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“Diario de Mogi"

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O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998.   Caderno A – 3

VALMIR SANTOS

Curitiba – A melhor coisa do Fringe é o tiro no escuro, o sabor da aventura de ir ao teatro sem quaisquer expectati­va. A mostra paralela que o Fes­tival de Teatro de Curitiba inau­gurou em sua sétima edição conseguiu atingir a meta saudá­vel da diversidade. Houve espa­ço para tudo, como O Diário no­tou em pelo menos quatro das 32 peças que participaram do Fringe – nome importado do tra­dicional Festival de Edimburgo, que também abre suas portas para grupos que tenham coisas interessantes a dizer; ou melhor, a encenar.

A montagem de “Killer Dis­ney , por exemplo, trouxe para o palco brasileiro o primeiro texto do inglês Philip Ridley, es­crito em 1990. É uma história, no mínimo, perturbadora. Os jo­vens Presley (Ivan Cabral) e Ha­ley (Andressa Medeiros) são dois irmãos que vivem sozinhos depois da morte dos pais. Em casa, isolados na bolha que in­ventaram para si, eles se escon­dem do medo do mundo exteri­or. Para suprir a resistência, se alimentam quase que exclusivamente de chocolate.

Aos poucos, os irmãos vão desnudando seus horrores. A narrativa é escatológica, beira o teatro pânico do qual o drama­turgo espanhol Fernando Arra­bal é um dos expoentes (“Jovens Bárbaros de Hoje”). A doce e angelical Haley, por exemplo, conta sua escalada à estatua de Cristo, fugindo de uma matilha. Os cães rosnavam ao pé do monumento, enquanto ela beijava os lábios frios do Salvador.

Presley, por sua vez, descre­ve como comprou uma cobra verde, feito cor de grama, e a mastigou depois de fritá-la. As imagens de “Killer Disney” são poderosíssimas. O autor é devassador. Um terceiro perso­nagem, Cosmo Disney, surge para aumentar ainda mais o pe­sadelo dos irmãos. Entre os de­sejos mais primitivos, a sexua­lidade latente e prisão do ima­ginário, a peça é uma crítica fe­roz ao isolamento do homem moderno.

“Killer Disney” uniu a Com­panhia de Teatro Os Satyros, se­diada em Lisboa, e o grupo paranaense Resistência de Teatro. A direção é assinada por Marce­lo Marchioro. A montagem transmite a atmosfera etérea do texto; as interpretações são vis­cerais, no limite da loucura em que os personagens estão meti­dos.

Outro destaque do Fringe foi “A Perseguição ou O Longo Ca­minho Que Vai de Zero a Ene”, com a paranaense Cia. do Dra­ma 2. João Paulo Leão dirige e contracena com Hélio Barbosa no texto de Timochenco Wehbi.

E uma peça coerente com a abordagem existencial – e soci­al, por extensão – que Wehbi imprime em seus textos. Na rela­ção do outro com o mundo que o cerca, Zero e Ene fazem como Uroborus, a cobra mitológica que engole o próprio rabo. Leão e Barbosa estão à vontade no palco; estabelecem paralelismo nas falas, nos gestos, na ocupa­ção do palco que traz latões amontoados como cenário. O si­lêncio beckettiano, o mergulho no vazio das almas, transfor­mam o espetáculo em uma ex­periência intimista, na qual a palavra ecoa com dor e lirismo.

Em “Cara Metade”, o Caos & Acaso, outro grupo de Curi­tiba, encena um dos textos pou­co conhecidos de Flávio de Sou­za (“Fica Comigo Esta Noite”, “Repetition” e “De Pernas Pro Ar!”). Trata-se de uma incursão do autor pelo mesmo tema que atraiu o francês Roland Barthes no clássico “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, livro que já recebeu algumas adaptações para o palco.

Estão lá as neuroses comuns dos enamorados, como a angús­tia da espera, o ciúme e a perda amorosa. “Cara Metade”, o títu­lo, é atribuído à dupla persona­lidade que acomete a todos; diapasão que abriga a disputa en­tre razão e intuição. O tratamen­to do diretor Chico Penafiel, que também encabeça o elenco, beira o do teatro infantil, com direito a figurinos coloridos e anjinhos saltitantes. É uma farsa descomprometida, que se não vai além do olhar raso do tema, deve-se muito ao texto pouco feliz de Souza.

Como se disse, Fringe tam­bém é susto. E um deles foi “Dois? Somente Um!”, de Pe­dro Pires, que também assina a direção e participa do elenco. O que se viu no festival foi um en­godo, um espetáculo distante do mínimo para se levar ao palco. Nas desilusões e embates de ca­sais em crise, a rotatividade dos seis atores se assemelha a um jogral escolar. As coreografias são preguiçosas, repetitivas.

Sob a justificativa de “falar com a maior simplicidade do mundo”, as interpretações são de um naturalismo fácil. Real­mente, os atores parecem que estão falando em um boteco ou numa sala de estar. Mas o palco, convenhamos, prescinde de bri­lho na fala, de verdade – o que falta em “Dois? Somente Um!”.

Enfim, o Festival de Teatro de Curitiba chega ao seu sétimo ano com a certeza de que o Frin­ge veio para ficar. O leque de estilos, de trabalhos experimen­tais, de grupos que ousam dar um passo além – pelo menos a maioria deles – resulta em rique­za maior da mostra paralela. Dá gosto participar da maratona (sessões às 18h e 24h), sobretu­do pelas gratas surpresas.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998.   Caderno A – 4

Montagem baiana dirigida pela alemã Nehle Franke traduz universalidade do autor Valle-Ínclan

VALMIR SANTOS

Curitiba – É inerente da arte do teatro transcender ao espaço no qual ele acontece. Depois do último sinal, importa o “vôo” dos espectadores. E isto só se dá quando a magia é de grande monta. Como em “Divinas Palavras”, uma das melhores atrações do 7º Festival de Teatro de Curitiba – e que poderá ser vista em São Paulo de amanhã até o dia 9, em temporada gratuita no SESC Consolação.

O texto do dramaturgo espanhol Ramón Del Valle-Inclán (1866-1936) ganhou adaptação de dois compositores expressivos da música regional brasileira: Xangai e Elomar. O elenco, por sua vez, é formado por atores baianos. E a direção é da jovem alemã Nehle Franke. Essa mistura de raízes contribui para o caráter universal da obra, destacado com beleza e espanto em cena.

A partir do texto amargo de Valle-Ínclan, no qual cada ser humano parece predestinado à dor, porque amor de perdição é armadilha e partilha de herança é ambição desmesurada, capaz de desgraçar toda uma família, enfim, a partir desse olhar impiedoso do autor, a montagem encontra a si mesma, incorporando seu filete de humor em pleno ritual.

“Divinas Palavras” tem o aleijadinho Laureano (Fábio Vidal) no centro da disputa dos tios. Ou melhor, nem tanto ele, Laureano, um “fardo” a grunir boa parte do tempo. O que se disputa, cruelmente, é o carrinho de mão, o “berço” no qual o pobre coitado é levado para cima e para baixo.

O nonsense em torno da herança culmina na morte do aleijadinho, na interpretação ao mesmo tempo assustadora e encantadora de Vidal, traduzindo em desespero e ódio cada músculo retesado do corpo, mais o olhar esbugalhado, a voz esgarniçante. Em estando morto, Laureano não perde a condição de “moeda”.

“Três dias na porta da igreja rendem mais do que o dinheiro do enterro”, dispara a garota Simoniña (Cibele de Sá), carregando ligeiro o falecido no carrinho para esmolar. A miséria em seu grau mais elevado; a exploração não cessa nem depois do último respiro.

A peça confronta ainda a noção de pecado com a traição de Mari-Gaila (Andréia Elia). Depois de conseguir parte da “herança”, ela se deixa seduzir pelo saltimbanco Sétimo Miau (caco Monteiro) e trai o seu marido, o sacristão da aldeia. Como Madalena, Mari-Gaila é perseguida pela comunidade e o espetáculo termina com a frase bíblica, desafiando àquele que não cometeu pecado a atirar a primeira pedra.

“Divinas Palavras” é um espetáculo que comove pela sua sinceridade. Há uma riqueza corporal, uma inventividade constante que brota do corpo dos atores. Como nos personagens construídos por Elydia Freire (Poca Pena) e Evelyn Buchegger (Marica del Reino), em que a caracterização é minuciosa, de conteúdo ancestral, antropológico.

Tal perfil também se enquadra nos figurinos e adereços de Moacyr Gramacho, nos bonecos de Olga Gomez e na cenografia de Ayrson Heráclito e Haroldo Garay, que integra a tudo e a todos com fluência rara.

