5.7.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de julho de 1998. Caderno A – 4
Livro “Primeiro Ato” reúne textos publicados pelo ator e diretor do Oficina entre 58 -74
VALMIR SANTOS
São Paulo – José Celso Martinez Corrêa, ou simplesmente Zé Celso, é daqueles poucos que se entregam de corpo e alma ao teatro, sem concessões. Já lhe pespegaram adjetivos de toda sorte -subversivo, preguiçoso, pornográfico, para citar alguns. Mas Zé Celso é refratário a ataques, sobretudo àqueles investidos de ódio pequeno-burguês. Ele se esquivou desde picuinhas da classe à perseguição cerrada do regime militar. O que sobressai nos 40 anos do Oficina, hoje Cia. Uzyna Uzona, é a coerência ideológica e estética do ator e diretor e um dos fundadores do grupo.
Os primeiros 16 anos do Oficina são tema do livro “Primeiro Ato – Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974)”, um apanhado do que Zé Celso escreveu naquele período. Sob organização de Ana Helena Camargo de Staal, a obra apresenta uma base documental e histórica que ecoa o esforço e a persuasão do diretor do Oficina em registrar a sua época.
Claro, Zé Celso traduziu a sua época, antes de mais nada, no palco, na celebração dos espetáculos que constituem, ontem e hoje, sempre uma experiência particular a cada noite. Mas a maneira como ele deixa jorrar as palavras no papel tem muito a ver com sua conduta no ensaio ou na apresentação em sim. Seus textos, mesmo quando em tom de protesto, de conclamação, resultam em poesia visceral, esponjosa, desconexa.
Ainda que vá direto à ferida, como na carta aberta ao crítico Sábato Magaldi, por ocasião da montagem de “Gracias, Señor” (1972), ainda assim, Zé Celso não perde a graça. Perde a piada, mas não a alegoria.
Os textos, alguns semi-catataus, foram publicados em jornais ou revistas especializados em teatro; na imprensa comum ou, ainda, fruto de depoimentos a estudantes. Ou melhor, nem sempre foram efetivamente publicados. “SOS”, por exemplo, o manifesto lançado logo após a invasão do Teatro Oficina, pela polícia, em 20 de abril de 1974, foi recusado pelas redações de todo o Brasil (e surge aqui, na íntegra, numa das passagens mais contundentes).
Zé Celso discorre também sobre as diferentes escolas. Rodeado por atores de peso, como Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap, Célia Helena etc, o diretor assila o método do russo Stanislavsky, por exemplo, mas não o toma por inteiro e definitivo. Bom antropófago, ele prefere a mistura de técnicas a partir de uma realidade tupiniquim. O mesmo se dá em relação aos americanos do Living Theatre com o happening, com o qual a crítica chegou a rotular o trabalho do Oficina.
Ao final de “Primeiro Ato”, temos uma aula de resistência. Impressiona como Zé Celso e seus atores “vudizaram”, como ele gosta de dizer, todos os entraves que surgiram no caminho do Oficina em seus primeiros anos – desde truculências até o incêndio do teatro, passando pela pindaíba da trupe. O livro fundamenta a religião teatral que arrebanhou todos que, um dia, pisaram no terreno da rua Barão de Jaceguai, Bela Vista.
Primeiro Ato – Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974) – De José Celso Martinez Corrêa. Seleção, organização e notas: Ana Helena Camargo de Staal. Editora 34 (tel. 816-6777). 335 páginas. R$ 29,00.
21.6.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 21 de junho de 1998. Caderno A – 4
Texto de Solange Dias harmoniza com direção de Villavicenzio ao retratar drama
VALMIR SANTOS
São Paulo – Em busca do tempo perdido, eis a sina da personagem central de “A Casa do Sol”. Dora vislumbra a chegada da morte e promove uma retrospectiva da sua vida na qual a angústia, descobre tardiamente, foi regra.
O texto de Solange Dias, uma das dramaturgas emergentes na cena paulista, captura o sentimento de amargura que ocupa os últimos dias de Dora. Uma mulher como muitas, arrependida de ter desprezado as chances que teve para experimentar a felicidade em vida, por mais efêmera que fosse.
Dora casou-se por conveniência com um militar. Teve um filho, seguiu o modelo tradicional. Até o dia em que Lucas (Cássio Castelan), um fotógrafo, colega do marido, a resgata para o universo do desejo.
E essa dicotomia, entre paixão e convenção, que está no centro da peça. Dora chega a optar pelo rompimento, sim, mas seu destino é de tal forma emaranhado que não vinga.
Em certa medida, “A Casa do Sol” lembra a história do filme “As Pontes de Madson”, protagonizado por Clint Eastwood e Meryl Streep. No texto de Solange Dias, vemos a mulher que termina por anular-se, em função das aparências, e só percebe o quanto isso lhe custou na velhice.
A estrutura narrativa recorre ao flashback e interpõe a Dora jovem (Daniel Carmona) com a Dora velha (Ana Ferreira). Esta é quem, de fato, costura a peça.
É através da sua memória estilhaçada que se recompõe uma história de amor e dor, por mais pobre que seja a rima.
“Ah, como o tempo demora a passar! E, no entanto, aquele que já passou, passou tão depressa” – esta é a primeira fala de Dora. O deus Cronos, sem cicatrizes, mandará outros sinais ao longo da peça. “Estou com medo do tempo”, deduz ela, de novo, agora em pleno dia de casamento. “Se o tempo fosse um filme, eu voltava… Eu cortava!”, consola-se, sempre “com os olhos perdidos no tempo”, como observa o marido, Urbano (Atílio Beline Vaz).
Aglutina-se dramas paralelos. Vitória (Liliana Junqueira), a irmã de Dora, alimenta uma paixão obssessiva pelo sobrinho, Samuel (Emerson Meneses), castrada pelo pai dele, Urbano.
O rito de passagem de Samuel, quando se descobre um “homem” nos braços da tia, é dos pontos de maior tensão. Desencadeia uma série de acontecimentos que vão derrubando, aos poucos, as máscaras de cada um.
A morte que vem buscar Dora é representada pela figura da Menina (Carolina Bonfanti), um misto de anjo de guarda e Emília, a boneca do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”. A relação delas é de muita ternura, parcimônia. É ela, a Menina, quem serve de interlocutora para as memórias de Dora.
Não há como isolar as atuações em “A Casa do Sol”. Alna Ferreira e Daniela Carmona passeiam por suas Doras com segurança e envolvimento. Os papéis masculinos correspondem aos perfis de Urbano (Vaz na retidão militar), Samuel (Meneses na gana adolescente) e Lucas (Castelan na utopia pessoal em detrimento do coração alheio).
O diretor Hugo Villavicenzio, que vem de montagens calcadas na exigência física dos atores – fruto da influência do teatro latino-americano, ele que é peruano -, desta vez acentua a palavra e o tempo psicológico de cada personagem.
A movimentação dos atores se dá mais em função do belo casarão onde o espetáculo é encenado, no Parque da Água Branca. Villavicenzio, que também assina a cenografia, utiliza-se de projeção de vídeo para ilustrar as lembranças de Dora, em preto e branco, apoiando a narrativa.
A acústica deficiente do espaço não chega a afetar a compreensão do texto. Os figurinos e caracterizações de época (anos 30, 40) são de Vaz. O canto lírico de Lilian Junqueira e o piano de Roberto Anzai injetam um tanto de leveza na trajetória de personagens tão oprimidos, não raras vezes por eles mesmos.
No retrato sem retoques de uma família convencional, “A Casa do Sol” emana a densidade de um García Lorca. O texto e a direção casam-se perfeitamente, extraindo poesia das sombras da alma.
A Casa do Sol – De Solange Dias. Direção: Hugo Villavicenzio. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Casarão Sede do Fundo Social/Parque da Água Branca (avenida Francisco Matarazzo, 455, estacionamento gratuito – entrada pela rua Ministro Godoy). R$ 20,00 (nos dias 3 e 17 de julho e 14 de agosto o ingresso equivale a dois quilos de alimento não-perecível ou agasalho). Duração: 100 minutos. Até 16 de agosto.
Peça projeta solidariedade com poesia
São Paulo – A caixa de imagens cresceu. Não é mais a moldura quadrada, onde os pequenos bonecos são agigantados pela magia gestada pelos seus manipuladores. A Caixa de Imagens, que dá nome ao grupo, agora espalha seu encanto por todo o espaço cênico.
Em “Tão… Feliz”, os manipuladores/atores mostram seus rostos em pêlo, assim como as mãos. Estão efetivamente cada vez mais próximos dos bonecos, como a humanizá-los.
A interação se dá também pela voz. Quer através de canções (“Procuro o silêncio do barulho”, diz o verso de uma delas), quer através da pantomima ou de sons onomatopáicos, enfim, cria-se uma extensão vital para seres muito além da inanição, mesmo quando adormecidos num sótão.
Mas a imaginação continua regendo os espetáculos do Caixa de Imagens, como sempre o fez nesses quatro anos de atuação do grupo.
“Tão… Feliz” reflete maturidade e dá margem a novas pesquisas de linguagem no universo dos bonequeiros. A principal resolução vem a reboque do conteúdo dramático das cenas. Tudo começa com um velho pintor em sua angústia para exercitar o talento numa metrópole caótica.
