transição, que tem sede pelo poder da eternidade, tudo isso é Fausto.
ELENCO – A maior dificuldade em trabalhar com parte do elenco de atores de Curitiba foi a língua. É difícil…”leeite quiente” (ri). Preciso de um tradutor…
CRÍTICA – A imprensa inventa certas coisas e também invento as minhas. Venho fazendo humorismo desde “The Flash and Crash Days” e sempre dizem que estou começando uma nova fase, mais cômica. Para mim, começa uma nova fase a cada manhã que me olho no espelho.
CLASSE – Tenho muita segurança que faço, por isso as pessoas gostam de me atacar… É assim com essa classe teatral moribunda, com peças de “merda”… Quem faz sucesso lá fora é sempre criticado… Aconteceu com Jobim, com Carmen Miranda…
DIRETORES – A diferença entre eu e Villela, Moacyr Góes, Bia Lessa e outros é que eu escrevo meus textos. Co exceção de alguns “amigos” meus, como Beckett e Müller, não costumo montar outros autores. Chega de montar “Hamlet”! Porque não pensar em texto novo?… O teatro brasileiro é feito de alunos querendo tirar nota 8 ou 10 com os clássicos… Com Antunes é diferente, ele descobre textos importante, como “Vereda da Salvação” e “Gilgamesh”… É o que mais respeito por aí, porque está sempre pesquisando a dramatização.
IMAGEM – Em 1861, Wagner (compositor alemão) já dizia que o teatro é a “obra de arte total”. Não existe essa classificação de imagem, de palavra.
28.3.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 28 de março de 1996. Caderno A
Há dez anos na Cia. Ópera Seca, Luis Damasceno é homenageado em espetáculo que estréia amanhã em Curitiba.
VALMIR SANTOS
12.3.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Terça-feira, 12 de março de 1996. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Uma mistura de Bahia com Off Broadway. São Paulo vai cair na gargalhada a partir de Quinta-feira. A Companhia Baiana de Patifarias, aquela que arrebatou público e crítica com o fenômeno “A Bofetada”, volta com o musical “Noviças Rebeldes”. Segundo Lélio Filho, 33 anos, na Patifarias desde o início, há nove, até padre e freira já assistiram à comédia e não se intimidaram com passagens “picantes”. “Noviças Rebeldes” cumpriu temporada de um ano em Salvador. A companhia é testa-de-ferro do teatro baiano, que aporta nos anos 90 com inventividade no eixo Rio-São Paulo. Wolf Maia dirige o mesmo espetáculo montado por ele no final da década de 80. Desta vez, porém, os personagens femininos são interpretados pelo quinteto masculino. A seguir, a entrevista de Lélio Filho a O Diário.
O Diário – Como você analisa a trajetória da Companhia de Patifarias, desde a primeira peça, “Abafabanca”, há nove anos, passando por “A Bofetada” e agora com o musical “Noviças Rebeldes”?
Lélio Filho – Parece óbvio, mas encaro como amadurecimento. Isso faz parte de qualquer grupo, mas no nosso caso, trata-se de uma pesquisa do gênero comédia. Estamos trabalhando desde 87, quando fizemos “Abafabanca” como mambembes, no melhor sentido da palavra, com aquele artesanal. Hoje, com “Noviças”, temos um contexto mais profissional, desde o texto até a preparação dos atores, que trabalharam canto, dança, sapateado.
O Diário – Mas aquele sentido artesanal, de criação coletiva, que norteava o início da companhia, de certa forma continua?
Lélio – É claro, sempre vamos trazer isso com a gente. É uma coisa intrínseca. “Noviças”, por exemplo, tem o espírito dos musicais Off Broadway. Mas com a nossa leitura, Bahia com Broadway. O autor, Dan Goggin, teve a idéia do texto há cerca de uma década, quando acompanhou uma exposição de postais que traziam freiras em situações inusitadas, como num engarrafamento, carregando pacotes de compras ao atravessar a rua… A partir daí, saiu o texto que quebra aquela imagem sisuda das freiras, revelando-as bem humoradas, brincando com bastante humor negro.
O Diário – Existe um fundo feminista?
Lélio – Não acredito que seja isso. A mensagem é de libertação, de imaginar seres humanos enclausurados mas livres, numa perspectiva espiritual, humana. A gente tem esse compromisso de fazer a platéia se divertir… Praticamente, não me considero um comediante, mas um ator que no momento trabalha com comédia.
O Diário – Na temporada de Salvador, houve alguma perseguição por parte da Igreja?
Lélio – Por mais picantes que sejam alguns momentos, tivemos grupos de terceira idade, senhoras na platéia. Até freiras e padres, à paisana, ou mesmo um caso de uma freira, que certa noite sentou na primeira fila, com seu hábito, e aplaudiu bastante ao final. A montagem está interessada no simples prazer do riso… O picante aqui é só uma piada, não há intenção de agredir.
O Diário – Com “A Bofetada”, que permaneceu em cartaz por cinco anos e meio, a Patifarias foi a principal responsável pela introdução do teatro baiano na cena nacional. Já vimos Márcio Meirelles com seu Bando de Teatro do Olodum, com “Zumbi”, a atriz Rita Assemany, com “Oficina Condensada”, a diretora Carmen Paternostro… Você acha que é por aí?
Lélio – Sou suspeito para falar… Mas Salvador reconhece a importância da companhia que, desde 1987, 1988 deu uma impulsão no teatro baiano. Na época, havia um sentido muito comercial, de espetáculos com atores globais, e as pequenas produções só eram acompanhadas por um público específico. Mas felizmente houve um retomada. No ano passado, por exemplo, Salvador abriu com “Noviças Rebeldes” e fechou com uma estréia também importante, a tragédia “Othelo”, com direção de Carmen Paternostro.