A platéia giratória conduz o olhar do espectador como uma câmara cinematográfica. Numa das sequências mais impressionantes, o giro acompanha um grupo que persegue Mari-Gaila por entre as cercas. A rusticidade do espaço, com vários ambientes – ora uma tenda, ora um descampado, por exemplo – alcança também a expressão oral. As falas pertencem à tradição de quem vive nos confins dos sertões, com seus códigos específicos, na maioria das vezes evocando a natureza. Daí, a remissão imediata à peça-irmã “Vau da Sarapalha”, do grupo paraibano Piollin, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa.

Xangai, Elomar, Nehle Franke e os vibrantes atores baianos captaram de Valle-Inclán a universalidade pungente. É um espetáculo que coliga o sofrimento brasileiro, de ontem e de hoje, com o sofrimento de vários povos. O choro da sanfona e o cantochão da cantora que costura as cenas representam o lamento de uma humanidade que beija o rosto da morte ao mesmo tempo em que foge dela. Os artifícios para viver são muitos. “Divinas Palavras” não prega juízo de valores, não quer transmitir mensagens. Faz, de bom tamanho, o seu recorte lírico e cruel da pequenez que habita os corações dos mortos-vivos que perambulam por aí, Brasil adentro.

 

Divinas Palavras – De Ramón del Valle-Inclán. Tradução: Carlos Roberto Franke. Adaptação: Elomar e Xangai. Direção: Nehle Franke. Com Ana Paula Bouzas, Caica Alves, Katia Leal, Rino de Carvalho Inácio e outros. Estréia amanhã, 21h. Terça a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Consolação/Salão Verde (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2322). 90 lugares. Grátis (retirar convites com antecedência). Até 9 de abril.

 

Matheus acentua humor em “Orgulho”

Curitiba – Co­mo em “Deadly”, apresen­tada no ano passado, a Cia. do Circo Míni­mo – leia-se Rodrigo Matheus – voltou ao Festival de Teatro de Curitiba com um espetáculo no qual o ator passa boa parte do tempo suspenso no ar. Matheus segue na sua pesquisa do espaço aéreo, que vem desde “Prome­teu Acorrentado”, cerca de dois anos atrás. Agora, é a vez de “Orgulho”, dividindo a cena com o músico e ator Thibaut Delor.

E a presença deste, aliás, o diferencial em relação às mon­tagens anteriores. A presença de Delor coincide com maior espa­ço para o humor. Em “Orgu­lho”, aquela densidade recor­rente do drama e da tragédia ce­dem espaço para o lúdico, sob direção de Cala Candioto.

Matheus surpreende ao explorar sua veia cômica, brincan­do com o ego inflado do seu personagem. A caricatura gay é o á­pice da ruptura que o ator insi­nua em seu novo trabalho.

O texto de “Orgulho” tem como eixo o conto homônimo de Rubem Fonseca. A impotên­cia do homem diante de Deus – este sim, onipotente, como quer seus seguidores – espelha o es­forço do trapezista na missão de alcançar o status de herói.

Enquanto ele (Matheus) mostra seu virtuosismo no ar, retorcendo músculos aqui e ali, com muito suor, o violoncelista (Delor) e seu inseparável instrumento servem como contrapon­to. A coreografia assinada por Sandro Borelli faz uso sobretu­do do contato improvisado entre os corpos. A música que ecoa das cordas, ao vivo, constitui ela também um elemento da narra­ção.

Muito mais do que um retra­to da ambição humana diante da construção do mito, do herói -cita-se, por exemplo, a carta de Getúlio Vargas que “saiu da vi­da para entrar para a história” – o que se destaca em “Orguho” são os seus momentos cômicos.

Neles, a interpretação combina com o espaço e dinamiza a rela­ção com o público. Um caminho que Rodrigo Matheus e sua Cia. Circo Mínimo já provaram que têm cacife para investir muito mais.

Fringe veio para ficar, garante diretor

São Paulo – Num balanço prévio da 7ª edição do Festi­vai de Teatro de Curitiba (FTC), o diretor de comunica­ção, Leandro Knopfholz, 24 anos, avalia positivamente os re­sultados da primeira mostra pa­ralela. O Fringe, como foi bati­zada a mostra, inspirada no Festival de Edimburgo (Ingla­terra), reuniu 32 peças e teve desde platéia reduzida a três, quatro pessoas, até casas lotadas (40, 50 pessoas). Ou seja, a fre­qüência do público reflete a pró­pria diversidade do painel que foi apresentado (leia na página 3 a crítica de alguns espetáculos acompanhados por O Diário).

“O Fringe veio para ficar”, garante Knopfholz. Ele destaca principalmente o empenho dos próprios grupos em cuidar das apresentações com esmero – al­guns chegando a produzir programas de invejar os participan­tes da mostra oficial. Com uma taxa de R$ 50,00, os grupos interessados tiveram direito ao te­atro e à divulgação da monta­gem.

A partir do próximo ano, o diretor quer ampliar a faixa do horário alternativo (sessões às 18h e 24h) para o período da manhã. A intenção é descon­gestionar as noites, que regis­traram quatro espetáculos se­guidos, entre mostra oficial e paralela. O diretor estima que, em seus 11 dias, o festival atraiu um público de cerca de 60 mil pessoas.

Knopffiolz concorda que foi um equívoco a apresentação de “Arlechino, Servidor de Dois Patrões”, pela Cia. Teatro Di Stravaganza (RS), na abertura do festival deste ano, “O talento da companhia é inegável, tanto que foi selecionada para a mos­tra oficial.

Mas o espaço não foi adequado”, reconhece o diretor. Na sua opinião, para uma peça funcionar na Ópera de Arame é necessário que utilize muitos recursos visuais e seja expansiva. “Arlechino”, ao contrário, era intimista e foi diminuída pelo gigantismo do espaço.

Para o próximo ano, a única certeza é a inclusão de mais uma atração internacional na programação. “Agulhas e Opio” (Needles and Opium), que in­troduziu o teatro do diretor canadense Robert Lepage no Bra­sil, foi uma das grandes sensa­ções do festival.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 28 de março de 1998.   Caderno A – capa

“O Crime do Dr. Alvarenga” reflete o talento de seu autor para cair no gosto do público

VALMIR SANTOS

Curitiba – “O Crime do Dr. Alvarenga” foi a única monta¬gem que teve sessão extra durante o 8º Festival de Teatro de Curitiba (FTC), que termina hoje. O sucesso reflete o talento do autor Mauro Rasi para cair no gosto do público, sobretu¬do de classe média.
 
Como em “Pérola”, Rasi bebe da fonte autobiográfica. Dessa vez, partiu de uma pe¬ça escrita pelo pai, seu Oswaldo, morto em dezembro passado, para cometer um e¬xercício metateatral. Toma como base a história original de “O Crime do Dr. Alvaren¬ga”, vertida pelo pai na forma de um policial noir. Para¬lelamente, ele, Rasi, coloca-se no enredo ficcional con¬tracenando com sua família, ou seja, o pai, a irmã, o genro e a tia.
 
Rasí assume a história empolada do pai, tragicomé¬dia. Nos anos 40, o velho ci¬entista Dr. Alvarenga (Paulo Autran) envolve-se com a be¬la estagiária Olívia (Drica Moraes). A mulher Helena (Marilu Bueno) descobre o romance e vai tirar satisfaçõ¬es. Desenha-se então o crime passional no qual a mulher morre e o marido é o principal suspeito.
 
O viés autobiográfico, em que pese a insistência do au¬tor no gênero, constitui o principal foco do texto. Rasi exorciza de forma impressio¬nante a relação com o pai, a quem devota influência no trato com a escrita e, ao mes¬mo tempo, a herança da cul¬pa pelo “insucesso” do pai dramaturgo.
 
Essa situação conflitante, contudo, é relegada a segun¬do plano na comédia. Mergulhasse um pouco mais e Rasi disporia de bom material pa¬ra um drama. Não fez isso, é claro, comprometido que es¬tá com um teatro de entretenimento pré-pizza, como convém à mediana classe média. “‘Uma comédia ele¬gante”, define Autran.
 
Ernani Moraes, principalmente como o genro, e Marilu Bueno, uma tia im¬pagável, puxam o humor bronco. São comediantes que conquistam o público desde o início, aplaudidos em cena aberta. Drica Mo¬raes e Guilherme Piva (Emí¬lio, alterego de Rasi) estão corretos. E Autran encaixa¬-se como o pai da história de forma convencional, sem maiores desafios para um a¬tor de bagagem única.

Falta autocrítica no Festival de Curitiba
Curitiba – O oitavo ano do FTC consolida a mostra paralela Fringe, em sua segunda edição, co¬mo balão de ensaio e proje¬ção para novos grupos e, ao mesmo tempo, pede um redi¬recionamento da mostra.
 