Depois temos o personagem que resume a peça. Trata-se de um mendigo carismático, inofensivo, como muitos que perambulam pelas ruas da cidade. (Ele foi inspirado em mendigo da vida real que, certo dia, fez uma poesia para o grupo após uma apresentação de rua – e nunca mais deu o ar da graça).
Sua vidinha é preenchida pela leitura de jornal (alheios, como o inferno, são os outros); mordisca um pão que, a duras penas, tenta reparti-lo; e sofre com o corte em seu pé, depois socorrido com mercúrio cromo por um voluntário da platéia.
Aliás, a cada noite o Caixa de Imagens convida um ator para contracenar com os bonecos. Duas semanas atrás, foi a vez de Hugo Possolo, um dos palhaços convictos dos Parlapatões, Patipes & Paspalhões.
E tudo se passa no âmbito da pracinha, do banquinho. À margem da vida – o velhinho em sua solidão artística, o mendigo em sua carência material -, ambos celebram o gesto de solidariedade que faz a diferença.
Por trás de tanta amargura (a buzina, o choro), resta a poesia, o olhar acalentador de perceber-se no próximo. “Tão… Feliz” é um canto de união. Bebe da nostalgia de um espaço mútuo de convivência, de respeito. E, de quebra, liberta o passarinho do realejo na ânsia de que ele traga alvíssaras – hoje e sempre, enquanto há tempo.
Carlos Gaúcho, Mônica Simões, Evelyn Cristina e Fábio Coutinho encontraram o tom certo. Os bonequeiros do Caixa de Imagens são atores na acepção graúda da palavra. Recriam a mentira dos personagens para construir a verdade que seduz e toca, com equilíbrio, o coração de adultos e crianças.
Tão… Feliz – Roteiro e direção: grupo Caixa de Imagens. Domingo, 17h e 19h. Teatro Cultura Inglesa/Vila Mariana (rua Madre Cabrini, 413, tel. 549-1722). R$ 10,00. Duração: 45 minutos. Até 28 de junho.
14.6.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 14 de junho de 1998. Caderno A – 4
Companhia do Latão atualiza peça de Brecht com talento e técnica de jovens atores
VALMIR SANTOS
São Paulo – Antes do espetáculo, o público aglomera-se no saguão do Teatro João Caetano. A procissão dos “soldados de Deus” surge no meio da multidão. Depois de breve discurso, apresenta-se Joana, a líder carismática. Os “soldados” então convidam os espectadores a entrar pela lateral externa do teatro, via porta e corredor estreitos. O aperto, ombro a ombro, transmite sensação de que a massa é conduzida para um abatedouro, feito gado. A propósito, é assim que começa “Santa Joana do Matadouro”, a nova montagem da Companhia do Latão.
Escrita há quase 70 anos, a peça de Bertolt Brecht (1898-1956) guarda uma atualidade impressionante com os tempos que correm. O autor, cujo centenário de nascimento é lembrado este ano, tomou alguns clássicos da literatura universal – como Goethe, Hõlderlin e Schiller – para construir uma paródia do ideal humanista à época, ainda sob efeito do crash de Nova Iorque em 1929 – aliás, quando a peça começou a ser escrita.
Aqui, Joana está a serviço do Exército da Salvação, entidade de cunho evangélico. Ela prega a não-violência no embate entre operários famintos e patrões que dominam a indústria da carne enlatada na Chicago forrada de gângsters.
O discurso gandhiano de Joana é levado à exaustão. No afã de “mostrar a eles que eles não são maus”, referindo-se aos patrões, ela chega ao ponto de trair seus companheiros boina-pretas em uma greve. Mas depois é“canonizada” pela opção pelos pobres.
Pedro Paulo Bocarra, o rei da carne industrializada – ele não dá um passo sem o aval dos “amigos de Nova Iorque” – é o antagonista da história. Mesmo preferindo o cheiro de cavalo ao do “populacho”, vê seu dique capitalista rompido pela “santa” Joana, mulher que lhe provoca certo encanto.
No duplo jogo entre a contemplação da porta-voz dos operários e a manipulação desta em favor do próprio bolso – não cede uma nesga sem que lhe seja revertido em dobro –, Bocarra é a perfeita tradução daquela meia dúzia de cérebros que operam a máquina capitalista com frieza ímpar.
A atualização de “Santa Joana dos Matadouros” é certamente um dos atributos que levam o pesquisador e tradutor Roberto Schwarz a classificá-la como uma das peças mais importantes do século. Alude, por exemplo, no Brasil, aos recentes saques de alimentos pela população carente e aos conflitos pela terra.
Na montagem da Companhia do Latão, a história ganha um tratamento farsesco, como o dramaturgo alemão sugere. Sobretudo nas interpretações, sempre a recriar o conceito de distanciamento tão propagado pelo Brecht diretor.
Gustavo Bayer capta muito bem o perfil apatetado de Bocarra. O sentimento de araque, a resignação dissimulada, enfim, um personagem erguido no limite entre a comédia desbragada e o nonsense. O vilão, por assim dizer, é convertido em bufão. A empatia está em ser ridículo no pódio do poder.
A vocação de mártir de Joana, edulcorada pela condição de mulher, operária e pobre, fica patente na voz clerical da atriz Débora Lobo e na postura corporal um tanto alquebrada, como se carregasse um fardo, uma cruz, ao longo do espetáculo. Cega em sua crença, a via-crúcis da protagonista lembra a de Jó em sua perseverança.
O elenco, ressalta-se, comete uma atuação uniforme. O vigor, a técnica e o talento são inerentes em cada um dos jovens atores da Latão.
A direção conjunta de Sérgio Carvalho e Márcio Marciano empresta uma dinâmica de espaço que transcende ao palco italiano. “Santa Joana do Matadouro” inventa o seu espaço-total, físico e imaginário. As cenas itinerantes se passam no saguão, do lado de fora, ao ar livre (iluminadas pelas chamas do fogo), no palco propriamente e na platéia. A inversão de papéis culmina com a entrada do público pela cochia, já captando, in loco, a tensão e o sarcasmo que pontuam a encenação.
Márcio Medina reflete atemporalidade na cenografia e nos figurinos. O tom predominantemente cinza das roupas e as correntes suspensas retratam o processo de desumanização sublimado no texto. A iluminação de Wagner Pinto e a música da dupla Walter Garcia e Lincoln Antônio complementam a densidade que se quer atingir por trás de cada esgar, de cada riso.
Talvez seja esta uma boa definição para a Companhia do Latão. Como nos espetáculos anteriores, “Ensaio para Danton” e “Ensaio sobre o Latão”, o entretenimento não vem mastigado. A erudição cede para um cadinho de coloquialismo, deixando fluir o prazer da representação. Os atores estão à vontade e não perdem o vigor do início ao fim. Disciplina e maturidade raras, diga-se, para criticar a “vida de gado” com veemência.
Santa Joana dos Matadouros – De Bertolt Brecht. Direção: Sérgio Carvalho e Márcio Marciano. Com a Companhia do Latão (Georgette Fadel, Edgar Castro, Maria Tendlau, Ney Piacentini, Otávio Martins, Vicente Latorre e outros). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, tel. 573-3774). R$ 10,00. Até 26 de junho.
Grupo lança segunda edição da “Vintém”
São Paulo – A coerência estética e ideológica em assumir a pesquisa teatral como meio, e não fim, garantiram a Sérgio Carvalho e à Companhia do Latão o respeito do público e da crítica, já a caminho do seu segundo ano.
Desde maio de 97 o grupo ocupa o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, na região central de São Paulo. Dentro do projeto Pesquisa em Teatro Dialético, lançou a revista “Vintém”, publicação que veicula as principais questões que norteam o trabalho do grupo.
O número dois de “Vintém” será lançado amanhã, no Eugênio Kusnet. Um dos destaques desta edição é o texto de Roberto Schwarz sobre “Santa Joana do Matadouro”, peça traduzida pelo próprio.
Também na próxima sexta-feira, dia 19, começa o projeto Latão Musical, que vai reunir novos nomes da MPB, como o grupo Curupira, Bando da Fuzarca, Renato Martins, Paulo Padilha e Sandra Ximenez – esta também dará oficina de expressão vocal para atores.
Vintém – Lançamento do segundo número da revista. Amanhã, às 20h. Lata Musical – Show nos finais de semana. Começa na sexta-feira, dia 19, com o grupo Curupira, às 19h. R$ 10,00. Oficina de voz – Com Sandra Ximenez. Quintas (15h às 17h) e sábados (11h às 13h), a partir do dia 25. Teatro Eugênio Kusnet (rua Teodoro Baima, 94, tel. 256-9463.
“Luzes da Boemia” expõe “cicatrizes”
São Paulo – As palavras do dramaturgo e romancista galego Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) penetram nas entranhas. Em seus textos, os personagens raramente passam incólume à espiral em que mergulham. São seres que transitam entre o padecimento sem fim na Terra e a platitude dos céus; ora desesperançosos, ora militando nas fileiras de um Deus presumível.
A curta temporada de “Divinas Palavras” em abril, encenada pela alemã Nehle Frank, com um grupo de atores da Bahia, já introduziu o público paulista no universo onírico e ao mesmo tempo realista de Valle-Inclán. Quem dá as cartas agora é o diretor William Pereira. Ele montou “Luzes da Boemia”, outra do dramaturgo galego, tão contundente quanto. A história do poeta cego e marginal, à mercê da condição miserável em que vive, e sem abdicar da índole artística, resulta em libelo à dignidade de ser humano.