O Diário – Com “A Bofetada”, vocês conseguiram ganhar o público de São Paulo justamente com especificidades do humor baiano. Como foi?
Lélio – Pois é, a gente conseguiu estabelecer uma comunicação com vários públicos. Isso foi muito bom, porque não esperávamos.
O Diário – Os cinco atores são baianos?
Lélio – Com exceção de Wilson de Santos, que nasceu em Santos (SP), eu, Fernando Mrinho, Beto Mettig e Diogo Lopes Filho somos todos nascidos na Bahia.
O Diário – Wolf Maia, o diretor, acompanha a estréia em São Paulo?
Lélio – Ele chega amanhã (hoje)… No final dos anos 80, ele montou “Noviças Rebeldes” com atrizes no elenco. Agora, se junta à Patifaria para um musical interpretado somente por atores.
Ao participarem de uma noitada de bingo, as freiras do convento Salue-Marie acabam vítimas de botulismo (envenenamento alimentar), depois da sopa.
Resta às cinco sobreviventes enterrar as companhias, com as economias do convento. Antes da empreitada, a madre superiora, Irmã Gardênia (Fernando Marinho), resolve fazer um grande sonho do consumo: a compra de um vídeo-cassete.
Acaba, porém, zerando as economias do convento. A solução encontrada é colocá-las num freezer e realizar um show beneficente, cuja verba será revertida em prol do enterro decente.
Ao serem informadas da decisão sobre o show, cada uma começa a preparar seu “número”: irmãs Amnésia (Lélio Filho), José (Wilson de Santos), Léo (Beto Mettig) e Frida (Diogo Lopes Filho).
É o suficiente para as irmãs do Salue Marie botarem os seus “demônios” para fora. Daí em diante, sucedem-se cenas de dança, canto e interpretação com grandes revelações sobre as personalidades das freiras do convento.
O improviso, marca registrada da companhia em “A Bofetada”, está mais contido. Afinal, “Noviças Rebeldes” tem início, meio e fim. Foram acrescentados cenários e iluminação incrementada, aulas de canto, dança e sapateado.
A tônica profissional alterna, segundo o material de divulgação distribuído à Imprensa, momentos hilariantes com números musicais e cenas de religiosidade.
Noviças Rebeldes – De Dan Goggin. Direção: Wolf Maia. Estréia quinta-feira, 21h. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Imprensa (rua Jaceguai, 400, Bela Vista, tel. 239-4203). R$ 15,00 (quinta), R$ 20,00 (sexta e domingo) e R$ 25,00 (sábado). 120 minutos. Até junho.
28.12.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 28 de dezembro de 1995. Caderno A – capa
São muitos os signos presentes na montagem de Antunes Filho, em cartaz até sábado, como a convivência do bem e do mal
VALMIR SANTOS
Antunes Filho está encantador. Há dois meses, ele mostrou o que considera um esboço do sua nova montagem, “Nos Caminhos da Transilvânia”. Já um trabalho impactante, ele definiu o espetáculo como o segundo de sua trilogia “fonemol”, inaugurada com “Nova Velha Estória” quatro anos atrás. A terceira peça ainda está por vir.
O “fonemol” vem da linguagem absolutamente inventada e utilizada pelos atores em cena. Antunes desconstrói o português para buscar um estado superior de consciência, primitivo, prematuro. Um linguagem destituída da compreensão oral concebida pelo Ocidente; é gutural (lembra alemão ou russo, mas não é).
Uma oportunidade para conferir este mergulho junguiano é assistir a remontagem de “Nova Velha Estória”, em cartaz até sábado na Capital.
Aqui, Antunes revisita o clássico infantil universal, “Chapeuzinho Vermelho”, para tocar no tema da sedução e, principalmente, discutir os conceitos de bem e mal em voga na humanidade.
O seu Lobo Mau, por exemplo, não é tão mau assim. A relação – literalmente – com a menina desprotegida se apresenta terna, sem a ferocidade pressuposta. Ao mesmo tempo, Chapeuzinho nada tem de ingênua.
Graças ao desenho cenográfico de J.C. Serroni, a leitura do espetáculo se dá também pelas linhas horizontais que cruzam o palco. Quando Chapeuzinho anda sobre a linha branca, obedece à Vovó. Quando sobre a vermelha, segue pelo desconhecido, o inesperado. E ela vai.
As marcantes bolhas suspensas de Serroni também estão lá, fazendo valer o paradoxo da transparência que separa. Os signos são muitos em “Nova Velha Estória”, instigante.
Na primeira versão, tinha-se Luis Melo e Samantha Monteiro nos papéis de Lobo Mau e Chapeuzinho, respectivamente. Agora, Ian Cristian e Ludimila Rosa, além de Luiz Furlanetto (Vovó), Inês de Carvalho e Sandra Babeto (Amigas), emprestam um sentido maior de jovialidade, de traquinagem e, consequentemente, de jogo de sedução à história. Nunca ficou tão claro o que Antunes vive repetindo sobre seus atores: eles estão brincando em cena.
Nova Velha Estória – Concepção e direção: Antunes Filho. Cenografia: J.C. Serroni. Iluminação: Davi de Brito. Com Geraldo Mário, Luiz Furlanetto, Ian Cristian, Ludmila Rosa e outros. Últimas apresentações de hoje a sábado, 21h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 258-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (sábado). Duração: 104 minutos.
Araújo evoca arte do ator em “Plantonista”
Logo depois da única apresentação de “Plantonista Vilma”, no Espaço Cultural Yázigi, há pouco mais de duas semanas, o ator Márcio Araújo conversou com o pequeno público mogiano – a maioria atores iniciantes. Na oportunidade, falou da sua formação. Não fez escola de teatro. “Aprendi de ouvido”, brincou. O monólogo de Araújo, mais do que propriamente o bate-papo, revelou sua dedicação plena à arte de atuar.