Foi um evento atípico, sem os medalhões do teatro nacional (José Celso Marti¬nez, Antunes Filho, Gerald Thomas), o que abriu a janela para outros encenadores: Nehle Franke (Bahia), Regina Bertola, Chico Pelúcio (Minas), Bete Coelho, Sandro Borelli, Jorge Takla, Ros¬sela Terranova e Cláudia Schapira (São Paulo).
 
São, cada um a seu modo, diretores livres para a experi¬mentação, sem compromisso com uma estética definida. Esse leque preencheu as ex¬pectativas da programação e, de quebra, incorporou o cha¬mado “teatrão” (Paulo Au¬tran, Raul Cortez). O FTC, como “festival de estréias”, atingiu sua meta.
 
Quanto à mostra Fringe, não foram poucas as boas surpresas. A começar justamente pela montagem de “A Boa”, de Aimar Labaki, nu¬ma encenação impactante de Ivan Feijó, superior a algu¬mas peças que constaram da grade oficial. “Carta Aber¬ta”, do francês Denis Gué¬noun, traduzida e dirigida por Fernando Kinas, com o ator Lori Santos, também foi outro grande momento.
 
O redirecionamento do FTC deveria ficar por conta dos eventos paralelos. Numa edição em que despontaram vários caminhos e lingua¬gens, para melhor ou pior, falta um painel que sonde ou amarre tais tendências. O FTC precisa assumir o com¬promisso com o contéúdo, com a autocrítica do que leva ao palco.
 
É triste constatar que mu¬ita coisa cairá no esqueci¬mento já no dia seguinte ao encerramento. E, pior, sem nenhum canal estabelecido entre artistas e criadores.
 
A organização do FTC estima que 90 mil pessoas assistiram às peças de rua e de sala até quinta última. 

“Juventude” destoa no casal protagonista
Curitiba – Mais dois bons espetáculos do Fringe, a mostra paralela homônima à do Festival de Edimburgo. Em “Juventude”, o diretor Felipe Hirsch, carioca que mora em Curitiba, adaptou “Ah, Ju¬ventude!”, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953).
É um belo texto sobre a fase mais transgressora e so¬nhadora de nossas vidas. O’Neill o escreveu em 1933, aos 45 anos. Richard é um a¬dolescente sintonizado com grandes autores da literatura, como Bernard Shaw e Jac¬ques Tati.
 
Na sua livre adaptação, Hirsch dá uma pincelada pop para “Juventude”, sobretudo na trilha (Morrisey, por e¬xemplo). A composição visu¬al é competente, com recur¬sos de projeção, mais cenário e luz acurados. Falta, porém, o eixo de tudo: o casal prota¬gonista não dá às palavras a força que demandam.
 
E o pernambucano Ariano Suassuna também se fez re¬presentar no Fringe com “Coração Dilacerado”, sua peça de teatro de mamulen¬gos dirigida e adaptada por Ailton Silva Carú, que tam¬bém frequenta a cena para¬naense. Com um elenco afi¬nado com a cultura popular, sua oralidade e inventividade na manipulação de bonecos.


Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

Embriaguez pelo outro

24.3.1998  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Domingo, 24 de março de 1998.   Caderno A – capa

Walderez de Barros e Luís Melo em seus monólogos emocionam o público no FTC

VALMIR SANTOS

Curitiba – Waiderez de Barros (“Tu e Eu”) e Luís Meio (“Nijinsky”) inter­pretam monólogos neste 8º Festival de Teatro de Curiti­ba. A programação traz ain­da Iara Jamra (“O Caderno Rosa de Lori Lamby”), que estreou ontem. O formato costuma receber críticas, quer pela suposta facilidade em montá-lo em tempos de crise econômica, quer pela exigência maior da entre­ga/atenção do público, esse ser flutuante cada vez mais acostumado à fácil digestão de entretenimento.

 

Mas tudo isso ainda é mu­ito pouco para relegar o mo­nólogo. Enfrentar persona­gem e platéia sozinho é dos maiores desafios que um ator pode registrar no currículo. Walderez de Barros e Luís Melo, cada um a seu modo, fazem um libelo à interpretação solitária nos espetáculos que chegam a São Paulo no mês que vem.

 

Em “Tu e Eu”, Walderez traz à cena a palavra do afe­gão Rumi (1207-1273), um mestre versado em filosofia e poesia que legou para a hu­manidade uma obra repleta de lampejos líricos e espiri­tuais. “Apenas somos quan­do em nada nos tornamos” – eis um exemplo da reflexão que Rumi propõe na reve­rência a seu interlocutor, que pode ser um deus, uma mu­lher, um homem, não impor­ta. Embriagado pelo outro, o personagem evoca a energia solar ou lunar para declarar seu amor universal e incon­dicional.

 

Walderez de Barros recu­pera o olho no olho do espec­tador, um gesto cotidiano tão elementar quanto distante dos palcos contemporâneos. O prazer da palavra, da trova, toma conta do espaço. Vesti­da em terno e calça cinzas, divagando entre as pedras, a atriz cativa o espectador com um encanto arrebatador.

 

O diretor Jorge Takla de­posita tudo na atriz, suavi­zando cenário e luz em favor da poesia. Quem viu Walde­rez em outro monólogo re­cente, interpretando e cantando versos do poeta francês Jacques Pri­vet, sabe do poço de energia que ela é. Em “Tu e Eu”, temos sim­plesmente uma intér­prete que faz jus à po­derosa mensagem de Rumi em sua espe­rança na força transformadora do homem  e – do teatro, por que não?

 

Já em “Nijinsky”, a cenografia, a ilumi­nação e a música fun­cionam mais do que elementos de apoio – elas dialogam o tem­po todo com Luís Melo, dirigido pela dupla Rosella Terra­nova e Ciáudia Scha­pira.

 

O monólogo é baseado nos cadernos que o bailarino russo escreveu compulsivamente, por volta dos 29 anos, antes de ser internado na “ca­sa de loucos”, como diz o texto. Não é propriamente uma biografia (pinçela o relacionamento com a mu­lher, o rompimento com Di­aghilev, seu professor).

 

“Nijinsky” expõe o ho­mem por trás do mito, a lou­cura sã por trás da fachada de “bobo da corte” que o perso­nagem assumiu para como que despistar os desafetos burgueses do início do sécu­lo. Um Van Gogh, um Arthur Bispo do Rosário.

 

Impossível não enxergar na interpretação de Melo os resquícios da fase com Antu­nes Filho. Está lá impregna­do, por exemplo, um ensan­decido Macbeth. O ator en­contra no seu Nijinsky terreno propício para uma expressão corporal mais acu­rada afinal, estamos falando de um dos gênios da dança mundial.

 

É assim que Melo vai pre­enchendo todo o espaço do palco, se enlaçando nos pa­nos do cenário, saltitando nos quatro cantos, sempre no li­mite da consciência que precede a loucura. Ao contrário da imobilidade e parcimônia de “Sonata Kreutzer”, pulsa aqui o devaneio, o instinto, a porção anima que referenda Kazuo Ohno – não à toa, ele surge com um vestido renda­do que remete ao dançarino japonês na célebre coreogra­fia “La Argentina”. Enfim, um Melo como nos bons tempos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 15 de março de 1998.   Caderno A – 4

Ator atinge limite da inconsciência e ainda faz rir no drama “Diário de Um Louco”, de Gogol

VALMIR SANTOS

São Paulo O “laboratório”, como é definido no meio teatral o período em que o ator sai à cata de conteúdos internos e externos para compor seu personagem, não raras vezes proporciona bons momentos no palco. Nesse exercício de decantação, é im­perativo sondar os confins da alm­a, peregrinar por caminhos d’antes não percorridos, trazer à superfície da consciência – ou não – a emoção em seu estado bruto. Considerando a interpretação de Diogo Vilela em “Diá­rio de Um Louco”, sua viagem pessoal foi de uma riqueza tre­menda. Única, intransferível, trata-se de uma dádiva dos deu­ses do teatro, reservada àqueles jque se atiram sem rede na fase de pré-montagem.

Na pesquisa sobre o personagem do conto do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1952), Vilela foi visitar manicômios. Sentiu na pele a lida de seres hu­manos com a irrealidade cotidi­ana. Numa entrevista recente, a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, se questionava: “Quem sabe o que acontece no imenso mar do inconsciente? Quem dizer que sabe, este sim é louco”. Pois Vilela chegou bem perto na busca da insanidade e do carisma de Popritchitchine um funcionário público do século passado, angustiado numa repartição kafki­ana.

Em suas anotações, o sujeito, vai relatando as mazelas do seu chefe, que goza do poder. Popritchtchine queria ser um gene­ral, um governador, um inten­dente, quem sabe. Mas não. Está ali, metido na “fauna de buro­cráticos fétidos”, como ele define os coleguinhas de repartição.