Max Estrella (Heitor Goldflus) passa a limpo a sua história naquele que se converterá em último dia de vida. Abandona a fome do lar, compartilhada por mulher e filha, e perambula por uma Madri “absurda, brilhante e faminta”. Quem o guia pelos bares e vielas é o amigo – mas nem tanto – Don Latino de Hispalis (Roberto Leite), interlocutor dileto no testamento oral.
O legado é de muita dor. “Os olhos são uns iludidos embusteiros”, filosofa o cego Max Estrella, se autoproclamando um “mero Tirésias”. “Abaixo a literatura do êxtase”, protesta o poeta, desdenhando dos “moleques modernistas”. “Onde eu vivo é sempre um palácio”, delira o homem miserável. “Eu sou um espectro do passado”, consola-se, por fim.
Mas uma peça que cita Nietzsche e Calderón de La Barca não se convalesce somente de niilismo; sinaliza também com esperança. Afinal, como escreve Valle-Inclán, as coisas não são como a gente as vê, mas como as recordamos. E o que sobra de “Luzes da Boemia”, ao final, é a convicção de que o exercício de uma ética, por mínimo que seja, foi e continua sendo a base para tudo na vida.
Os personagens deformados fisicamente, a sabujice do amigo traidor, a excrescência do jornalista travesso (atuação hilária de Plínio Soares), os intelectuais infantilóides, a secretária estúpida, o ministro canalha, o povo esfarrapado que passa fome na rua, enfim, o painel pintado pelo autor é demasiadamente humano.
O operário Mateus (Olair Coan) que Max Estrella encontra na prisão, recluso pela brutalidade militar, é o personagem de resistência. E pela dignidade deste que o poeta chora de impotência e raiva. O abraço dos dois na cela, diante da morte anunciada, é tocante.
Serve como contraponto ao abraço frouxo e distante que o próprio Estrella experimenta quando encontra um amigo de outrora, hoje enfastelado na cadeira de ministro. Vinte anos depois, não sobrou nada dos ideais que trocavam no passado.
Há uma dureza física e, ao mesmo tempo, uma fragilidade iminente na interpretação de Heitor Goldflus. Seu Max Estrella não é arrogante nem piedoso. A couraça, no entanto, vai-se desmontando aos poucos. A visão retomada à beira da morte, ele tremendo, sugere uma brecha para o porvir. Uma atuação circunscrita ao universo interior. Mas não necessariamente intimista – há uma reserva no personagem que Goldflus faz questão de manter.
Não se trata de espetáculo fácil. Como o fez em “Sinfonia de Uma Noite Inquieta – Ou o Livro do Desassossego”, Pereira soube cavocar a alma esmerilhando a palavra, o gesto e a plasticidade cênica.
A dramaturgia de Silvana Garcia, os figurinos de Leda Senise, a iluminação de Guilherme Bonfanti e a cenografia assinada pelo próprio diretor, enfatizando o vazio no espaço, resultam numa montagem bem cuidada. O trabalho já valeria por reluzir a poesia de Valle-Inclán neste final de milênio, a lembrar as cicatrizes eternamente abertas, o lado escuro de nossas vidas. Mas “Luzes da Boemia” vale muito mais porque é teatro maior, com poder brutal para emocionar.
Luzes da Boemia – De Ramón del Valle-Inclán. Direção e tradução: William Pereira. Com Angela Barros, Carlito Salvatore, Clarissa Drentchinsky, Cristina Rocha, Gustavo Engracia, Ivan de Almeida, Newton Milanez, Pedro Paulo Eva, Telma Vieira e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Arthur Azevedo (rua Paes de Barros, 955, Moóca, tel. 292-8007). Duração: 120 minutos. R$ 10,00. Estacionamento gratuito. Até 28 de junho.
Reestréia a montagem “Sinfonia”
São Paulo – Um dos mais belos espetáculos da temporada passada reestreou no Teatro Faap, na Capital, em horário alternativo.
“Sinfonia de Uma Noite Inquieta – Ou o Livro do Desassossego”, que o diretor William Pereira – o mesmo de “Luzes da Boemia” – adaptou da obra de Fernando Pessoa, constrói uma espécie de poema cênico, onde os quatro intérpretes (Adriana Mendonça, Patrícia Zuppi, César Guirao e Frederico Foroni) revezam-se na pele do escritor português.
O espetáculo reflete sobre o negativismo na obra de Pessoa.
A adaptação foi fundo na evanescência do “Livro do Desassossego”, o diário que só veio a público em 1982, 47 anos depois da morte do poeta.
O Fernando Pessoa que está no palco, quadruplicado, é bastante representativo do homem que mutiplicou-se porque sua literatura era maior que e1e.
Sinfonia de uma Noite Inquieta – De Fernando Pessoa. Adaptação e direção: William Pereira. Terça e quarta, 21h. Teatro FAAP (rua Alagoas, 903, Pacaembu tel. 3662-1992, estacionamento gratuito). Duração: 80 minutos. R$ 20,00. Contato para escolas: tel. 258-6740. Até 24 de junho.
31.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 31 de maio de 1998. Caderno A – 4
“Boemia e Política” narra trajetória do ator, escritor, cantor e compositor
VALMIR SANTOS
São Paulo – Talvez seja um tanto difícil, para as novas gerações, imaginar o manancial memorialístíco que está por trás daquele senhor de cabelos grisalhos, aparência frágil, em plena forma nas novelas da Globo. Mário Lago comporta o epíteto de artista total. Aos 87 anos, o co-autor do samba “Ai, Que Saudades da Amélia” ganha uma biografia que, pelo intertítulo – “Boemia e Política” – dá conta da transcendência poética e humana com a qual o ator, escritor, cantor e compositor vem pautando a vida.
A historiadora Mônica Velloso fez um trabalho de fôlego para reconstituir a trajetória do artista. Além de um total de 15 horas de entrevistas, nas quais Lago falou à vontade, deixando fluir as reminiscências, a autora escarafunchou o Centro de Documentação da Funarte, o Museu da Imagem e do Som (MIS), a TV Globo, o Arquivo da Rádio Nacional e a Biblioteca Nacional. Sem contar a colaboração fundamental dos filhos. Foram pinçados episódios e fotos inéditas que vêm a público.
Ainda garotinho, Lago já tomava aulas de piano com Lúcia Villa-Lobos, mulher do célebre compositor. Ainda que um tanto arredio à música clássica naquela época, ele, como bom carioca da gema, já tendia para enveredar pelas vielas do morro da Lapa. O jovem consumiu ali a sua tendência para a boemia. Naqueles românticos anos 20 (finalzinho) e 30, despontou como um bamba.Meteu-se no meio da plebe, por assim dizer. Frequentou ruas, cafés, cabarés. Bebeu da fonte popular, contrariando os pais que batiam pé sobre as errâncias daquele moço.
Em 1942, uma parceria com Ataulfo Alves rendeu “Ai, Que Saudades da Amélia”. No início, a música não encontrava intérpretes. Moreira da Silva chegou a desdenhar: pre viu que se tratava mais de uma marcha fúnebre do que carnavalesca. Ledo Engano. Ataulfo gravou ele mesmo, acompanhado de Jacó do Bandolim e grupo Academia do Samba. “Amélia” explodiu e tornou-se um dos marcos da nossa música popular. Ao ponto do “Aurélio” citá-la como verbete: “Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”.
Só mais de uma década depois Lago revelou que a Amélia da música existia de verdade. Era a empregada de Aracy de Almeida e seu irmão, Almeidinha. “Com essa explicação, desiludi milhares de Amélias que se julgavam homenageadas. Mas, em compensação, ganhei tranquilidade doméstica. Minha esposa até hoje era cismada com essa tal de Amélia…”, conta.
O ingresso na rádio aconteceu pelas mãos de Oduvaldo Vianna, que gostou da voz de Lago em um espetáculo teatral e o convidou para trabalhar na Pan Americana. O artista não só assimilou os macetes do novo veículo, chegando a comandar programas de auditório em sua fase de ouro, como teve em Vianna, dos mais importantes dramaturgos do país à época, uma escola e tanto para o teatro. Já vinha de escrever revistas desde 1993, mas dali em diante passou a esmerar-se nos diálogos.
Depois de 17 anos de rádio – a última em que deu expediente foi na Nacional -, Mário Lago mergulha de vez na televisão. Desde 1954 fazia uma coisa aqui, outra ali. Mas o lance decisivo foi sua entrada na Globo, em 1966, na novela “Sheik de Agadir”. Um dos seus melhores momentos, lembra, foi em “O Casarão” (1976), na qual interpretava Atílio. Foram, ao todo, cerca de 50 novelas – atualmente ele pode ser visto na minissérie “Hilda Furacão”. O personagem? Olavo, claro, um boêmio enamorado da protagonista.
Mas Lago nunca foi muito condescendente com o veículo-mor das massas. “A TV é fascista. Ela não dá o direito de sonhar, de construir os seus sonhos. A TV apresenta um galã e diz: o galã é esse! Você não tem o direito de imaginar que seja outro. O jardim não é outro, senão este. É uma postura fascista da TV, ela tira a ilusão do sonho, da criatividade e da imaginação”, declarou em 1978, à revista “Status”. Como se vê, nada mudou.