O formato de “Plantonista Vilma” permite apresentar o espetáculo em espaços não-convencionais, como praças e colégios. Em São Paulo, cumpriu temporada no Espaço Cultural Lélia Abramo, mantido pelo Sindicato dos Bancários.
No alternativo Yázigi, também improvisou o espaço cênico. Com uma cadeira, poucos recursos de luz e som, Araújo consegue agigantar sua Vilma em cena. Faz rir e emocionar, numa variação tênue e profunda.
A partir do texto original de Noemi Marinho, o ator se permitiu introduzir um pouco da sua própria vivência. Dilui, desta forma, a densidade que dominava a peça, emprestando-lhe pitadas de humor – uma tragico-média, enfim.
O tema não é novidade no teatro: solidão. Vilma é plantonista de uma espécie de CVV, o serviço Você Não Está Só!. O desassossego, a voz dos outros serve de antídoto contra sua solidão.
Seria um prato cheio para cair na tragédia. Felizmente, Araújo faz do monólogo também um convite ao entretenimento. E aí sua Vilma é vislumbrante sem a afetação corrente dos homens que se transformam em mulher no palco.
O que surpreende em “Plantonista Vilma” é a habilidade artística de Márcio Araújo. Dos poucos recurso – inclusive pouco público –, ele respeita o teatro e dá seu recado com sinceridade. Virtudes escassas.
25.11.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Sábado, 25 de novembro de 1995. Caderno A – capa
Ela dirige e atua em “Antony & Cleopatra”, de Shakespeare, que tem última apresentação hoje na Capital; estrela do cinema, também atinge no teatro condição de artista superior
VALMIR SANTOS
A Moving Theatre, companhia inglesa da atriz Vanessa Redgrave, encerra hoje em São Paulo a temporada de “Antony & Cleopatra”. A peça de William Shakespeare, escrita no início do século 17, ganhou uma montagem sintonizada com o panorama mundial contemporâneo, aludindo aos conflitos internacionais que matam milhares.
É pano de fundo presente em várias peças do bardo inglês (“Macbeth”, “A Tempestade”). Shakespeare sempre fez o cruzamento entre o particular e o universal; o contexto demasiado humano em sintonia com a máquina do mundo (ao bel prazer das disputas, das vicissitudes dos reis, autoridades).
Em “Antony & Cleopatra”, a paixão do romano Marco Antonio (David Harewwod) pela rainha egípcia é sucumbida diante das traições de Cleopatra e, sobretudo, da insurgência da intolerância e do totalitarismo.
Passando boa parte do espetáculo descalça, metida em calças, Vanessa é a principal estrela da companhia, obviamente. O que encanta, porém, é justamente a rejeição do holofote. Na condição de atriz maior, não “apaga” os demais atores do talentoso elenco.
Sua Cleopatra brilha na emoção e no riso, onde um olhar, um pequeno gesto cativam tanto quanto poder da palavra em Shakespeare. Como pede a tradição inglesa, a Moving Theatre dispõe de um excelente trabalho de voz.
O cenário de Simon Beresford busca a neutralidade do tempo/espaço. Tudo rústico, com tons de ferrugem. Três planos (escadas, varanda). É no casamento com a luz (Jim Simmons) que as cenas ganham intensidade, seja no massacre das guerras (quase em off), seja no embate entre personagens tão marcantes.
Vanessa, 58 anos, cerca de 40 deles dedicados ao palco, absorve o mito com maturidade, sem vislumbre. Tinha tudo para seguir o caminho hollywoodianamente contrário, pois a carreira no cinema tem igual reconhecimento (“Blow-Up, Depois Daquele Beijo”, de Antonioni, “Os Demônios”, Ken Russel, “A Casa dos Espíritos”, Bille August, para citar alguns). Felizmente, é no palco, aqui também dirigindo, que explicita a condição de artista completa.
Antony & Cleopatra – De William Shakespeare. Direção: Vanessa Redgrave. Com a Moving Theatre (Aicha Kossoko, Etela Pardo, Howard Saddler, Nick Waring, Ewar James-Walters, Ariyon Bakare e outros). Última apresentação hoje, 21h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 256-2281). R$ 40,00 e R$ 20,00. 180 minutos (incluindo intervalo de 20 minutos).
17.8.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 17 de agosto de 1995. Caderno A – capa
Os atores Paulo Autran, Glória Menezes e Karin Rodrigues são dirigidos por Marco Nanini na peça do dramaturgo Noel Coward
VALMIR SANTOS
Não se deve esperar mergulhos profundos na alma humana em uma comédia dita sofisticada. Caso de “As Regras do Jogo”, um dos últimos textos do inglês Noel Coward, prestigiado dramaturgo dos anos 30 e 40. Aqui, o caminho é o da sutileza. E bem escolhido.
O que não significa ausência de conflito e de vasculhação interior. “As Regras do Jogos” mostra britanicamente os descaminhos da velhice. Sir David Latymer, o protagonista, é um escritor cuja vaidade e prepotência não têm mais porquê. Personagem prato-cheio para drama, porém revestido por Coward com forte apelo humorístico.
Perfil ideal para um grande ator, como Paulo Autran. Na montagem em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, ele é a principal sustentação do texto enxuto. Sua presença impõe graça a um Laytmer gozador e inseguro, já descortinando a morte em vida. Autran, como no monólogo “Quadrante” no papel de Próspero em “A Tempestade” com a companhia Armazém (Londrina), em recente passagem pela Capital, domina a cena como ninguém.
Ao seu lado, Glória Menezes, atriz que cai com tipos hilariantes, à beira do escracho. Sua Carlota Grey, amante do escritor, além de atriz decadente, também concentra fogo no poder do riso. Dos gestos alongados à fala propositadamente afetada, Glória vai ao exagero da interpretação, terreno que conhece, para conquistar a empatia do público ávido por uma deixa.