Não bastasse a submissão social, o personagem amarga um amor platônico pela filha do chefe. O sentimento é tão desconcertante que o leva a estabelecer uma relação afetuosa com o cachorrinho da moça. Sem título de nobreza, sem dinheiro, só lhe resta o diálogo imaginá­rio com o cachorrinho para quem declara seu amor incondi­cional por Sofia.

A solidão com o papel, no qual “deita sua pena”, culmina com sua elevação a rei da espanha. A despeito da autoproclamação, em que sobe na mesa do escritório e encara os demais como seus súditos, Popritchit­chine é encaminhado para um manicômio. Aos poucos, o grau de esquizofrenia é proporcional ao seu estado de consciência.

Preso à camisa-de-força, a­quele mero empregado, ainda assim, traduz a surra nas costas, com pauladas, como se fosse ação de um inquisidor. Nem a crua dor de um bastão o demove da liberdade imaginária.

Diogo Vilela perpassa a via crúcis de Popritchitchine expon­do a leveza e agudeza com que a loucura dota os visionários. Cita-se Van Gogh ou Artaud, por exemplo. Aliás, paira em “Diário de um Louco” o espectro do monólogo histórico de Rubens Corrêa, já falecido, para o francês que deu à luz o “teatro da crueldade”. Não se compa­ram, mas se ligam pelo tema.

Entre a dor da impossibilida­de humana diante de algumas forças da vida, e a dor do grito infinito da alma, Vilela não su­cumbe ao drama total. Há bre­chas para o humor e ele aprovei­ta muito bem esses momentos. Como nas confissões entre o personagem e o “sr.” cachorrinho.
 ­

Mas o Gogol que surge aqui não é o mesmo da comédia po­lítica (pós-revoluçãO russa) “O Inspetor Geral” (1936), sua o­bra-prima, escrita quatro anos antes de “Diário de Um Louco”. Este é um texto perturbador. E um espetáculo tanto quanto.

Adornado pela coroa de gar­fos, uma referência ao artista plástico Arthur Bispo do Rosá­rio, outro que transcendeu à lou­cura, Diogo Vilela constrói ges­tos e movimentos dissociados de seus trabalhos anteriores – notadamente “Solidão, a Comé­dia”.

Seu suporte está no olhar, no corpo que ocupa o espaço cênico dilatando a sua expressão. Parece olhar a loucura nos o­lhos. Neste monólogo, compete a ele, ator, dar conta também dos desenhos físico e orgânico projetados pelo texto. “Enxer­gamos” o cachorrinho ao seu la­do, sim, quando ele fica de qua­tro e estabelece uma “conversa” de igual para igual. O cenário subjetivo e extemporâneo de Beli Araújo também não faz su­gestão ao escritório, estimulan­do o leque imaginário.

O diretor Marcus Alvisi não dilui a dureza do drama e tam­pouco o florea. Como Diogo Vi­lela é um ator com forte apelo cômico, a montagem não des­prezou esse quinhão. Entre as concessões, de um lado e de ou­tro, o resultado é um monólogo que consegue dar seu recado po­ético, sem o cerco literário.

No silêncio introspectivo da platéia, magnetizada pela pre­sença de Vilela/Popritchitchine, conduzida ainda por uma trilha musical fabulosa (Tchaikovsky, Bruck), enfim, a cena compartilha também se reveste de um pouco da experiência que o ator viveu antes de chegar ao seu per­sonagem. Em pouco mais de uma hora, somos atingidos pelos devaneios daquele funcionário que ousou ir além numa socieda­de de parasitas. É atordoante.

 

Diário de um Louco – De Nikolai Gogol. Tradução: Luis de Lima. Dramaturg: Robert de Cleto. Direção: Marcus Alvisi. Com Diogo Vilela. Figurinos: Kalma Martinho. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel.258-3616). R$ 25,00 e R$ 30,00 (sábado). Duração: 70 minutos.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 08 de março de 1998.   Caderno A – 4

Texto de Juca de Oliveira traz ele e Fúlvio Stefanini em cena, sob direção de Fauzi Arap

VALMIR SANTOS

São Paulo – Espanta a ava­lanche de denúncias es­tampadas ultimamente em manchetes. São proporcionais à impunidade. O Brasil está repleto de casos in­solúveis – de Brasília aos “bra­sis”. Essa overdose de falcatru­as poderia até depor contra a pe­ça “Caixa 2”. Por um momento, o espectador, entuchado da rea­lidade política, não agüenta mais falar de Collor, CPI dos precatórios, enfim, dessa ciran­da que não dá em nada. Mas es­tamos numa comédia de Juca de Oliveira, com um bom elenco, estrelado pelo próprio e por Fúl­vio Stefanini e Cláudia Mello. E aí, não tem jeito: o talento reina absoluto.

Juca de Oliveira foi buscar em outra peça sua, “Motel Para­diso”, nos anos 80, a inspiração para retomar a comédia de fun­do político-social. Espécie de raio-X do País, “Caixa 2” vai a­lém da perspectiva história em que vivemos. Oliveira constrói personagens que têm carisma, densidade psicológica, se sus­tentam por si só. A despeito da concretude dos mecanismos bancários, financeiros, a peça diz a que veio com os sonhos frustrados, os ideais vendidos, a sem-cerimônia de quem dá as cartas no jogo do poder.

O empresário Luiz Fernando (Juca de Oliveira) e o gerente Roberto (Fulvio Stefanini) possuem caráter distintos. O pri­meiro é movido pelo vil metal. Pouco lhe importa o outro. Quer o lucro, a vantagem a qualquer custo. Roberto, não. Ele acredi­ta na dignidade do trabaiho, ves­te a camisa da empresa, faz o seu arroz-com-feijão e se dá por feliz – até ser despedido depois de 22 anos de suor.

Nessa gangorra entre bem e mal, “Caixa 2” perfila, aos pou­cos, os demais tipos da história. Cláudia Mello é a mulher de Roberto. Aliás, é a “mulher” da peça. Cabe a ela furar o blo­queio masculino do mundo dos negócios e ditar as regras – O dinheiro é meu!”, brada a certa altura. Depois vem o seu filho (Petrônio Gontijo), que também joga no seu time para driblar os vilões. E tem ainda o assessor não menos inescrupuloso do empresário (Cassiano Ricardo) e a secretária do patrão (Suzy Rêgo).

O corre-corre é por conta dos R$ 10 milhões que o empre­sário captou em suas negociatas (o manjado caixa dois). Para se desviar dos olhos da Justiça, ele deposita o dinheiro na conta da sua secretária, depois de tam­bém lhe prometer algum. O azar é que o dinheiro vai parar na conta corrente negativa da mu­lher de Roberto, então despedi­do pelo mesmo Luiz Fernando.

Na tentativa de reaver sua pequena fortuna, o empresário tenta subornar Deus e o mundo. Mas a família de Roberto, tipo classe média baixa, não arreda pé. Só devolve o dinheiro se o ex-patrão deixar pelo menos 40%. Como pano de fundo, sur­gem os pequenos dramas pesso­ais.

É uma comédia de atores. Fulvio Stefanini faz um Roberto típico das comédias italianas -felliniano até. Já virou marco da temporada a cena em que o per­sonagem refastela-se na poltro­na e, ainda assim, sem ação al­guma, sem dar um pio, faz a pla­téia gargalhar. Sua expressão sempre dissimulada, como se a história não fosse com ele, lhe garante a empatia.

O empresário de Juca de Oliveira também é de um sarcasmo atroz com suas sentenças lapidares, tais como: “Se a Justiça não autorizar a minha candida­tura, só me restam a Casa Branca ou a casa de Collor em Miami” e “Ninguém vai preso neste País por dinheiro”. É histriônico na medida certa.

Comediante nata, Cláudia Mello desfila à vontade no palco. Vai à forra na condução dos seus homens – marido e filho. Petrônio Gontijo, Suzy Rêgo e ­Cassiano Ricardo completam um time coeso, onde todos têm espaço para fazer valer seu dote de bom intérprete.

E são eles, os atores, que o di­retor Fauzi Arap mais uma vez privilegia em cena. Em cartaz também com “Santidade”, ele tem pleno domínio ao tratar o drama ou a comédia com isenção incomum. Arap tem o mérito de diluir a figura do diretor, de se “esconder” no palco, para deixar vir à luz o teatro em sua essência. É uma virtude dos grandes homens do teatro.

Mais simples e funcionais ainda, em se tratando de um es­petáculo nos moldes do chamado “teatrão”, são os cenários e os figurinos de Márcio Medina. A cenografia, junto com a iluminação de Laura Figueiredo e Arap solucionam o espaço cênico – a divisão do escritório e da casa – com um tratamento perfeito. Não há o blecaute constante, mas uma exigente e perfeita simultaneidade de cena.