Lago sempre se distinguiu do ramerrão de artistas globais que parecem viver em outro país. Jamais abandonou a militância política; fez jus à coerência ideológica. Foi ligado ao Partido Comunista do Brasil (PCB) durante 50 anos. Experimentou sua primeira prisão em 1932. Para se ter uma idéia do envolvimento, um comício serviu de palco para o primeiro encontro com Zeli, a mulher com quem viria a se casar depois, mãe dos seus cinco filhos.
O período mais brabo se deu a partir do golpe de 64, quando foi detido várias vezes, perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Lago era do tipo que botava ordem, sim, nas quatro paredes do cárcere: delegava tarefas, pedia para os amigos ministrarem cursos de acordo com a especialidade de cada um. Enfim, transformava o xadrez em local de entretenimento social e humano, por mais duro que fosse. Nos anos 80 e 90, Lago participou de campanhas do Partido dos Trabalhadores (PT), demonstrando sua simpatia com a candidatura de Lula.
Cinema também foi praia frequentada por Lago. Atuou em filmes como “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e “São Bernardo” (1973), de Leon Hirszman.
Enfim, vai-se falar de Mário Lago em tudo quanto é manifestação cênica, radiofônica ou visual. Ele continua rodando o País com seu show intimista, onde relata “causos” e canta suas composições diletas.
Em recente entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, declarou que o melhor conselho para os jovens é viver tudo que tem para ser vivido. Pense menos e vá à luta, realize- foi mais ou menos a mensagem com a qual Lago fechou o programa.
Lendo “Boemia e Política”, compreende-se a extensão da sua filosofia de boêmio, ideólogo e artista. Lago aprendeu cedo que não vale a pena dissociar o prazer do curso da vida já um tanto dolorida, da concepção ao crepúsculo.
Mônica lança mão da linguagem acadêmica e deixa vir à tona o coloquial, inserindo falas do biografado a todo instante, como a trazê-lo para o primeiro plano no “diálogo” com o leitor. A pesquisa é detalhada e está longe do enfado. Ressalta-se o “álbum” de fotografias, dividido em fases. Temos, por fim,. um homem que vive há 87 anos e não perdeu o sorriso maroto. (Valmir Santos)
Mário Lago – Boemia e Política – De Mônica Velloso. Editora Fundação Getúlio Vargas (avenida 9 de julho, 2.029, tel. 281-7875). 402 páginas. R$ 29,00.
24.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 24 de maio de 1998. Caderno A – 4
Primeira montagem do texto de Tchecov prima por direção equilibrada e boas atuações
VALMIR SANTOS
São Paulo – Mesquinhez e idiossincrasias à parte, o tédio desenha a sombra dos personagens de “Ivanov”. O sentimento é citado pelo menos sete vezes no espetáculo traduzido e dirigido por. Eduardo Tolentino de Araújo, com o grupo Tapa.
Um século atrás, o autor russo Anton Tchecov já diagnosticava o enfado subliminar no universo dos negócios e da família. É paradoxal que, às portas do terceiro milênio, o poder segue espelhando a falência humana. Constata-se: não há avanço
tecnológico para o tédio.
Ivanov é um ser completamente ilhado em si. “Viver para mim é uma tortura”, resume. O fazendeiro vai à bancarrota e, a reboque, questiona a relação com a mulher Anna, que é judia. Casou-se mais em função de um dote de família – que nunca veio – do que por amor. Não admite, mas é o que Anna lhe joga na cara.
Em plena crise, o “homem bom, mas tão infeliz” experimenta uma nesga de vida. A jovem e bela Sacha o seduz. Num primeiro momento, ele resiste. Não crê que o destino lhe conceba tal alegria à beira do abismo. Sacha, no entanto, o envolve de tal maneira que catalisa sua paixão.
Foi a gota d’água para Anna. Ela se convalesce na cama e como que culpa Ivanov pela iminência da morte. Culpa capitalizada pelo médico Lvov, racional até a medula: “Você está matando sua mulher”, sentencia. Foi a pá de cal para m Ivanov prostrado com as “cruzes” sobre os ombros.
O drama de Tchecov é tido como uma das peças menores, se comparada a “O Jardim das Cerejeiras”, “As Três Irmãs”. A montagem do Tapa é a primeira do texto de que se tem notícia no Brasil.
Só úm grupo com a estabilidade do Tapa poderia trazer “Ivanov” à cena com rigor e inventividade. Tolentino passou cerca de sete anos trabalhando na tradução, entre um projeto e outro. Esmerou-se tanto na palavra quanto na concepção e direção do espetáculo.
É preciosa a sua ênfase equilibrada na comicidade que perpassa a história. O elenco, de entrega e disciplina incomuns, é o grande responsável. Genézio de Barros (Pavel Lebedev), em especial, tem o público nas mãos com seu beberrão patético, no qual despreza o tipo fácil, de gestos trêmulos ou andar balança-mas-não-cai. Barros encontra o eixo até quando seu personagem surge como interlocutor do melancólico Ivanov.
Outros coadjuvantes emprestam brilho e leveza ao drama. O pão-durismo de Zinaida (Elizabeth Gasper), o riso hebeniano de Marfa (Cristina Cascioli), as fanfarronices de Chabelski (Milton Andrade) Kossykh, (Chico Martins), Borkine (Riba Carlovitch), Gavrila (Candido Lima) e Avdotia (Sonia Oiticica), enfim, compõem um paralelo bem estruturado à densidade do drama.
Coube a Zécarlos de Andrade (Ivanov), Denise Weinberg (Anna) e Brial Penido (Lvov), contrabalanceados pela vivacidade de Carla Carvalho (Sacha), a cumplicidade com a tensão do texto. São papéis estratégicos e bem defendidos.
Andrade passa praticamente todo o espetáculo com o corpo arqueado, olhar distante, transmitindo a alma perturbada de Ivanov. Suas reações são contidas, duras, quer diante da exuberante Sacha, quer na hora em que decide pôr fim à vida.
Denise expõe uma Anna insegura e não menos perdida do que Ivanov. São aparições curtas, mas repletas de emoção. A atriz espelha no rosto a dor da perda do marido que mentiu ao jurar amor e da vida que se esvai por causa da doença.
Penido faz jus à figura mais energética da peça. O médico Lvov é de uma correção política atroz. Seu discurso asséptico privilegia a razão e o próprio umbigo. Em nome da ordem e da moral, atropela quem lhe cruza o caminho. A postura corporal de Penido, ao contrário de Andrade, é ereta, as custas do poder do conhecimento.
Clara simboliza com sua Sacha o único feixe de luz, de esperança. Não é à toa que passeia pelo palco com seu vestido branco, em boa parte do espetáculo. A atriz dá conta da delicadeza e determinação da personagem.
O diretor Tolentino, como se disse, não prima apenas pelo cuidado com o verbo. “Ivanov” tem um acabamento visual que harmoniza perfeitamente com o texto. A cena da festa, em que cerca de 13 personagens estão em semicírculos para a caixinha de presente que solta fogos de artifício, traduz a “limpeza” do cenário (Renato Scripilliti) dos figurinos (lola Tolentino), da iluminação (Guilherme Bonfanti) e da própria direção dos atores. É um instante mágico, em suma.
A maturidade do Tapa não vem de agora. Há cerca de dois anos, por exemplo, sua versão para “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, fez páreo com a histórica montagem de Ziembinski (43). “Ivanov”, enfim, é um exercício de elegância da arte teatra1, em que pese o tédio dos dias que correm.
Ivanov – De Anton Tchecov. Tradução e direção: Eduardo Tolentino de Araújo. Com Grupo Tapa (André Garolli, Inês de Carvalho, Paulo Marcos, Sandra Corveloni, Tony Giusti e outros). Quinta a sábado, 21h, domingo, 18h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 259-0086). Estacionamento com desconto em frente ao teatro. Duração: 135 minutos.
“Tio Vânia” também execra “vida besta”
São Paulo – Outra boa montagem de Tchecov está em cartaz na Capital. Estrelada por Renato Borghi, “Tio Vânia” (1897) foi escrita um ano antes de “Ivanov” e também apresenta o enfastio pela vida que, aliás, caracteriza muitos personagens do dramaturgo russo (Treplev e Nina, em “A Gaivota”, não são diferentes). |
O Tio Vânia interpretado por Borghi é quem se vitimiza mais pela “vida murcha” em que está metido. “Pelo jeito, tédio e preguiça pegam”, afirma a certa altura, em um dos muitos lampejos de sarcasmo e ironia que pontuam o texto.
Há também o médico, Dr. Astrov (Luciano Chirolli), outra figura recorrente nas obras de Tchecov – ele que, em vida, também abraçou a medicina. E aqui, o conteúdo autobiográfico, ao que parece, é acentuado.
Espécie de alter-ego do escritor, Astrov reverbera a consciência humanista, verdadeiro poço de indignação que é (há um século, já saía em defesa da ecologia).
Cansado da “vidinha” que leva, reclamando do tempo “besta” que perdeu e decepcionado com a “decadência da civilização”, o médico é a melhor tradução do mal-estar do século passado, que se repete agora nesse fim de milênio.
Mas, em “Tio Vânia”, os personagens não passam pela vida somente “em férias”. As perturbações da alma e do espírito também emprestam seu quinhão de água ao moinho que move corações e mentes.
Na órbita de Tio Vânia, flutuam seu objeto do desejo, Yelena (Marina Lima), e sua âncora para a existência, a sobrinha Sônia (Leona Cavalli). Durante anos ele cuidou dos negócios do cunhado Serebriakov (Wolney de Assis), professor universitário aposentado e decadente, que foi casado com sua irmã, falecida, e hoje está nos braços da bela Yelena.