Karin Rodrigues, fechando o triângulo estelar, empresta elegância a Hilde, atual mulher de Latymer. Dona menos de si do que dos outros, faz da conciliação uma regra.
“As Regras do Jogo” traz um cenário naturalista (a velha sala de estar), fazendo jus ao texto. A direção de Marco Nanini é tranquila, respeitando o autor e a característica de cada um dos atores.
As Regras do Jogo – De Noel Coward. Tradução: Sérgio Viotti. Com Paulo Greca, Paulo Autran, Glória Menezes e Karin Rodrigues. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. R$ 20,00 (quarta) e R$ 30,00 (demais dias). Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 288-0136). Até 1º de outubro.
Ator mergulha no mito e emociona em “Eva Perón”
Roberto Cordovani faz uma evolução corporal impressionante em “Eva Perón – O Espetáculo”. Começa com a exuberância juvenil da então atriz de rádio Eva Duarte e termina com a frágil primeira-dama e companheira de Juan Domingos Perón, coronel que se tornou um dos principais nomes da história argentina, nos anos 40 e início dos 50.
A peça visita o mito Eva Perón. Em pleno regime militar, com a preponderância masculina no poder, ela construiu seu trajeto. Quando morreu aos 33 anos, fulminada pelo câncer, 28 quilos, colocou a Argentina em prantos. Eva, ou Evita, levou a bandeira dos humildes, dos “descamisados” – qualquer semelhança com o gasto discurso de Collor é mera usurpação histórica.
Há um tom grandiloqüente no espetáculo, mais fruto da própria cultura do país vizinho, europeizado de norte a sul, do que opção estética. O universo do tango, da passionalidade, é traduzido com esmero. O conteúdo trágico abre espaço também para o místico.
Logo na abertura, surge um Abutre (Marcos Veraz). Os movimentos do corpo se estendem às “asas” pretas. Como que um prenúncio da tragédia que se abaterá sobre o palco nos minutos seguintes. Sem contar o quinhão religioso, com inserções de uma Freira (Nair Cordovani).
Cordovani, que também assina a direção, não desembocou para o clichê. Soube se distanciar do mito para mostrá-lo como ele é. Sua Eva Perón é profunda e toca. Afetação passa longe. A carreira do ator, aliás, espelha a excelência em papéis femininos (“Olhares de Perfil – O Mito de Greta garbo”, por exemplo, é seu trabalho mais conhecido e premiado).
Além da atuação contagiante de Cordovani, “Eva Perón” apresenta Nuno de Carvalho Homem perfeitamente sintonizado com o papel do general. Despojamento do cenário (Manuel Rodrigues) e figurinos também funcionam. (VS)
Eva Perón – O Espetáculo – De Roberto Cordovani, Iolanda Aldrei e Angelo Bréa. Direção: Cordovani. Com Cordovani, Nuno de Carvalho Homem, Marcos Verza e Nair Cordovani. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 189-2358). R$ 25,00. Espetáculos para escolas, tel. 562-7437 (com Júlia ou Atílio).
‘Verás Que Tudo é Mentira’ faz poesia com metateatro
Quem se emocionou ao assistir ao sensível filme “A Viagem do Capitão Tornado”, do cineasta italiano Ettore Scola, não vai se decepcionar com a montagem de “Verás Que É Tudo Mentira”, também uma adaptação da obra de Theophile Gautier.
Metateatro, constitui uma verdadeira declaração de amor à arte de representar. A adaptação de Reinaldo Maia e a direção de Marco Antonio Rodrigues respeitam a idealização do artista pelo autor – um ser superior, um olhar diferente e captador da essência humana nas sociedades.
“Verás…” transforma uma carroça em palco. Resume, então, o espírito mambembe. Como um grupo de Tonhetas (Antonio Nóbrega), atores de uma companhia levam sua arte pela estrada, de cidade em cidade. A solução da carroça (por Márcio Medina) cria um espaço lúdico, bem ocupado quando da primeira temporada em um salão paroquial. Agora, a peça está em cartaz em nova sala, o Teatro Lucas Pardo Filho.
A montagem vibra pela entrega do elenco em cena. O sentido de roda, de jogo, está presente do início ao fim.
Trata-se de uma história que evoca a secular comédia dell’arte. Uma trupe mambembe francesa dirigida por Tirano (Paulo Bordhin) viaja com destino a Paris, em busca do sucesso – das luzes. No caminho, se hospeda no castelo do barão Sigognac (Mário Condor). Descontente com a vida, ele acaba se incorporando ao grupo e, quando menos espera, está no palco.
Abdicar do curso comum dos mortais, eis a função do artista, parece ser a mensagem poética de Theophile. A montagem a leva à risca e compartilha um momento muito especial com os espectadores. (VS)
Verás que é tudo mentira – De Theophile Gautier. Adaptação: Reinaldo Maia. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Com Renata Zanetta, Rogério Bandeira e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Lucas Pardo Filho (rua Gravataí, 47, Consolação, tel. 276-3026). R$ 15,00. 90 minutos. Até novembro.
10.8.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 10 de agosto de 1995. Caderno A – capa
Personagem de Gabriel Guimard, espécie de gari que sonha virar Superman, emociona com repertório gestual em “Shazam!”
VALMIR SANTOS
A figura do clown é das mais cativantes no teatro. Embute as molduras da comédia e da tragédia para evocar um estado superior da arte cênica: o lúdico, instante de mágica comunicação entre ator e público. Cita-se os personagens fixos da commedia dell’arte, por exemplo.
Gabriel Guimard acrescenta a mímica (ou pantomima) ao clown para emocionar e fazer rir em “Shazam!”, seu espetáculo solo. É resultado de uma intensa pesquisa do gesto iniciada em meados dos anos 80, quando trabalhou com nomes como Denise Stoklos e Paulo Yutaka (fundador do grupo Ponkã). Mais recentemente, fez parte da companhia francesa do mímico Philippe Genty.