Na sua perspectiva às vezes ingênua, às vezes contundente, sem nunca perder o fio do hu­mor desbragado, sem culpa e sem medo de ser feliz, cutucan­do os donos do poder que cons­troem prédios como castelo de areia. “Caixa 2” resulta num dos melhores momentos da comédia brasileira nos anos 90.

Caixa 2 – De Juca de Oliveira. Direação: Fauzi Arap. Com Oliveira, Fulvio Stefanini, Suzy Rêgo, Cassiano Ricardo, Petrônio Gontijo e Cláudia Mello. Quinta, 21h; sexta, 21h30; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433 ou 607-3364). R$ 20,00 (quinta), R$ 25,00 (sexta e domingo) e R$ 30,00 (sábado). Duração: 90 minutos. Temporada por tempo indeterminado.

 

“Espumas Flutuantes” voa, mas não consegue achar equilíbrio

São Paulo – O retrato de Castro Alves, quando jo­vem, lembra o de Oscar Wil­de. Mas as semelhanças po­dem ser mais profundas. Tal qual o dândi inglês, o escritor baiano também fez da sua e­xistência uma eferveção poéti­ca literal. Suas inquietações estimularam muitos corações e mentes – da época e de hoje. O musical “Espumas Flutuan­tes – O Vôo do Gênio” vai de encontro ao espírito libertário desse homem que viveu no sé­culo passado e continua fazen­do suas palavras se apodera­rem dos nossos sentidos com intensidade incomum.

Musical talvez não seja a definição correta. Um reci­tal, quem sabe. O certo é que a montagem moldura o verbo com tanto esmero que a poe­sia de Castro Alves chega es­talando, fluindo na boca e nos corpos libidinosos do e­lenco. O lirismo é tocante.

Francamente aberto à infini­ta contribuição das sensaçõ­es humanas – leia-se Dioní­sio até à medula -, o espetá­culo é visionário na medida em que pode. Ou seja, trans­cendendo aos limites do pal­co e, paradoxalmente, se perdendo nas várias possibilida­des que isso implica.

Os 13 poemas extraídos do único livro publicado em vida, “Espumas Flutuantes”, são cantados e interpretados com pungência. Há momentos bri­lhantes, como nas cenas inici­ais, quando o elenco é um car­dume em dispersão, uniformi­zando seus contrastes, jogando com o público, incitado-o a di­gerir a poesia como se fosse o mel que desce macio pela gar­ganta.

Mas o espetáculo desanda depois. Estreou sem estar pron­to. Falta-lhe o ritmo. Os altos e baixos ainda são gritantes, in­clusive entre os atores. Escorre­gões na fala, na sonoplastia, na iluminação, enfim, minam aos poucos a beleza cênica que se tenta construir.

A vantagem do ator e diretor Pascoal da Conceição, presença ativa nas peças de José Celso Martinez e seu grupo Uzyna U­zona, é de que “Espumas Flutu­antes”, o espetáculo, já encon­trou sua razão de ser. A narrati­va que entremea dramatizações, por exemplo, funciona sem ne­nhum prejuízo. Ao contrário, os quadros seguem uma coerência autobiográfica.

Há a liberdade para o vôo, que passa pela percussão musical (Luiz Gayotto), em simbiose com os objetos de cena – e de platéia -; passa pelos figurinos criativos e bem desenhados (Val Barreto); passa pela evocação feminina de Elis e Janis (aliás, ressalta-se a força conjunta das sete mulheres do elen­co); passa pela celebração do espaço e do corpo que nele atua. O rito está garantido. E, com ele, a poesia das pala­vras, que insistem: “Como um pássaro, o coração do morto volta para o ninho”.

O problema da montagem é de ordem puramente técni­ca. De outro modo, é difícil entender por quê tanta ener­gia é empregada em vão. Já que se chegou à cristalização dramática da poesia de Cas­tro Alves, seria o caso de se voltar, agora, para as arestas que estão aí, por vezes ex­postas grosseiramente. Às vezes, é preciso ter os pés no chão para voar. 

 

Espumas Flutuantes – De Castro Alves. Roteiro e direção: Pascoal da Conceição. Com Monica Henriques, Dulcinéia Dibo, Vanessa Frigo, Daniela Jaime-Smith, Lucia Helena Gayotto, Fabiana Serroni, Ronaldo Silva e Paula Kill. Terças, 20h30. Teatro Bibi Ferreira (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 931, Bela Vista, tel. 605-3129). R$ 25,00. Duração: 80 minutos. Até maio.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 22 de fevereiro de 1998.   Caderno A – 4

Livro enfoca carreira do célebre e tímido diretor das históricas montagens de “Hair” e “Marat/Sade”

VALMIR SANTOS

São Paulo – Ele era do tipo que tinha um nó na garganta quando via um ce­nário sendo desmancha­do, ao final de cada temporada. O diretor paulista Ademar Guerra (1933-1993) inscreveu seu nome na história do teatro brasileiro com paixão inco­mum.
Montagens como “Marat/Sade” (1967) e o musical “Hair” (1969) marcaram pela disciplina ferrenha e despreten­ção estética. O ator era alicerce de tudo e a ele Guerra devotava sua arte. O perfil instrospectivo, pouco chegado aos holofotes, o deixou como que à margem da geração seminal de diretores brasileiros, como Antunes, Bo­al, Zé Celso, Abujamra, Haddad etc. Quando o incenso é muito, o santo desconfia – bem que a máxima caberia nos 59 anos vi­vidos por Guerra.

O livro “Ademar Guerra: O Teatro de Um Homem Só”, do jornalista Oswaldo Mendes (Editora Senac), descortina toda a trajetória do diretor – desde a a­tuação como assistente de Antunes Filho, nos anos 50, até o seu último espetáculo, “O Vampiro e a Polaquinha”, que estreou em 1992, um ano antes de sua mor­te. E vem preencher, também, uma lacuna para as novas gera­ções, carentes de informações sobre o passado do teatro no País.

Não se trata propriamente de uma biografia. Quando muito, toca na forte ligação com a mãe. Mendes, amigo e parceiro em muitos trabalhos de Guerra, res­gata a memória do diretor atra­vés de depoimentos colhidos do próprio e dos inúmeros profissi­onais que conviveram com ele. Mendes ousa colocar o texto na primeira pessoa, demonstrando o grau de intimidade com o encenador, resultando numa nar­rativa póstuma. Essa ressuscita­ção, por assim dizer, recupera oralidade coloquial de Guerra e o aproxima ainda mais do presen­te.

Entre suas montagens histó­ricas, estão os musicais “Oh! Que Delícia de Guerra” (1966) e “Hair”, dois textos estrangei­ros que lhe valeram patrulha­mento à época, acusado de alie­nação política. Na opinião de Guerra, o bom texto era aquele que embutia um olhar universal. Capaz, por exemplo, de catali­sar a atenção do público brasi­leiro para a guerra do Vietnã (caso de “Hair”), independente da contextualização. Ele provou essa espécie de globalização de problemas e virtudes humanas muito antes de “Angels in America”, de Tony Kushner, nestes anos 90.

O formato editorial de “O Teatro de Um Homem Só” é cu­rioso. Nas pági­nas ímpares, Mendes segue contando a luta de Guerra para levar suas idéias adiante; as frus­trações com al­guns colegas; en­fim, a projeção afetiva com a qual o diretor fi­cou conhecido na classe teatral. Já nas páginas pa­res, o livro repro­duz depoimentos não menos passionais, de críticos, jornalis­tas e amigos de Guerra (Décio de Almeida Prado, Alberto Guzik, Jefferson del Rios, Bárbara Heliodora, Mári­ka Gidali, Maria Bonomi, Aracy Balabanian, Renata Pallotini etc).

É importante lembrar que A­demar Guerra trascendeu às fronteiras do teatro e também flertou com a dança e a música. Respondeu pelo roteiro de algu­mas coreografias do grupo Sta­gium, como “Quebradas do Mundaréu” (1975) – adaptação de “Navalha na Carne”, de Plí­nio Marcos – e “Paulistânias” (1994). Assinou ainda a direção de um dos shows mais impor­tantes da carreira de Elis Regi-na, “Saudade do Brasil” (1980). Aliás, no final do livro, ele se encontra coma cantora no céu, concessão um tanto permissiva de Mendes.

Didático sem ser enfadonho, “O Teatro de Um Homem Só” é um livro de memória fresca que, não fosse por ele, o livro, estaria mofando úa cuca de muitos que compartilharam da presença cativante de Guerra. Explorando, sem medo, a veia afetiva do “biografado”, dando voz a pessoas não menos especiais, ilustrando boa parte dos espetáculos dirigi­dos por Guerra, enfim, Mendes deu seu recado com um belo projeto.