Farto de tanta submissão, Tio Vânia se rebela contra o cunhado e passa sua vida a limpo. Ao ponto da loucura, provoca um fuzuê no solar de Serebriakov, com direito a disparo de espingarda – lamenta não ter acertado nenhum tiro no alvo preterido, o cunhado. É a deixa pastelão, por assim dizer, para um drama de vasta matéria-prima.
A montagem, ao contrário de recente versão para o cinema, acerta em não investir tanto nesta sequência. Prefere distribuir o humor corrosivo nos devaneios de Tio Vânia e do amigo e fazendeiro decadente Tielhêguim (Abrahão Farc), ambos emanando forte carisma.
Borghi, com seus 40 anos de palco, e Farc são presenças marcantes. Ainda que o primeiro repise a matriz vocal e gestual de papéis anteriores (seu Tio Vânia, notadamente, lembra muito o recente e não menos delirante Galileu),o que sobressai é a voz e o corpo da experiência de quem parece brincar o tempo todo no espetáculo com as noções de tempo e espaço.
O médico de Chirolli não fica atrás. O ator dá consistência à utopia de Astrov, mesmo quando esta desmorona diante dos olhos do espectador. Há um equilíbrio entre distanciamento e aproximação. Quando desdenha o amor de Sônia, ou quando reaviva a chama amorosa diante de Yelena, são momentos distintos, mas ligados por um fio do homem que enxerga além mas se encontra em busca de um sentido para a vida.
Mariana Lima (Yelena) e Leona Cavalli (Sônia) complementam seus extremos de mulher com força e delicadeza. São personagens que anulam os conceitos exteriores de beleza para unirem-se na essência do que são; a cumplicidade feminina é um alento no reino tchecoviano da desesperança. As atrizes perscrutam a dor de amar e de viver com magnetismo.
Vindo de atuações e, recentemente, experimentando a direção no grupo Teatro Promíscuo, o jovem mogiano Élcio Nogueira vai, aos poucos, dominando o ofício. Aqui, ele dispensa o formol e opta pela aproximação do público.
Peca, porém, ao forçar a “carnavalização”, prejudicando o ritmo em certos momentos. “Tio Vânia” já possui seu conteúdo anárquico – aliás, paradoxalmente, bem explorado no espetáculo.
Tio Vânia – De Anton Tchecov. Direção: Élcio Nogueira. Com TeatroPromíscuo (Geisa Gama), Jolanda Gentilezza e outros). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brasileiro de Cómedia – Sala TBC (rua major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 3106-4408). R$ 12,00. Duração: 120 minutos. Até 2 de agosto.
Tchecov é montado no Rio e SP
São Paulo – Em tese, não há motivos para efemérides. Anton Tchecov nasceu em 1904. Mas vive-se um “boom” de montagem das peças do dramaturgo russo. “Ivanov”, com o grupo Tapa, e “Tio Vânia”, estrelada por Borghi, já estão em cartaz. Mas vem mais por aí, na temporada carioca.
“Jardim das Cerejeiras”, dirigida por Cláudio Mamberti, deve estrear no Rio ainda este mês. Em outubro, é a vez de dupla versão de “As Três em Irmãs”, com respectivas direções de Enrique Díaz e Bia Lessa.
Se se quiser encontrar uma razão para a evocação de Tchecov, pode-se lembrar que foi em 1898 que o Teatro Artístico de Moscou, o lendário TAM, então dirigido por Constantin Stanislavski, levou à cena “A Gaivota” (1896) pela primeira vez.
17.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – O diretor Oswaldo Gabrieli e seu grupo, o XPTO, já inscreveram o nome na história do teatro brasileiro com a marca da inventividade. Seus espetáculos são hipercoloridos com bonecos em formatos mais variados e estranhos, num exercício geométrico que tem mais a ver com o espírito lúdico do que propriamente com teorias.
“Buster, o Enigma do Minotauro”, um dos trabalhos mais premiados de 97, segue em cartaz no Teatro Popular do Sesi na Capital, com entrada franca. Até final de junho, dá tempo de assistir ao infanto-juvenil que prima pela beleza do cenário, dos figurinos e pelas atuações com ênfase na linguagem do cinema mudo.
O XPTO começa o espetáculo projetando numa tela trechos filmes do comediante americano Buster Keaton (1895-1966). As imagens, e branco, preparam o espírito do espectador – adulto ou mirim – para o que virá a seguir.
Trata-se da história do jovem Buster (Wanderley Piras), que se mete em várias confusões graças a um Minotauro, encarnado por dois atores (Sidnei Caria e Guto Togniazzolo), que vive atravancando seu caminho.
Uma das passagens mais engraçadas é quando o pobre Buster é encarcerado. No presídio, ele acaba driblando os presos antigos, que se metem a espertos e tentam aproveitar-se do novo hóspede da cela.
A montagem foi muito feliz em dividir o personagem em três. Além de Piras, Buster ganha dois clones interpretados por Angelo Madureira e Ednaldo Eiras. O trio responde por momentos hilários, em que a própria Anabela não sabe distinguir quem é seu namorado.
Como não poderia deixar de ser, Gabrieli presta uma homenagem também a Charles Chaplin, que abrilhanta ainda mais o universo cômico que “Buster” traduz no palco, recorrendo à técnica do clown.
São, ao todo, 12 atores em cena – desde jovens empenhados a nomes tarimbados, como Cleber Montanheiro e Dadá Cyrino, vindos de espetáculos musicais. Aliás, aqui o gênero é bastante explorado, com direito a coreografias, ainda que breves.
Predominam, no entanto, as aventuras de Buster, em formato que se aproxima bastante dos filmes em preto e branco – tudo – muito rápido, vapt-vupt, como num videoclipe -, apesar do colorido dos figurinos e do cenário, basicamente formado por painéis
móveis.
Em seus quase 15 anos de formação, o XPTO dá mais um exemplo de como a multiplicidade de linguagens (teatro, dança, música, bonecos e animação de objetos) pode ser concebida sem muito virtuosismo técnico. Em “Buster”, tudo flui com o rigor e a magia das caixas de soldados de chumbo.
Buster, O Enigma do Minotauro – Concepção e direção: Oswaldo Gabrieli. Com Grupo XPTO (Gerson Esteves, Helzer Abreu, Márcio Branco, Roberto Camargo etc). Recomendado para crianças a partir de 8 anos. Sábado e domingo, 11h e 14h. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, tel. 284-9787). Grátis (ingressos distribuídos com uma hora de antecedência). Espetáculos para escolas: tel. 284-4473. Duração: 75 minutos. Até 28 de junho.
17.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998. Caderno A – 4
Dirigido por Rojas, Pombas Urbanas cristaliza processo de grupo em sua terceira peça
VALMIR SANTOS
São Paulo – “Ventre de Lona”, terceira montagem do Pombas Urbanas, consolida o trabalho de pesquisa que o grupo desenvolveu nos últimos oito anos, desde sua criação em São Miguel Paulista, na zona leste da Capital. Para quem assistiu a “Os Tronconenses” (91), já encenado no Municipal de Mogi, e a “Mingau de Concreto” (94), este um espetáculo de rua, o crescimento é patente.
Afinal, é o primeiro trabalho, por assim dizer, profissional do Pombas. Suas montagens anteriores tinham base amadora, sobretudo em relação aos elementos visuais (cenografia, iluminação, figurino).
O que ocorre agora é uma simbiose entre a preparação do ator, característica recorrente do grupo, com outros elementos de cena, não menos fundamentais.
Há uma melhor compreensão do texto – inicialmente batizado “Funâmbulo” e depois transformado em “Ventre de Lona”. A dramaturgia de Rojas, peruano radicado no Brasil há 23 anos, é pontuada pelo realismo fantástico presente em obras de García Marquez, por exemplo.
Com a incrementação da linguagem visual, o espetáculo consegue ser mais claro em seus planos de sonho e realidade; inclusive nos planos espaciais, já que os personagens Fu e Serzinho, vez ou outra, caminham pela corda bamba e travam diálogos onde um se situa no alto e o outro no chão.
Oscilando entre a tragicomédia – gênero ambíguo no qual o Pombas parece se situar melhor, como se viu em “Os Tronconenses” – e o drama, “Ventre de Lona” apresenta uma história muito peculiar.
A história de Fu (Adriano Mauriz), abandonado ainda bebê à porta de um velho teatro. Criado pelos fantasmas que ocupam o antigo prédio – fantasmas de grandes estrelas do teatro que passaram por aquele palco -, Fu cresce envolto em uma “bolha”, distante da realidade de seres humanos como ele.
Quem cuida do garoto são Serzinho (Marcelo Palmares), Fedegoso (Paulo Carvalho Jr.) e o Coro, todos espíritos de artistas do passado.
Graças a eles, Fu é alimentado e aprende tudo sobre o circo e o teatro. Ensinam-lhe, por exemplo, a se equilibrar no arame.
Por volta dos 10 anos. Fu estabelece seu primeiro contato com a vida real. Uma menina de rua, a Mi (Marta Guedes), invade o local através de um buraco, em busca de teto. O choque, num primeiro momento (existem pessoas como ele, de carne e osso), resulta depois em afeição. Fu se enamora de Mi, provocando ciúmes nos fantasmas adotivos.