Para o devaneio poético, Guimard criou o personagem Extrabão, limpador de chão que sonha em se transformar numa espécie de Superman para combater a solidão.
O pequeno palco do auditório da escola Cultura Inglesa, na Capital, é forrado de “sujeira”, com vários objetos, como vassoura, pázinha, rodo, espanador, enfim, utilizados ao longo da encenação.
Não só o corpo como instrumento número 1 da cena, mas a extensão deste através dos objetos cênicos. Guimard, ou melhor, Extrabão, dá vida ao inanimado. Uma onomatopéia aqui e ali, uma frase ou outra e recurso modesto de luz, também coroam o exercício clownesco.
“Shazam!” não é para grandes platéias. Equilibrando-se sobre o tênue fio que separa o riso do choro, trata-se de um espetáculo intimista. Vamos se envolvendo de tal forma com as duas faces de Extrabão – o lirismo do varredor e a perversão do “alter-ego” -, que o distanciamento sucumbe e cede para a ternura que toma conta do “vão”.
Ao final, depois da despressurização de ícones pops, do desnudamento da alma de Extrabão, paira o silêncio que incomoda e do qual o genuíno clown se alimenta para continuar sua cruzada.
Shazam! – Criação e interpretação de Gabriel Guimard. Direção: Eric de Sorria. Quinta e sexta, 21h30; sábado, 22h30; domingo, 20h. Cultura Inglesa – Teatro 2 (avenida Higienópolis, tel. 226-4322). R$ 10,00. 60 minutos. 120 lugares. Não tem acesso para deficientes.
Cantora Marisoll Jardim é destaque de “Amor Bruxo”
Musical requer bons intérpretes e músicos. “Amor Bruxo” tem a cantora Marisoll Jardim e um quinteto instrumental de tirar o fôlego. A montagem do diretor Roney Villela traduz com fidelidade o espírito flamenco.
Inspirada em “El Amor Brujo”, libreto do espanhol Martinez Sierra, o musical traz nos passos, cantos e ritmos toda a passionalidade do povo andaluz. Aqui, aborda-se o universo dos ciganos, suas crenças, rituais, danças e cerimônias.
Villela, também responsável pela adaptação do texto, conseguiu uma estética flamenca, por assim dizer; contudo não atinge a mesma síntese no encadeamento da história.
A dança e a musicalidade emocionam, mas “Amor Bruxo” perde o rebolado em outro verso da interpretação: o ator. Quando surge o conflito dramatúrgico entre os protagonistas, intensidade se esvai, ainda que se tente sustentá-la pelo fundo musical. Ressalva-se, porém, a presença da veterana atriz, Ana Rosa, com sua densa Tio Rosário.
O palco do Palace, normalmente um espaço difícil de ser trabalhado, tem uma preocupação homogênea. Em dois planos, o cenógrafo Arturo Uranga possibilita inclusive o “deslocamento geográfico” das cenas. A iluminação afinada e os sempre coloridos figurinos (Nívea Guimarães) também dão conta do espírito flamenco.
A emaranhada história de amor que envolve Pedro (Ruben Gabira), Manuela (Lúcia Helena Máximo, um dos mais belos solos de dança), Carmelo (Guilherme Fontes) e Lúcia (Carla Alexandar), apesar de tudo, ganhou uma montagem bem cuidada. (VS)
Amor Bruxo – Inspirado no libreto de Martinez Sierra. Adaptação e direção: Roney Villela. Com Patrícia Salgado, Cláudia Barnabé, Ana Morena, Tereza Artigas, Júlia Sanz, Juliana Moreyra, Ney el Moro, Fredy Allan, Laura Romero, Glauco Luís, Thaís Pinto, Ludmila Dayer e outros. Quinta e domingo, 21h; sexta e sábado, 22h. Palace (avenida dos Jamaris, 213, Moema, tel. 531-4900). R$ 20,00 a R$ 40,00. Até domingo.
20.7.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 20 de julho de 1995. Caderno A – capa
“O Milênio Se Aproxima”, primeira parte da peça de Tony Kushner, ganha montagem brasileira pulsante e com ótimo elenco
VALMIR SANTOS
A urgência dos tempos que correm assusta. Da macro política ao pleno exercício da sexualidade, desmancham-se as certezas, os tabus. Na periferia socialista ou no primeiro mundo capitalista, seres humanos mergulham em (des)crenças.
Pode ser a síndrome do fim de século que se abate sobre a humanidade a cada virada de milênio. Mas o chão é aqui, no presente. Fim da Guerra Fria, Muro de Berlim, anos 80 “despertando uma política sinceramente americana na era Reagan”, globalização da economia… A natureza do homem é meticulosamente transformadora, provendo-se de uma incrível capacidade de emaranhar-se.
Tony Kushner, o autor de “Angels in América”, a peça arrasa-quarteirão montada em todo o mundo, instiga com a peneirada. Política, Aids, sexualidade, racismo e religião passeiam pelo texto com objetividade sem igual. Vai direto ao assunto.
Incomoda. Tanto que estreou no gueto, por assim dizer, em São Francisco (EUA), há quatro anos, para depois chegar à Broadway de fato, dois anos depois. Quando a peça tem a dizer, não cala: ganhou os prêmios Politzer e Tony.
O acesso a “Angels in América”, ainda não traduzida no Brasil, se dá pela montagem da primeira parte da peça, “O Milênio Se Aproxima” – a outra é “Perestroika” -, que entrou em cartaz semana passada na Capital.
Felizmente, a tradução de Isa Mara Lando e a concepção do diretor Iacov Hillel atingem um tratamento à altura do texto de Kushner, atualmente 38 anos.