Ademar Guerra – O Teatro de um Homem Só – De Oswaldo Mendes. Editora Senac (rua Dr. Vila Nova, 228, 4º andar, Consolação, tel. 236-2135). Preço médio: R$ 28,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 15 de fevereiro de 1998.   Caderno A – 4

Autor de “Vidros Partidos” expia inferno de casal na montagem de atuações tocantes

VALMIR SANTOS

São Paulo – Além do ata­que veemente ao regime nazista alemão, o drama­turgo norte-americano Arthur Miller, 82 anos, transfor­ma “Vidros Partidos” em um divã para a psicanálise. Situan­do a história da peça na Nova York de 1938, um ano antes da morte de Sigmund Freud, o au­tor deu contornos psicológicos tão fortes aos personagens do triângulo principal da história, que é impossível sair do teatro sem compartilhar de tanta an­gústia.

A relação do casal Philip Gellburg (Francarlos Reis) e Sylvia (Minam Mehler) é pura neurose. Ela está acomodada numa cadeira de rodas, vítima de uma “paralisia histérica”, co­mo diagnostica o médico e du­blê de psicólogo Herry Hyman (Luiz Serra).

Num primeiro momento, Sylvia atribui seu transtorno pessoal às notícias de guerra que chegam do outro lado do o­ceano. Como ela e o marido são judeus, se condói pelo massacre da etnia pelos carrascos de Hi­tler. Aos poucos, porém, o que se descortina são as mazelas de um casamento que agoniza há mais de 20 anos, desde o nascimento do único filho, hoje capi­tão das forças armadas dos Esta­dos Unidos e atuando no front.

Enfim, são personagens de perfis desafiadores. Felizmente, a montagem de “Vidros Parti­dos”, em cena no Teatro Cultura Inglesa desde a semana passada, conta com a presença tocante de dois grandes atores em cena.

Francarlos Reis catalisa atenção com seu Philip turrão, obsessivo com os negócios, cor­po sempre tenso, arqueado, do­no de um olhar que é esbugalha­do, de vigília, mas também é de peixe morto. O martírio de dar expediente como judeu 24 horas por dia, a âncora da culpa, o desconcerto da impotência sexual – Francarlos transmite a essência desse personagem que carrega sobre as costas todo o peso das obrigações que o mundo ociden­tal impõe sobre a masculinidade

– o mito do herói faz-tudo, pron­to para embarcar para a guerra.

Contundente é também a in­terpretação de Miriam Mehler. Sylvia é uma mulher de brio, mas que abdicou da vida e se a­nulou bastante em função do ca­samento. Ao sublimar o genocí­dio dos judeus, se apegando ao fio universal da história viva da humanidade, ela acaba somati­zando seu inferno na paralisia.

Nas cenas em que é impingida a voltar a andar, seja no aco­lhimento (leia-se calor humano) do médico, seja no embate com o marido, Miriam Mehler é puro arrebatamento. Ao exteriorizar a raiva de Sylvia, ao mesmo tempo em que a personagem re­encontra sua força interior, a atriz vai ao limite do drama e ex­põe ali, atirada ao chão ou fragi­lizada na cadeira de rodas, o ta­lento que cristaliza os 40 anos de carreira.

O diretor Iacov Hillel (“An­gels in America”), de descen­dência judia, soube equilibrar a­qui as duas vertentes temáticas de Arthur Miller (anti-nazismo, pró-psicologia). Para tanto, con­tou com um elenco que é a subs­tância da montagem.

Soma-se ao brilho de Fran­carlos Reis e Miriam Mehler a entrega de Luiz Serra em cena, como o médico e vértice do tri­ângulo, responsável pelos lam­pejos que iluminam a consciên­cia do casal – ainda que Miller não seja nenhum pouco conces­sivo no desfecho da peça. Miri­am Lins e Tuna Dwek cumprem bem as funções de válvula de escape para o quinhão de humor num drama psicológico que pe­de o envolvimento do especta­dor a todo instante. Denis Victo­razo, por fim, completa o elenco com tranquilidade.

Com “Vidros Partidos”, sua peça mais recente, Arthur Miller estilhaça as histórias univer­sal e pessoal, refletindo até que ponto este cruzamento afeta a todos. Para o bem e para o mal.

Vidros Partidos – De Arthur Miller. Direção: Iacov Hillel. Quinta e sexta, 29h30; sábado, 19h30; domingo, 19h. Teatro Cultural Inglesa (rua Deputado Lacerda Franco, 333, Pinheiros, tel. 814-0100). R$ 10,00. Até dia 28 de fevereiro.

 

“Entrevista” tem síntese de texto e interpretação

São Paulo – Foram apenas sete sessões no Sesc Pom­péia, no período de 4 a 8 deste mês. Mas “Entrevista” merece uma longa temporada. O texto de Fernando Moreira Salles é uma instigante discus­são sobre dois aspectos antigos e, ao mesmo tempo, extrema­mente atuais da humanidade: o amor e a criação.

Contextualizando para a nossa época, a peça enfoca o en­contro de um homem e uma mu­lher separados dois anos atrás, sabe-se lá porquê. É a chance de Paulo, dramaturgo, e Marta, jor­nalista e crítica teatral, coloca­rem os pontos nos “is”.

A formalidade de uma entre­vista, onde se extrai informaçõ­es da fonte, descamba para a pessoalidade das lembranças. O passado ainda fresco no olhar, no toque, no desdém de um pelo outro.

Paulo estava pronto para o a­taque. Afinal, a despedida foi tão banal. Estavam em Veneza, cobrindo o festival internacio­nal de teatro, quando ela sim­plesmente escreveu um bilhete sucinto, dizendo que partiria as­sim, de chofre, para nunca mais dar o ar da graça.

As explicações passionais, recheadas de ironia, são interca­ladas por um exercício de metalinguagem que coloca em cheque sobretudo o teatro. Crítica e dramaturgo vão desde a busca do outro em Beckett, pas­sando por “esse teatri­nho feito de anaboli­zantes” até a franca re­taliação com a cultura da TV e seu nivelamento por baixo.

Finalmente, no seu depoimento aberta­mente sentimental, Marta explica as razões do coração que a levaram a deixar o companheiro. A bucó­lica imagem dele tomando ba­nho de mar em Veneza serviu-lhe de mola propulsora. Todo a­quele desalento demonstrou, enfim, que a incomunicabilida­de do casal era inevitável. Esta consciência, ainda que subjeti­va, motivou sua partida.

Dirigidos por Maria Lúcia Pereira, profunda conhecedora da arte do ator, Sérgio Mastro­pasqua (Paulo) e Élida Marques (Marta) têm uma atuação conci­sa, econômica nos gestos, movimentos. Há uma nítida valori­zação do verbo na montagem, como requer o texto e a curta duração do espetáculo (menos de uma hora). Warde Marx, co­mo o amigo comum do casal (Mário), testemunha ocular e si­lenciosa, cumpre seu papel sem comprometimento.

“Entrevista” tem, ainda, o mérito de trazer o diretor da Companhia das Letras, em seus primeiros passos, para o circui­to da dramaturgia brasileira. Salles demonstra conhecimento do ofício e não se aventura por causa pequena.
 

“Irmãs do Tempo” tira bruxas do estereótipo

 

São Paulo – Como o dra­maturgo inglês Tom Stop­pard, 60 anos, que pinçou os traiçoeiros de Hamlet da con­dição de personagens coadju­vantes para lhes dar vida em “Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos” (1966), a peça “Irmãs do Tempo” reporta às bruxas não menos shakespeari­anas que previram a ascensão e queda de Macbeth.

Os autores Cláudia Vascon­cellos e Marco Aurélio Pais es­creveram o texto mergulhando nos arquétipos das bruxas, para depois liberá-las dos estereóti­pos e desaguar numa pesquisa cênica de fôlego das intérpretes Raquel Ornellas e Neca Zaryos.

Tomando como base as ir­mãs Weird de “Macbeth”, as a­trizes desenvolveram uma atua­ção que prioriza o trabalho cor­poral. Dos gestos aos movimen­tos, passando pela extensão da voz e suas variantes onomato­paicas, ambas reinventam as no­ções de tempo, espaço e ação, transformando o palco em terri­tório livre para a imersão imagi­nária da caixa preta.

Com recursos que se aproxi­mam da linguagem do clown e passam necessariamente pela contato-improvisação, elemento recorrente da dança-teatro con­temporânea, Raquel e Neca se entregam à atuação prestando atenção aos mínimos detalhes. Apesar da formação acadêmica inerente das duas atrizes – a montagem é fruto de pesquisa de mestrado no Departamento de Artes Cênicas da USP -, fe­lizmente “Irmãs do Tempo” é despida de hermetismos afins.