A esse fio da meada, Rojas acrescenta histórias paralelas como a da Mulher da Casa (Juliana Flory), que resiste a mais um despejo; a da Pipa (Kátia Alexandre), única maneira do menino Fu transitar entre o passado e o futuro; e a do Homem Alado (Palmares) e sua cachorrinha Mary (Kátia), história na qual o primeiro tanto quis aprender a voar que lhe nasceram asas nas costas e agora ensina o mesmo à sua melhor amiga.
Absurdas, mas nem tanto, as situações criadas pelo autor ganham lirismo e encantamento em cena. Há um momento em que Fu lembra que via o mundo através do umbigo da barriga da mãe. Aqui fora, ele não tinha medo da morte, mas da vida.
O crescimento – pessoal e artístico – dos atores do Pombas é uma grata constatação para quem os acompanha desde 1989. Palmares se destaca pela expressão corporal de traços primitivos, pela pintura que vai dos pés à cabeça raspada, e pela própria natureza do seu Serzinho, personagem carismático que não é nada mas é tudo.
Carvalho Jr. vai em direção contrária: menos expansão, mais introspecção. Como Fedegoso (espírito de um ator que morreu queimado no teatro) e Homem Bílis (torcedor fanático, marido da Mulher da Casa), o ator combina, chaplinianamente, o peso e a leveza da existência.
Mauriz, o caçula do elenco, ainda carrega o estigma das crianças de “Os Tronconenses”. Parece-lhe difícil romper com a máscara daqueles personagens. Sobretudo nos momentos em que Fu se vê às voltas com sentimentos demasiadamente humanos, como no reencontro com a mãe e no envolvimento amoroso com Mi. No entanto, Mauriz tem a seu favor o brilho dos olhos a todo instante e aquela entrega em cena que ganha qualquer espectador.
Marta buscou referências nas meninas de rua para construir sua Mi. A composição tem consistência, mas ainda falta maior proximidade da atriz com a personagem. Ela às vezes chega lá, mas recua. E o texto indica que a história de Mi, favelada e mãe aos 11 anos, é mais profunda.
Kátia encarna uma Pipa, esse brinquedo tão frágil que crianças e adultos empinam nos céus. Tanta subjetividade é materializada em movimentos pela intérprete, no diálogo emocionante com Fu. Ele descarrega a linha para que ela voe cada vez mais longe a fim de encontrar a mãe do garoto. É uma cena tocante.
Juliana Flory tem em suas mãos a carga propriamente dramática de “Ventre de Lona”. Faz Jéssica, a garota que abandona Fu, e a Mulher da Casa, a quem o menino identifica como sua mãe no futuro. São papéis viscerais, de grande carga existencial.
Juliana não os domina plenamente, mas transmite o desespero diante dos cruéis desígnios do destino.
A direção de Rojas, mais uma vez, privilegia o instrumental do ator. O conteúdo dos gestos, da movimentação do elenco, do encadeamento das cenas, tudo depõe a favor do intérprete.
O despojamento também está presente na cenografia e no figurino de Márcio Tadeu. Cercado por lonas pintadas com motivos, ao que parece, rupestres, autóctones, um guarda-roupa no centro do palco serve como “túnel” de onde surgem os personagens e para onde eles voltam, tal qual uma caixa de pandora.
A iluminação de André Boll dá corda ao imaginário que a peça propõe. São marcações precisas, distante da estilização gratuita. O mesmo ocorre com a sonoplastia, que traz, entre outras, composições de Tom Zé.
Com seu caráter quase artesanal, onde tudo se desmancha e ergue, onde o efêmero ganha status de infinito, “Ventre de Lona” dá conta de conjugar a sua poesia cênica. (Apesar do problema concreto da voz, com seus altos e baixos, que merece prioridade daqui para frente). O espetáculo cristaliza especificidades de um grupo estável – como a gana, o respeito e a honestidade com que o Pombas pisa o palco. Premissa de grandes artistas.
Ventre de Lona – Texto e direção: Lino Rojas. Com Pombas Urbanas. Quinta a domingo, 20h. R$ 7,00 (quinta e domingo) e R$ 15,00 (sexta e sábado). Centro Cultural Elenko (rua Cardeal Arcoverde, 2.958, Pinheiros, tel. 870-2153). Até 28 de junho.
Texto e montagem se chocam em peça
São Paulo – Escrita e dirigida pelo jovem Samir Yazbek, “Antes do Fim” é prejudicada, tudo indica, pela dupla função do autor. Yazbek não consegue estabelecer um distanciamento suficiente entre seu texto e o que concebe para o palco. A sobreposição de planos da história complica ainda mais seu ritmo em cena.
A peça abre com o velório de Rodrigo, que matou a namorada Luciana e suicidou-se em seguida. Tadeu, um dos melhores amigos do rapaz, matuta em compreender a tragédia. E ele quem funciona como narrador para recapitular o namoro de Rodrigo e Luciana, na forma de flashback.
Daí para frente, acompanhamos a gênese do relacionamento, sua ascensão e queda. A reconstrução do crime passional instiga. Mas o autor abre tanto o leque para desenhar as personalidades conflitantes de Rodrigo e Luciana que o enredo torna-se maçante (tem os pais dele, o melhor amigo “do bem”, o melhor amigo “do mal”; e tem a melhor amiga dela, conselheira de plantão).
Na ânsia pela minúcia, o texto de Yazbek peca por passagens inverossímeis, ou pelo menos montadas assim. O encontro de Rodrigo com a enfermeira e o de Luciana com Ivo soam artificiais, sobretudo pela ligeireza dos diálogos.
Mas o entrave maior está na figura de Tadeu (Wagner Reixelo). Todo vestido de preto, ele surge como um guru espírita. A fala com auxílio de microfone torna sua voz mais etérea, corrobrada pela música new age ao fundo. Quando se condói ao final, imaginando os tiros disparados e perguntando ao Rodrigo, já morto, “Por que você não me ouviu, cara?”, então a peça descamba de vez para o tom religioso, com direito a mensagem do falecido para Tadeu “seguir em frente”.
Nessa “equação de várias variáveis”, como diz Tadeu a certa altura, “Antes do Fim” não apresenta grandes atuações. Os protagonistas Rodrigo Penna (Rodrigo) e Ehsa Nuiiez (Luciana) são intérpretes que seguem à risca o perfil dos personagens e não têm impacto. O restante do elenco também se esforça, mas os papéis não ajudam, porque deslocados do eixo principal.
O rigor da marcação de palco, por conta de um cenário (Paulinho de Moraes) que traz um tablado, ele também, dividido em vários planos, em escala piramidal, também contribui decisivamente para o esquematismo que toma conta dos atores. Há uma tensão constante, que não é dissimulada sequer na cena em que o elenco deveria surgir mais à vontade: quando Rodrigo vai com um amigo à boate.
Yazbek poderia ter criado um torvelinho de paixão e ciúmes menos complicado.
10.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 10 de maio de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Depois de romper a parceria de dez anos com Antunes Filho, no final do ano passado, J. C. Serroni, 47 anos,começou a tirar da prancheta seu sonho recorrente em 21 anos de palco: o Espaço Cenográfico.
Há três meses ele encontrou uma pizzaria abandonada anexa ao Teatro Eugênio Kusnet, a poucas quadras do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação; investiu R$ 31 mil do próprio bolso para reformas no prédio; e inaugurou na última terça-feira o seu laboratório permanente de cenografia, figurino, arquitetura teatral e outros elementos visuais. “Poucas pessoas no Brasil estão dispostas a fazer o que estou fazendo”, afirma Serroni a O Diário. “E faço não por mim, mas pela cenografia brasileira.” A seguir, os principais trechos da sua entrevista.
Diário – Por que deixou o CPT?
J. C. Serroni – Coincidiu, no ano passado, com a volta do Antunes para o seu método de ator. Eu não queria parar como meu trabalho de cenografia e já havia experimentado muita coisa lá com ele. Claro, poderia experimentar mais. Mas com minha bagagem toda, achava que para a cenografia eu tinha que fazer uma coisa mais individual. Se o Antunes está voltando para o trabalho fechado de ator, eu queria voltar para o designer, para a cenografia. Então, resolvi me afastar.
Diário – No programa de “Prét-à-Porter”, o novo espetáculo de Antunes, ele afirma que acabou a fase de “diretor de designer”. O que acha dessa definição?
Serroni – Eu não sei… O Antunes sempre foi muito inquieto. Em todo esse tempo que estive lá, ele sempre se preocupou muito com o trabalho do ator. Aí ele radicalizou mesmo. Antunes queria fechar seu método, um projeto que vem desde antes do CPT. A voz, o corpo, essa coisa toda… Não que eu queira fazer designer, decoração… Vou estar sempre preocupado com o ator também, uma coisa que aprendi com o Antunes. Só que existe também um outro mundo: a cenotécnica, o figurino, a arquitetura teatral. A minha formação é essa. Se eu deixar de fazer isso, que é o que sei fazer – dar aula de cenografia, fazer arquitetura de teatro, criar cenário, figurino -, vou entrar em conflito comigo.
Diário – “Prét-à-Porter” fez uma “faxina” na cenografia. Você se imagina trabalhando assim com Antunes?