A adaptação de Hillel cometeu alguns cortes, mas sem prejudicar, ao que parece, a densidade da história que envolve oito personagens-chave; entre eles um casal homo e outro heterossexual.
Prior Walter é namorado do judeu Louis Ironson, que o abandona em plena convalescência pelo vírus da Aids. Joe e Harper Pitt formam o outro casal, mórmons, sendo ele um homossexual reprimido e ela viciada em Vallium por conta de um relacionamento frio.
O personagem Roy Cohn, um advogado, é baseado no assessor do senador americano Joseph MaCarthy, morto de Aids em 1986. Belize é um travesti negro e o Anjo, por fim, representa o mensageiro.
Através desta síntese panorâmica contemporânea, “O Milênio Se Aproxima” chacoalha os sentidos do espectador, bombardeado por informações/provocações em duas horas e quarenta minutos de montagem.
Católicos e Judeus
“Os católicos acreditam no perdão, enquanto os judeus na culpa”, afirma uma rabino que aparece no início. Simbolicamente encomendando um corpo, empurrando um caixão. “Roy Cohn não é homossexual, Roy Cohn é heterossexual que trepa com homossexual”, dispara o próprio no consultório, após resultado do teste: HIV positivo.
A montagem deve muito do impacto aos atores. João Vitti, que vem de uma atuação mediana em “Budro”, aqui se entrega literalmente a Prior Walter. Magro (perdeu 10 quilos para a peça), oscila entre a graça e o desespero do pivô da história. Cássio Scapin, que faz o companheiro, o confuso Louis Ironson, é que melhor explora o humor negro injetado por Kushner.
Lúcia Romano está perfeita no papel da insegura e alucinada Harper Pitt. Principalmente na fragilidade corporal que emana. O veterano Rodrigo Santiago faz um Roy Cohn visceral, dimensionando a ambição desgarrada pelo poder.
Iacov Hillel, também responsável pela cenografia, impõe uma direção correta, correspondendo ao realismo narrativo do autor. Preservou o humor instantâneo do texto, sempre preocupado com o ritmo pulsante – não esmorece nem nos blecautes que entremeiam as cenas.
“Angels in América”, a peça, ou “O Milênio Se Aproxima”, a primeira parte, profetizam um futuro imediato onde o homem terá que desnudar-se dos preconceitos e “pesos” de dogmas vários, como condição sine qua non para se atingir o mínimo de existência digna. Não se trata de julgar, mas conjugar.
Angels in America – O Milênio se aproxima – De Tony Kushner. Direção: Iacov Hillel. Tradução: Isa Mara Lando. Figurinos: Fábio Namatame. Trilha sonora: Tunica. Com Milah Ribeiro, Eliana Guttman, Luis Miranda e outros. Quinta a sábado, 20h30; domingo, 19h30.
Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, próximo ao metrô Santa Cruz, tel. 573-3774). R$ 8,00. 2h40. Até setembro.
Razões Inversas encena loucura de Torquato Tasso
O diretor Márcio Aurélio e sua Companhia Razões Inversas (“A Bilha Quebrada”) estréiam hoje “Torquato Tasso”, espetáculo que participou recentemente no Festival de Caracas, na Venezuela.
Trata-se da história do poeta italiano Torquato Tasso (1544-1595), “o último grande clássico” e “ídolo dos românticos” na literatura universal. Foi uma figura bastante conturbada. Perdeu a mãe ainda jovem, esteve envolvido com censura inquisitorial, vítima de frustrações eróticas, protagonista da lenda do infeliz amor pela princesa Leonor D’Este, alternou períodos de lucidez e alucinação até mergulhar na loucura absoluta e morrer.
A loucura do poeta renascentista foi durante séculos uma das questões mais discutidas. Desconcertava que, desequilibrado, pudesse compor tão bem sonetos, canções e poemas. Surpreendia que, do hospital, escrevesse cartas tão lúcidas e convincentes.
O escritor alemão Wolfgang Goethe (1749-1832) publicou “Torquato Tasso” em 1790, uma tragédia em cinco anos. Apesar do contexto histórico, a peça é sobretudo uma criação da fantasia. Reflete o contraste entre o mundo artístico do poeta e a mesquinhez da vida cortesã no eterno conflito entre o idealismo e realismo.
A Razões Inversas discute a subjetividade di estado confrontando o poeta e a política a serviço da instituição, através do mecenato estatal. Desemboca também na luta do homem pela afirmação dos ideais e respeito dos seus sentimentos.
Márcio Aurélio explora o peso minimalista atribuído a cada gesto para trazer ao público o desejo neurótico, a paranóia, a loucura do universo do protagonista. A pesquisa cênica, por exemplo, prioriza a musicalidade das falas.
Torquato Tasso – De Wolfgang Goethe. Direção: Márcio Aurélio. Com Cia. Razões Inversas (Carla Gialluca, João Carlos Andreazza, Luah Guimarães, Marcelo Lazzarato e Paulo Marcello). Estréia hoje, 21h30. De terça a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, tel. 278-9787). R$ 8,00.
PS: link para o trabalho da tradutora Isa Mara Lando: www.vocabulando.com
8.6.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 08 de junho de 1995. Caderno A – capa
Antunes Filho encena epopéia com espiritualidade e até certa licenciosidade spilberguiana; Melo faz interpretação tocante
VALMIR SANTOS
A montagem de “Gilgamesh” (pronuncia-se guilgâneshi) confirma mais uma vez o trabalho seminal do teatro de Antunes Filho. Ao traduzir em cena a poesia do povo sumério, numa das lendas mais antigas da humanidade, o diretor consegue se reportar ao ponto-zero da história com um pé devidamente fincado nos dias que correm.