Aqui, importa o jogo cênico entre Raquel e Neca, as nuanças que estabelecem a cada momento do espetáculo. Elas estão em cena por completo, interagem com os objetos cênicos, com os figurinos, adereços, de modo que “recriar” e o verbo que me­lhor define suas performances.

É engenhosa e instigante a forma como a interpretação e o texto se equilibram entre o hor­ror sangüinárío da história de Macbeth e a dimensão lúdica das histórias infantis. Assim, Rapunzel e Lady Macbeth sur­gem com o assombro e o onírico que lhes cabem – fio às vezes imperceptível.

Da temporada de estréia, no ano passado, para a reestréia a­gora, com sessões no Teatro Brincante, “Irmãs do Tempo” a­vançou bastante na sua comuni­cação com o público. Alcança síntese até quando cruza as bar­baridades da Inquisição com o episódio do índio pataxó quei­mado em Brasília.

O ex-secretário de Cultura em Mogi, Armando Sérgio da Silva, que dirigiu a peça na pri­meira fase, desta vez divide a di­reção com Regina Mendes, pro­fessora, dona de formação so­bretudo na dança. Daí a influên­cia na afinidade corporal.

A cenografia de Renato Cymbalista e Eduardo Canella corresponde à atmosfera sugerida pelo texto – os galhos suspen­sos contrastam com a moderni­dade high-tech. Também os fi­gurinos assinados por Christiane Gauche emprestam atemporali­dade às personagens ora capetas, ora anjos de ocasião. Bem e mal, outro diapasão para a monta­gem.

Nesta viagem – simbolica­mente, o espetáculo abre e fecha com um belo “barco” sugerido pelos corpos e vozes de Neca e Raquel -, o espectador tem a chance de penetrar o universo da bruxaria com introspecção e en­tretenimento garantidos. “Irmãs do Tempo” consegue ser experimental e acessível na medida certa. Sem concessão, sem redo­ma. Mas com leveza e muita in­ventividade. 

Irmãs do Tempo – De Cláudia Vasconcellos e Marco Aurélio Pais. Direção: Armando Sérgio da Silva e Regina Mendes. Com Raquel Ornellas e Neca Zarvos. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 1º de março.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 18 de janeiro de 1998.   Caderno A – 4

“Vida e Arte” traz memórias da atriz que debutou aos 47 anos e completa 87 em fevereiro 

VALMIR SANTOS

São Paulo – Você – permita-me dispensar o tratamento de se­nhora – descortina o passado com a matu­ridade que só o tempo vivido em sua plenitude pode dotar os seres humanos especi­ais. Embarcar na leitura de “Vi­da e Arte – Memórias de Lélia Abramo” é compartilhar conti­go, ao pé do ouvido, o curso de urna vida pautada pela forma­ção humanista, pela luta política e pelo ofício de atriz exercido nos palcos, na televisão no cine­ma.

Um casamento assim, em que a transcendência artística e a preocupação com o próximo se harmonizam, só pôde ser conquistado graças à coerência e perseverança da sua alma. Nascida no berço dos Abramos, você foi apresentada à literatu­ra, ao teatro, às artes, enfim, por obra dos pais, dona Yole e seu Vicente, eixos de uma família de imigrantes italianos, que chegaram ao Brasil em 1892.

Quinta da fieira de sete ir­mãos, você também manteve com eles uma relação de ternu­ra, de laços de cumplicidade que derrubavam distâncias con­tinentais. Ângela Maria, a Nenê, foi a meia-irmã e, claro, não menos querida que os demais, pois filha do primeiro casamen­to do seu pai, que ficou viúvo e conheceu sua mãe.

Lívio, o primogênito, acen­tuou a vocação de desenhista e artista plástico. Athos caminhou para o jornalismo e se especializou na crítica teatral. Beatriz foi a irmã com quem esteve mais próxima, compartilhando inclusive  os difíceis 12 anos de residência na Itália, em pleno espocar da Segunda Guerra Mundial, experiência que lhe deixaria sequelas para todo o sempre.

Fúlvio, o quinto mano, engajou-se na luta política, especificamente comunista, num Brasil dos anos 30 que passava pelo crivo ditatorial de Vargas. Mário, que  preenchia a casa com sua bondade e delicadeza, “desapareceu” aos 41 anos – sim, porque na sua família ninguém morre ou falece, mas desaparece. Ele estava fazendo um piquenique à margem de um então límpido Rio Tietê, quando foi passear de barco, este virou e o levou, afogado.

Cláudio, o caçula, tornou-se um dos principais nomes da história do jornalismo brasileiro, chegando a dirigir a redação da Folha de S. Paulo e sedimentar uma “escola” que faz eco em todos os jornais do País. O livro “A Regra do Jogo” (1988), escrito pelo filho, Cláudio Weber Abramo, conta sua trajetória e serve de parâmetro para os jo­vens que sonham merguhar na profissão.

No meio dos sete, você, Lé­lia, era o “abajurzinho” da farní­lia, como a defendeu carinhosamente o irmão Athos. Você divi­diu tristezas e alegrias com to­dos; aprendeu, ensinou. Hoje, prestes a completar 87 anos, mês que vem, você se vê sozi­nha no mundo. Foram-se os pais, os seis irmãos, sozinha, entre aspas, porque o destino lhe reservou um afeto de amizade, em várias frentes, que sedimentou seu caminho até aqui.

Lélia, são tocantes os relatos sobre a busca amorosa. Você, trotskista, namorou um militante leninista. Deixou-se levar pelo coração, escanteando um pouco a razão ideológica daqueles verdes anos de vida. Apaixonou-se pelo rapaz de inúmeras virtudes e um vício frenético: mulherengo à beça. Você, tão aguerrida, quem diria, fez vistas grossas, humana que é, porque as razões do coração pertencem a outra instância, sabe lá Deus qual. “Não sei se foi orgulho ou amor demais”, pondera em suas memórias.

Conviver com a solidão foi como que um estigma em todos esses anos. Por conta da incompetência assombrosa de um médico italiano, você deitou numa mesa de operação, em Roma, para extrair o ovário esquerdo, mas o desastroso cirurgião extirpou-lhe justamente o ovário sadio. “Além disso, ‘alguém’ esqueceu de suturar um vaso, provocando um choque hemorrágico pós-operatório, percebi­do tardiamente quando meu es­tado já era desesperador”, relembra. Foi um episódio, como muitos outros, que a marcaram para sempre. Este, em particular, tirou-lhe o direito de gerar um filho.

Ninguém passa incólume aos anos de guerra. Sua estadia na Itália, entre 1938 e 1950, veio confirmar ainda mais sua veia humanista. Testemunhar, in toco, os desvarios de Hitler na Segunda Guerra fez de você uma mulher antenada com as causas sociais – nem que isso lhe demandasse duas pátrias. Não foi à toa que você levou a bandeira da profissionalização do ator brasileiro à frente do Sindicato dos Artistas, em São Paulo.

Seu envolvimento com o movimento sindical chegou ao poto de testemunhar o lançamento do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 80, consequência das greves que mobilizaram os operários do ABC em 1979. Você serviu como interlocutora para convencer o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, a tomar a dianteira naquela semente do PT. Poucos anos depois, você viria a trabalhar na gestão de outra mulher de força incomum, a ex-prefeita Luiza Erundina, canalizando sua energia teatral para projetos comunitários.

Ah, sim, a atriz. A maturidade, mais uma vez, se fez presente no início da carreira. Você só foi subir ao palco profissionalmente aos 47 anos, interpretando, sintomaticamente, a operária Romana de “Eles Não Usam Black-Tie” (1958), peça que Gianfrancesco Guarnieri escre­veu em sua juventude. Cinco anos depois, você tremia no palco em “Os Ossos do Barão”, de Jorde Andrade, quando notou que o grande ator italiano Vitto­rio Gassmann estava sentado na platéia.

No dia do golpe de 64, lº de abril, você ensaiava “Vereda da Salvação”, também de Andrade. Antunes Filho, em seus primei­ros passos de diretor, decidiu suspender os ensaios, A montagem chegou a cumpnr uma curta temporada no TBC. Você interpretava Durvalina no palco,       mas na versão da peça para o cinema, naquele mesmo ano, sob direção de Anselmo Duarte, você foi escalada para fazer Dolores, uma mãe arrebatadora.

Sua experiência com a televisão nunca foi uma maravilha. Dona de uma consciência social contumaz, era difícil se eximir de crítica ao veículo. Sobretudo à toda poderosa Rede Globo, surgida na esteira do regime mi­litar. Sua saída da emissora, como descreve, é a melhor prova desse confronto intelectual em que os interesses humanos e os capitais se chocam. Participavas da novela “Pai Herói” (1979), dirigida por Gonzaga Blota, quando sua personagem, Dona Januária, “morreu” subtamente e você foi parar no olho da rua, ficando desempregada.