Serroni – E não foi só na ceriografia. Radicalizou na iluminaçao, no som, no figurino e, segundo li, o Antunes radicalizou até com o trabalho dele para ficar mais distante, dar liberdade. Eu podia até continuar no CPT, de uma outra forma, mas não seria coerente. Lá é uma coisa do Antunes. A cenografia lá dentro vai ser sempre uma parte do todo. Eu preciso que a cenografia seja o todo. Neste momento, estou com a cabeça aqui no Espaço Cenográfico, esqueci um pouco o CPT. Mas continuo torcendo por ele, que afinal é o grande centro de pesquisa teatral no país.
Diário – Quando participou pela primeira vez da Quadrienal de Cenografia de Praga (87), você declarou que o Brasil estava pelo menos 20 anos atrasados. Evoluímos?
Serroni – A gente cresceu muito. Principalmente em relação à luz e à arquitetura teatral. Hoje, está se dando muita importância aos projetos de construção. Acabamos de ganhar três ótimos teatros: o Sesc Vila Mariana, o Alfa Real e o São Pedro, que foi reformado. E todos tiveram assessoria cênica.
Diário – Pode-se falar em uma linguagem cenográfica brasileira?
Serroni – O que a gente ouve fora do país é que a nossa cenografia tem muita liberdade, é sempre meio festiva. Cada espetáculo, cada autor traz um olhar diferente. Não é o caso da cenografia alemã, por exemplo, que tem uma linguagem muito fechada, ainda que boa; mas tudo é muito estanque. A brasileira não. Duas horas antes da estréia, o cenógrafo está lá mexendo. Nosso trabalho é mais vivo. Também somos elogiados pelo uso de materiais simples, como jornal, sucata, sobra de cenários; a gente transforma muita coisa. Claro que o Brasil é enorme para se falar em uma linguagem brasileira. Mas, pelo que se vê em São Paulo, Rio, Recife ou João Pessoa, por exemplo, nosso palco não tem grandes maquinismos, aquela coisa pesada.
Diário – Quais são as especificidades do seu trabalho?
Serroni – Eu sempre fui um cenógrafo preocupado com a infra-estrutura para a cenografia, para a iluminação, para o espaço teatral. Me preocupo muito com a formação, com a mão de obra. Mas o centro é a experimentação. O Espaço Cenográfico vem preencher isso: um lugar para juntar as pessoas na descoberta de formas, materiais e novos caminhos para as artes cênicas. Uma das metas iniciais, por exemplo, é agregar mais a iluminação à cenografia. Há uma certa distância entre os profissionais. Ainda encaramos a luz só como iluminação e não como espaço, o que já ocorre em outros países.
Diário – Você já cria figurinos e agora acena com a luz. Seria o caso de uma cenografia total?
Serroni – O ideal era que o cenógrafo fosse considerado um diretor de arte, coordenando toda a parte visual (cenografia, iluminação, figurino, maquiagem). Mas no teatro isso é muito difícil. A dez, 15 dias da estréia, não dá para você se dividir em quatro. Se o cenógrafo fizesse também pelo menos a iluminação, já seria muito bom. Mas a maioria pende mais para a criação de figurinos.
Diário – O próximo passo, então, é dirigir?
Serroni – Bem, pode ser um projeto para a quarta década da minha carreira [risos]. Eu tenho vontade, mas não quero ser apenas diretor de espetáculo. Seria fácil. Aprendi muito com o Antunes sobre a direção de atores e quero usar isso um dia.
Espaço Cenográfico tem caráter público (rua Teodoro Baima, 88, Centro, tel. 257-1115 ou 256-4619). Coordenação: J.C. Serroni. Curso – De agosto a dezembro, das 19h às 22h. Vagas: 15. Inscrições a partir de 1º de junho. Taxa: R$ 5,00 (mensalidade gratuita). Biblioteca – De terça a quinta, das 16h às 20h; sábado, das 14h às 18h. Exposição – Visitas aos sábados, das 14h às 18h.
Espaço Cenográfico tem caráter público
São Paulo – “É como um videotape: vai para frente e para trás, vocês é quem mandam.” Na introdução para a platéia, o encenador Augusto Boal faz a ponte do seu “teatro fórum” com o efeito “você decide” que toma a televisão de assalto. De certa forma, o encenador antecipou tudo isso.
Mas, ao contrário da participação virtual pelos “0900” da vida, aqui o espectador intervém de fato. Entra em cena na hora que quiser, substitui o ator em questão e representa como acredita que faria na vida como ela é.
Segmento do “teatro do oprimido” gestado pelo diretor carioca nos anos 70, o “teatro fórum” se distingue também por oferecer mais de duas opções. Se nove pessoas da platéia discordam da ação do personagem, então elas ganham vez e voz no palco.
Foi o que Boal mostrou no início da semana em São Paulo. Ele encerrou seu workshop de cinco dias no Teatro da USP com duas apresentações. Os 27 participantes criaram quatro cenas curtas abordando educação, violência urbana, solidão no meio do público e o padecimento de uma estrela clonada de Carla Perez, vítima da “ditadura do corpo”.
A platéia escolheu os temas educação e violência para intervir. Na primeira cena, o diretor de escola cobra da professora maior rigor na sala de aula e cumprimento do método clássico de ensino. Na segunda, dois meninos de rua praticam roubo e estupro de pessoas da classe média que, antes, tinham consciência social quanto aos excluídos.
O “teatro fórum” requer mínimos recursos,. O realismo predominou nas apresentações – sem cenário, iluminação, sonoplastia e tampouco grandes atuações.
Como Zé Celso, Boal gesticula muito, chega a “interpretar” para se fazer entender, conquistando a empatia da platéia. “O teatro do oprimido propõe várias portas em que todo mundo é artista, queira ou não queira”, continua explicando. “A gente pode, no presente, pensar o passado e inventar o futuro.”
Augusto Boal cria seu “você decide” de fato
São Paulo – Para uma cidade que não possui curso superior de cenografia – no Rio existem dois -, a Capital e as cidades vizinhas vêem no Espaço Cenográfico um alento que faz par com o CPT. Só que a iniciativa de J.C. Serroni tem um caráter mais institucional coordenado por Antunes Filho, no Sesc Consolação.
De olho nos profissionais da área e nos jovens que manifestam, no mínimo, curiosidade sobre o mundo da cenografia, o Espaço vai oferecer cursos, exibir vídeos e permitir acesso a uma biblioteca com 500 títulos, entre livros e revistas especializadas, nacionais e importadas.
O folheto mensal “Espaço Cenográfico News”, com tiragem de 2 mil exemplares, distribuído gratuitamente, vai preencher um pouco do vácuo editorial com informações sobre cenografia. Cada edição trará, por exemplo, o “cenógrafo do mês”. O primeiro perfil é de Tomás Santa Rosa Júnior, ou Santa Rosa. Ele assinou o “Vestido de Noiva”, de Ziembinski, em 1943, marco do moderno teatro brasileiro.
Uma exposição cenográfica vai ocupar permanentemente um dos corredores. Serroni dá a largada, mas depois abre para outros cenógrafos. As paredes do Espaço apresentam texturas, adereços e objetos suspensos oriundos das montagens que ele participou – dos 70 espetáculos do currículo, 11 foram no CPT.
A intenção, diz o cenógrafo, é situar o público – visitantes, alunos – num ambiente “vivo”, com direito a iluminação e sonoplastia, como se todos estivessem sobre um palco.
Também está programado um ciclo de palestras no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, ao lado do Espaço.
LIVRO
J. C. Serrom também escreve livros. Para o segundo semestre, ele prepara “História Visual da Cenografia Brasileira”, um projeto da Funarte. Também dispõe de material suficiente para produzir uma história da cenografia nacional mais acalentada, idéia a ser apresentada em breve para alguma editora.
Paralelo aos livros e, agora, ao Espaço Cenográfico, ele continua fazendo o que mais gosta: criar cenários e figurinos. Dois espetáculos infantis em cartaz levam sua assinatura: “Chimbirons e Chimbirins” e “No Reino das Águas Claras”. Daqui a duas semanas reestréia o infanto-juvenil “O Homem das Galochas”.
E os convites, depois da saída do CPT, não param de chegar. Tem Ulysses Cruz com “Sábado, Domingo e Segunda”, do italiano Eduardo de Filippo. Vladimir Capella com “Clarão nas Estrelas”, do próprio, para o Teatro do Sesi. José Possí Neto com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do português José Saramago, no Rio. Para o ano que vem, Fauzi Arap com “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, estrelado por Bibi Ferreira.
5.4.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998. Caderno A – 4
Companhia carioca trata erotismo com poesia e vê o corpo como veículo de prazer e afeto
VALMIR SANTOS
São Paulo – Como falar em erotismo nesse prenúncio de milênio? Como falar de toque, tocando, num tempo em que as pessoas optam pelo sexo on linee e erguem muros em volta de si? São questões assim, pertinentes, que vão pela cabeça do espectador depois da sessão de “Volúpia”. A montagem da carioca Cia. Teatro do Movimento resgata o elo com o corpo enquanto instrumento de prazer. E o faz, é claro, enfrentando o falso moralismo que insiste em desprezar o que Deus lhe deu.
Afinal, “Deus não me fez até a cintura para o diabo fazer o resto”, como deduz uma das personagens, numa das citações brilhantes que pululam no espetáculo. O roteiro reúne trechos de obras de Adélia Prado, Hilda Hilst, James Joyce, Anaís Nin, Henry Miller, D. H. Lawrence, Sade, Verlaine, Cortázar, Moravia e outros nomes da literatura e do pensamento mundial que colocaram o sexo na pauta do dia e nem por isso o pintou com a tinta da publicidade que a tudo consome.