É um convite à reflexão sobre tudo que se fez até aqui, neste fim de milênio. Quando Gilgamesh, o rei de Uruk, “o primeiro herói trágico da história”, parte em busca da imortalidade, do conhecimento, é exatamente o desespero humano diante da morte inexplorável. A impotência diante da determinação do divino.
Ao mesmo tempo, demonstra a sagacidade da existência humana. Vários foram os contratempos, os embates com as leis que regem a natureza (muitas vezes ignorando-as), e eis que o barco chegou até aqui. E prossegue.
Nas mãos de Antunes, porém, “Gilgamesh” transcende a superfície. Em que pese o olhar universal do texto, o diretor do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc coloca o homem-indivíduo em cena.
E se permite a espiritualidade inerente. O espetáculo começa e termina com uma evocação à dança rodopiante dos dervixes. O efeito é hipnotizante, como se viu ano passado, em São Paulo, na apresentação de um grupo da Turquia no Festival Internacional de Artes Cênicas. A dança ritual prepara o espectador para o que virá.
Aliás, tudo é celebração. As cenas sempre culminam em cartase para retomar, logo em seguida, a introspecção. Neste crescendo e desmanche, a narrativa pulsa. A adaptação de Antunes segue basicamente os passos da epopéia. As repetições do texto original, uma característica dos sumérios, não foram totalmente evitadas.
Como o fez com Joaquim (“Vereda da Salvação”) ou Macbeth (“Trono de Sangue”) as duas peças anteriores, Melo arrebata. Consegue dar uma dimensão trágica e ao mesmo tempo poética ao seu Gilgamesh. As porções “dois terços deus e um berço homem”, como reza o texto babilônico, aparecem na interpretação.
A visceralidade e a delicadeza co-habitam o personagem. A cena mais emocionante é aquela em que Gilgamesh depara com seu grande amigo Enkidu morto. A música cantochão, a pausa sob medida de Melo, nu, chorando abraçado ao corpo do companheiro de aventuras, pertence à galeria das imagens inesquecíveis do teatro.
O distante
Pelo menos mais dois atores do grupo Macunaíma se destacam. Luis Furlanetto, como Deus Anu e Utnapishitm, o Distante. Furlanetto é a veia cômica, leve, da montagem. Rosane Bonaparte, como Ishtar, a Deusa do Amor, confere originalidade, a começar pela voz.
Já a atuação de Bruno Costa como Enkidu, personagem fundamental da história, sucumbe à força de Melo. A animalidade de Enkidu não aparece. Para quem deveria ser um papel marcante.
Os demais atores do elenco oscilam entre certa falta de experiência de palco, ou de processo no CPT (caso de Edson Montenegro) e a segurança que respalda (Geraldo Mário, Raquel Anastásia e Sandra Babeto).
Cenografia e figurinos de J.C. Serroni e equipe trazem pinceladas de despojamento. O palco praticamente deserto (exceção de uma mesa à esquerda), projeta um fundo infinito. Neste espaço vazio, cruzam-se os personagens, alguns luxuosamente paramentados, por vezes emoldurados em caixas. A transição da imobilidade, do isolamento, à movimentação orgânica, corporal, é bem explorada.
A maior surpresa para quem assiste a “Gilgamesh” está nos efeitos especiais utilizados nas cenas do monstro Humbaba e do Touro Celestial. Há uma licenciosidade spilberguiana por parte de Antunes, com direito a faíscas, fumaças. Trata-se, porém, de algo patético, como que ironizando a tecnologia dos nossos tempos, contrastando com a antiguidade.
Com a montagem, Antunes enveredou por uma dramaturgia resultante do trabalho de ator. Isso é novo. Quem sabe, a próxima peça do CPT não nasça exatamente daí.
Gilgamesh – Adaptação e direção: Antunes Filho. Com grupo Macunaíma (Roberto Audio, Adriano Costa, Alfredo Penteado, Lianna Mateus etc). De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 (quinta, sexta e domingo) e R$ 20,00. 140 minutos. Até dia 27 de agosto.
“Nem Isto, Nem Aquilo” peca pelo clichê em cena
A Carpie’Dien Produções Artísticas costuma exceder no visual dos seus espetáculos. No infantil “O Encanto de Tiemim”, de Nelson Albissú, cenários e figurinos carregavam no tom. Em “Nem Isto, Nem Aquilo, Fique Tranquilo”, texto a quatro mãos de Albissú e Christiane Manara, não é diferente.
Parece que o mais importante é a forma, a estética. Já o conteúdo… A trama de “Nem Isto, Nem Aquilo…” mistura tudo, do grand guignol ao terrir, para tentar envolver. Mas é tudo previsível e os clichês surgem aqui e ali.
Uma pousada é palco de assassinatos misteriosos. Na base do “quem será a próxima vítima?”, proprietários e hóspedes (aí incluídos três assaltantes), todos são suspeitos.
Como se vê, um enredo pouco original. Espécie de “Irma Vap” menor (o quadro com o rosto de uma mulher também está lá), a peça não consegue ser ligeira. Os números musicais desanimados são o principal empecilho.
E depois tem as interpretações. Christiane Manara, que também dirige ao lado de Walter Stein, sustenta a peça em dois papéis: a velha Antonieta e a bela Juliete. Mostra alguma comicidade. Gentil de Oliveira (Salvatore) e Silvia Assumpção (Condessa) fazem rir, ainda que caricaturais. O restante do elenco é “apoio”.
Voltando ao texto de Albissú e Manara, é preconceituoso quando Juliete nutre uma possível paixão por outra mulher. “Não sou dessas”, “vagabunda” e “mau caminho” são algumas pixações contra a homossexualidade feminina. Para um espetáculo voltado para o público adolescente, de fato assusta.