O objeto do desejo, aqui, é o corpo como veículo. O corpo “humilde”, despido de conceitos, idéias e couraças afins. “A indecência no cérebro se torna obscena”, avisa um personagem. “A castidade no cérebro é vício”, retruca um outro. E a língua passeia por aí afora, retratando o erotismo desde a mitologia grega até a filosofia moderna, sob o prisma da obscenidade e da pornografia.
Há espaço para tudo no jogo de palavras, gestos e movimentos: o lúdico, o escatológico, o onírico, o fantástico, enfim, variantes que dizem respeito à intimidade de cada um. O gozo é livre e honesto – eis uma bandeira possível para “Volúpia”.
Como em “A Lua Que Me Instrua” (1992), a diretora Ana Kfouri recorre à sensibilidade para ganhar o público. Mesmo nas passagens que poderiam fazer corar muita gente – palavrões, relações homossexuais, e sadomasoquistas, por exemplo -, tudo é conduzido com a “mão” do afeto sincero, da permissão para o encontro do outro (que também pode estar dentro de si).
Dispensando a narrativa linear, os quadros são entremeados por breves blecautes. Os atores da Cia. Teatral do Movimento cometem verdadeiros contorcionismos. Como o próprio nome diz, uma perspectiva coreográfica domina a movimentação e chega a desembocar em canções entoadas pelo próprio elenco.
Heitor Martinez Mello, Isabel Cavalcanti, Manilha Martins, Nadya Thalji e Pedro Brício dão atenção em dobro ao seu principal instrumento de trabalho: o corpo. Eles interagem com os contornos geométricos do cenário (orifícios, frestras) e redimensionam o olhar voyeur e pornô. Os figurinos – sim, eles existem! – foram inspirados na sensualidade das telas do pintor austríaco Klint.
Quando os atores simulam transas em cada espaço do cenário, explorando posições variadas, protagonizam um verdadeiro “Kama Sutra”. As imagens não chocam, mais uma vez, por causa do tratamento estético que não abre mão da poesia.
“Volúpia” é uma resposta à sociedade sexista de consumo. Dá um banho de interpretação nas montagens chínfrins que ainda insistem na gratuidade do nu como chamariz de bilheteria. Nos seus breves e consistentes sete anos, a Cia. Teatral do Movimento e sua diretora conquistaram lugar ao sol com muito suor e pesquisa. E, é claro, muita coragem.
Volúpia – Concepção e direção: Ana Kfouri. Assessoria técnica: Leonardo Sá. Com Cia. Teatral do Movimento. Figurino: Charles Moeller. Cenário: Afonso Tostes, André Costa e Sônia Barreto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.
Espetáculo ri da incomunicabilidade
São Paulo – A surpresa começa já no espaço em que o espetáculo é encenado: uma piscina. Vazia e coberta, é lá que tudo se passa. E as surpresas continuam, depois, pontuando do início ao fim. “Ladrões de Metáfora (Não Importa o que Eu Falar, Você Entende o que Quiser)” poderia dizer tudo com este título quilométrico. Mas a montagem diz e diverte muito mais.
O diretor Gustavo Kurlat – nome associado à música para teatro desde o final dos anos 80, trabalhando principalmente com o Tapa – mostra que realmente é bom de ouvido. As 22 cenas que escreveu são pequenas criações em que a sonoridade da palavra soma com o silêncio e dá em diálogos impagáveis.
É como se o espírito de Wood Allen baixasse na piscina d’A Casa, um dos novos espaços culturais da Capital. Com texto, direção e música em suas mãos, Kurlat tem pleno domínio lo espetáculo. Tomando como erferência a máxima de Ítalo Calvino de que “quem comanda o discurso é o ouvido”, ele desenvolve um amargo, ainda que cômico, inventário da incomunicabilidade.
Kurlat traça um painel das relações em todos os seus níveis: afetivo, familiar, amizade ou simplesmente individual, enquanto ser social. São personagens desnorteados, com seus pensamentos e códigos receptivos turvados pela poluição de idéias – para ficar no ramerrão semiótico que também tem lá sua surdez implícita.
De volta ao espetáculo, são esquetes ou performances nas quais o poder de síntese é exigido o tempo todo. Os quatro atores – Flávia Ferraz, Fábio Herford, Alexandre Edelstein e Vera Ferreira – dão conta do recado com muita inventividade: quer no tom predominante de farsa, quer nas cenas dramáticas que beiram o dramalhão. (Vale lembrar, o imaginário brasileiro está impregnado das telenovelas). Herford e Flávia, em especial, destacam-se também pela interpretação musical em números solos, provando que o talento de ambos se estende às cordas vocais.
Em certos momentos, a peça é um exercício de pura ironia. Como no quadro em que um homem e uma mulher, cada qual em sua vez, choram as pitangas na mesa de um bar. Nesses “intervalos” dramáticos, porém, a montagem titubeia e deixa escapar seu ritmo ideal – que é o do instalar dos dedos, estímulo e resposta, mesmo quando não se ouve um pio.
Mas o grande barato está no inusitado das situações – e de como elas são solucionadas. Do corte de cabelo que dura 15 segundos (a cabeleireira corta dois dedos do cliente, literalmente), ao tapa na cabeça do sujeito que pede para o fotógrafo bater a foto; das reticências infinitesimais que distanciam o casal em crise, à verborragia de boteco empregada pelos bêbados; do “portunhol” entre um galanteador argentino e uma moça brasileira, ao quiprocó semântico no qual maridos entediados explicam para suas mulheres o que vem a ser exatamente “impedimento” no futebol; enfim, é um desfile bem acabado da impossibilidade de se fazer entender diante do outro.
E mesmo quando o que se ouve do interlocutor entra por um ouvido e sai pelo outro, Kurlat insiste que é impossível que nada se assimile.
O ruído na comunicação interpessoal, como conseqüência da demanda tecnológica que avança a la Jetsons, está na ordem do dia. Em sua síncope litero-sonoro-gestual, o diretor e seus ótimos atores nos fazem rir do ridículo e da desgraça em que estamos embrenhados a cada celular que toca, bip que vibra ou e-mail que chega. Paradoxalmente, é refletindo e fazendo blague do distanciamento que “Ladrões de Metáforas” celebra a sua comunhão, o seu encontro com o público. Dá seu toque numa boa, sem meta-metáfora.
Ladrões de Metáforas (Não Importa o que Eu Quiser) – De Gustavo Kurlat. Figurinos: Isabela Teles. Terça e quarta, 21h30. A Casa (rua Coronel Irlandino Sandoval, 425, Pinheiros – altura do 1.754 da avenida Faria Lima, tel. 814-9711). R$ 15,00. Duração: 70 minutos. Até 6 de maio.
5.4.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – Já virou bordão: “Einstein estava certo…”. Quase 43 anos depois da sua morte, em abril de 1955, a comunidade científica continua confirmando teses que o físico e matemático alemão elaborou em vida mas não dispunha de nenhum satélite potente para provar suas idéias. É por essas, e por outras, que o monólogo “Einstein – Um Ato de Gabriel Emanuel” ganha sabor especial.
O ator Carlos Palma interpreta o texto de Gabriel Emanuel – pseudônimo do canadense Gordon Wiseman. Seu primeiro contato com a peça foi em 1995, quando assistiu à montagem chilena. Em princípio, Palma pensava em adquirir os direitos do texto para outro intérprete. Mas acabou, ele mesmo, quarentão, vivendo Einstein aos 70 anos. O resultado é tocante.
Einstein está prestes a participar de mais um daqueles jantares protocolares. Entre os seus chamados pela secretária Helen, que nunca vem, o personagem rememora, aos poucos, sua infância e juventude. Conta, por exemplo, como a bússola que ganhou do pai aos 5 anos, acamado, influenciou seu pensamento pelo resto da vida. Da mesma forma, a paixão pela música foi herdada da mãe, que lhe deu um violino que, pouco tempo depois, já estava tocando.
A ironia lhe era frequente. “Como meu desenvolvimento era retardado, eu era um adulto com mente de criança”, tenta se explicar o personagem. Aos 9 anos, não prestava atenção em sala de aula e vivia isolado pelos cantos, sem falar com ninguém.
Num cenário simples, composto por uma escrivania, uma poltrona e uma lousa, Einstein/Palma intercala o presente com o passado, mesclando biografia e idéias. Judeu, ele cita sua mágoa com o regime nazista alemão, que praticamente o expulsou da pátria em plena juventude. O físico chegou a ser convidado para ser presidente do Estado de Israel, mas não aceitou.
O monólogo inclui até uma explicação didática da Teoria da Relatividade, que publicou aos 26 anos – o Nobel de Física viria 16 anos depois, em 1921. A peça acerta em equilibrar aula e drama. Ou seja, não é um espetáculo propriamente escolar. O que está sendo representado é a vida e o pensamento de uma dos gênios da humanidade. Suas inquietudes sobre razão e intuição, em que ambas não se excluem, podem ser encaradas como verdadeiras lições de vida.
Em sua caracterização, que inclui a oxigenação dos cabelos e bigode, com o benefício da calva já proeminente, Carlos Palma é a incorporação perfeita de Einstein. É rigoroso na composição dos gestos, do corpo arqueado, do andar vagaroso, do olhar que brilha ansioso por desvendar os mistérios do mundo. A direção de Sylvio Zilber também acentua o trabalho do ator, vencendo o desafio do monólogo com tranquilidade.