Nem Isto, Nem Aquilo, Fique Tranquilo – De Nelson Albissú e Christiane Manara. Direção de Manara. Com a Carpie Dien Produções (Paulo Branco, Luis Alberto, Etel Verde, Andrea Duque, Luciana Ferraz, Victor Gimenes, Paulo Vilas Boas e outros). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Artur Azevedo (avenida Paes de Barros, 955, Mooca, tel. 292-8007). R$ 8,00. 100 minutos. Reservas para escolas: tel. 280-1094. Até agosto.
6.5.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Sábado, 06 de maio de 1995. Caderno A – capa
Herói picaresco de Antonio Nóbrega prossegue busca com carroça em “Segundas Histórias”, seqüência de “Brincante”
VALMIR SANTOS
Depois de dois anos de temporada no Rio de Janeiro, o ator Antonio Nóbrega está de volta ao Espaço Brincante, em São Paulo. Ele estreou ontem “Segundos Histórias”, mais um espetáculo protagonizado por Tonheta, o personagem que consolidou o teatro de Nóbrega no cenário nacional – prêmio Shell pelo conjunto de sua obra em 1994.
“Segundas Histórias” é a seqüência de “Brincante”, que por sua vez nasceu de “Figural”, dança-teatro apresentada por Nóbrega em 19990. Em “Figural”, Tonheta surgia na última esquete, onde já trazia o desenho do herói picaresco, mistura de clown e bufão.
Em “Brincante”, conquistou espaço com sua carroça, ruminando vida afora, conforme diálogos de Bráulio Tavares, Na peça, sua história é contada por Mestre João Sidurino e Rosalina de Jesus, personagem também interpretados por Nóbrega e a mulher Rosane Almeida.
“Segundas Histórias”, diálogos do mesmo Tavares, começa praticamente onde “Brincante” termina. Tonheta está desiludido pela morte de sua amada, uma Julieta. Na nova peça, eis que Deus aparece para lhe contar a boa nova: sua musa não morreu.
“Deus diz para Tonheta que ele está enganado quanto à morte de sua Julieta e, para reencontrá-la, deve prosseguir em sua demanda”, conta a atriz Rosane Almeida, 31 anos (há 13 casada com Nóbrega, dois filhos). E a “demanda” implica paramentos com a devida nordestinidade do ator, conjugando o clássico e o popular para transformá-los numa poética genuína do artista brasileiro.
Como no espetáculo anterior, “Segundas Histórias” também se utiliza da dança, do canto, da mímica, da música, do circo e até do ventroloquismo para produzir a magia do teatro com a alma brasileira. João Sidurino – jagunço extraído de “Grande Sertões: Veredas”, de Guimarães Rosa – e Rosalina de Jesus continuam contanto a história de Tonheta.
Para quem não viu “Brincante”, festeje: a montagem reestréia na próxima quinta-feira, revezando com “Segundas Histórias” (sexta, sábado e domingo).
A musicalidade é marcante no processo de Nóbrega. Atualmente, surge mais acentuada. Ano passado, Nóbrega chegou a apresentar o show-recital “Na Pancada do Ganzá”, no Memorial da América Latina. A recepção foi tão boa que ele decidiu trazê-lo à tona novamente. Em breve, o show também ocupará o Espaço Brincante, numa viagem pelos ritmos, toques e cantares do Brasil.
O Brincante, na Vila Madalena, teve palco, platéia, camarins e corredores reformados. Ganhou até um bar: o Drincante. A proposta de Nóbrega e Rosane é realizar um curso multidisciplinar, com duração de três meses, explorando linguagem gestual e corporal, voz, habilidade circense e música.
Filme
Outra novidade é o cinema. O diretor Cacá Diegues (“Veja Esta Canção” e atualmente rodando “Tieta”) assistiu a “Segundas Histórias” no Rio e ficou vislumbrado com Tonheta. Propôs a Nóbrega a filmagem. O roteiro deve ficar pronto no segundo semestre. A filmagem está prevista para o próximo ano.
Em entrevista a O Diário, Rosane de Almeida falou sobre o momento atual da carreira de Antonio Nóbrega, 43 anos. “Estamos atravessando uma fase bonita de ver”, afirma. “Não se trata de televisão, onde é mais fácil transformar Xuxa em rainha da noite pro dia; estamos falando de Tonheta, personagem que Nóbrega conseguiu criar e emocionar ecoando o povo brasileiro e suas raízes.”
Nóbrega iniciou nas artes aos 12 anos, tomando aula de violino com um professor catalão. Aos 18, tocou nas orquestras de Câmara da Paraíba e na Sinfônica de Recife. Apesar da bagagem clássica, jamais se distanciou do popular. Participava de festivais de música. Foi convidado por Ariano Suassuna, autor de “O Auto da Compadecida”, para integrar o Quinteto Armorial, movimento dos anos 70 que buscava a união da memória cultural de épocas diferentes.
Abarcando toda essa formação, aliada a uma disciplina rigorosa no processo de preparação de ator, dançarino e músico, Nóbrega consegue universalizar a cultura nordestina no palco. As influências passam por Rabelais e o mestre de bumba-meu-boi Antonio Pereira, seu instrutor nos tempos de amadurecimento em Recife. Antonio Nóbrega é um dos nomes que seguramente já garantiu inscrição na história das artes cênicas.
Segundas Histórias – Criação, direção e interpretação: Antonio Nóbrega. Diálogos: Bráulio Tavares. Com Nóbrega e Roseane Almeida. Sexta a sábado, 21h; domingo, 20h. 90 minutos. R$ 12,00 (sexta e domingo) e R$ 15,00 (sábado). Brincante – Diálogos: Tavares. Direção: Romero de Andrade Lima e Nóbrega. Com Nóbrega e Roseane. Toda quinta, 21h. R$ 12,00. Espaço Brincante (rua Purpurina, 418, Vila Madalena, tel. 816-0575). 170 pessoas O bar Drincante é opção de encontro para o público, antes e depois das apresentações.