Perseguida pelas armadilhas do destino ou pelas injustiças, você nunca se esquivou de enfrentá-las. Foram tantos os obs­táculos, de toda ordem, que é de admirar a força com que você chega até nós para rememorar as lembranças, força-motriz de qualquer história pessoal. “Mas a vida sempre nos prepara situações inesperadas e às vezes dolorosas que não podemos alterar ou impedir – só nos resta ter paciência, suportar e sofrer”, ensi­   na você, escolada na arte do bom senso.

Lançamento conjunto da E­ditora Fundação Perseu Abramo e Editora da Unicamp, com um alentado material ilustrativo, “Vida e Arte” é calcado nas reminiscências, com precisão de detalhes como o pôr-do-sol e a tonalidade dos céus. Você faz questão de costurar os fatos históricos – realidade que tanto sublimou para compensar as perdas e danos pessoais. Lélia, deambular é teu verbo vitorioso, porque fizestes da solidão um instrumento para se agarrar aos gestos essenciais da vida como ela lhe é. Muitas vezes gestos pequenos e, por isso, gigantes.

 

Vida e Arte – Memória de Lélia Abramo – De Lélia Abramo. Editora Fundação Perseu Abramo tel. 259-8024 e Editora da Unicamp tel. 19-788-2015. 272 páginas. R$ 27,00.

 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 23 de novembro de 1997.   Caderno A – 4

Peça de José Vicente mantém atualidade dos enfoques social e religioso

VALMIR SANTOS

São Paulo – Num primeiro que plano, como quer José Vicente, “Santidade” expõe a vida de michê com a devida mácula cristã. A prostituição masculina está aquém da retidão divina. Mas o autor transcende o tema. A peça também expia a noção de pecado segundo o peso da crença católica. Mais: avança para dentro mas de uma juventude vivida das relações humanas no que elas têm de superfície e essência.

Há 30 anos, quando o então presidente Costa e Silva censurou “Santidade”, em seu ataque de moralidade cívica, ele provavelmente se ateve a algumas frases de impacto que, não necessariamente, refletem o âmago da história. Por exemplo: “O Cristo morreu sufocado; a Igreja matou Cristo!” – é uma das sentenças espulmantes que saem da boca de Arthur, o personagem-vértice da peça. “Eu não acredito em santo sem esperma!”, continua. Mais: “O Deus da juventude está morto!”.

O que José Vicente “pregou” em sua primeira peça, escrita aos 22 anos, era muito mais do que uma pichação à Igreja Cató­lica. Os diálogos entre Arthur, ex-seminarista, e seu irmão Nicolau, na iminência de se tornar padre, constituem o eixo do texto. Arthur e Nicolau, uma corruptela do autor para homenagear o poeta francês Arthur Rimbaud.

Num pequeno apartamento barato do centro de São Paulo, os três personagens despem seus medos, angústias, desejos, iras, virtudes. Arthur vai ao inferno. Como michê, morando com Ivo, ele exorciza os fantasmas de uma juventude vivida em nome de Deus. Quando seu irmão chega, surge então a oportunidade de enfrentamento; de botar para fora o que ficou engasgado na garganta.

Arthur joga no limite da vida. É quem mobiliza os demais. Na interpretação visceral de Mário Bortolotto, o personagem atinge uma dimensão caótica da existência que é traduzida pelo ator em gestos estridentes e movimentos expansivos – como a reivindicar um território maior que o pequeno palco do Crowne Plaza, para efetivamente explodir. É no Arthur de Bertolotto/José Vicente que “Santidade” rouba fôlego do espectador – parece arrancá-lo da cômoda poltrona e jogá-lo ao centro do palco, tamanha é a emoção que pede e dá.

Na sua terna e delicada presença, o Nicolau de Nívio Die­gues é o contraponto perfeito. “A tua inocência me faz mal”, chega a confidenciar Arthur, perplexo com a ingenuidade do irmão, ainda a fugir do sexo e reverbe­rar a utopia cristã. “Ainda tenho medo de possuir meu corpo”, re­signa-se Nicolau. O jovem Die­gues demonstra segurança con­tracenando com dois atores ex­perientes.

O Ivo de Antonio de Andrade quebra a densidade da peça com sua ligeireza. Dono de uma buti­que, sustentando Arthur e agora Nicolau, exerce uma forma de poder que lhe concede companhia na cama. Com Arthur nas mãos, tenta seduzir também o ir­mão, ainda que em vão. Andrade é afeminado sem carregar na afetação; sem camuflar a solidão da qual o personagem também padece.

Montada por Fauzi Arap, co­tado no final dos anos 60 para o papel de Arthur, “Santidade” ganha nesses anos 90 uma aura stanislavikiana que o tempo o­fuscou um pouco. Arap é um excelente diretor de ator. Sabe o que quer. Quando a matéria-pri­ma humana é de bom grado, o resultado é um espetáculo vigo­roso. A imagem é forte: cama e sofá puídos num cenário que se faz preencher sobretudo pela expressão dos atores, marca maior do diretor.

Trinta anos depois, a atuali­dade de “Santidade”, final­mente em cena, é o maior indí­cio do poder de fogo de José Vicente com o teatro (“O As­salto”, “Hoje é Dia de Rock”, etc.). Homenageado recente­mente em “Ventania”, texto de Alcides Nogueira, dirigido por Gabriel Villela, Vicente sai um pouco da reclusão manifesta para compartilhar da revisão histórica que se vê no palco com sua dramaturgia. E esperar agora por “José Vicente – Vir­tuose”, peça inédita que encer­raria o enfoque religioso em seu repertório.

Santidade – De José Vicente. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Clowne Plaza (rua Frei Caneca, 1360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 20,00. Duração: 90 minutos.

 

Mário Bortolotto está em três peças

São Paulo – Mário Bortolotto é um dos fundadores do grupo paranaense Cemitério de Automóveis, criado há 15 anos em Londrina (PR).

No momento, ele está envolvido em três trabalhos na Capital: atua nos espetáculo “Santidade” e em “Medusa de Ray Ban” – nesta, com o grupo paranaense, também é autor e diretor. Já no monólogo “Jordan”, ele dirige Lucimara Martins (leia crítica das montagens Medusa de Ray Ban” e “Jordan” nesta página),que tra o monólogo da americana Anna Reynolds.

 

TRABALHO

No ano passado, Bortolotto esteve em cartaz na Capital com “Leila Baby”, um dos 20 textos que assinou e montou com o Cemitério de Automóveis.

Depois de mudar de Londrina para Curitiba, o grupo está sediado em São Paulo.

“Jordan” instala um silêncio de crua poesia

São Paulo – Qual a gênese de um criminoso? Em que estágio do passado se manifesta o primeiro sinal de que tal ser humano é propenso a matar, roubar? São questões que vêm à baila depois da apresentação de “Jordan”, o monólogo cortante da americana Anna Reynolds, na interpretação su preendentemente segura de Lucimara Martins.

Na base da vida como ela é, temos a história de Shirley Jones, uma interiorana garota inglesa que na década passada se aventurou pela vida com um sujeito que transava com outras mulheres dentro de casa, lhe dava surras e se tornou pai do seu único filho, Jordan.

Quando consegue separar-se do brutamontes, ela vai morar sozinha com Jordan. Sobrevive vendendo seu corpo.

Meses depois, o camarada volta engravatado, garboso, acompanhado da sua nova mulher. Não bastasse ter desgraçado a vida de Shirley, ele agora quer retirar o que lhe é mais precioso: o filho.

Shirley se vê sozinha e incapaz de proteger Jordan do pai maldito e, de quebra, do Estado que também pede a guarda do filho.

Numa certa madrugada, sai a esmo com o bebê, compra uma garrafa de vodca e algumas aspirinas para dor de cabeça.

Volta para casa e, daí em diante, só guarda na memória o fato de ter engasgado ao ingerir comprimidos e bebida. Naquela noite, viria à tona depois, ela asfixiou seu filho com um travesseiro.

Duro, cruel, com um final arrebatador (Shirley se mata no dia em que é absolvida pela justiça), o monólogo vai transcorrendo como um labirinto. Tanta amargura e delicadeza são expressadas no corpo e na palavra da intérprete.

O texto de Anna Reynolds é uma navalha. “É preciso ser bom para ser cruel”, afirma a personagem.

A fábula da princesa que, ao contrário de Shirley, consegue fugir com seu filho, acaba estabelecendo um paralelo contundente.

A atriz preenche o palco com uma movimentação apoiada somente num banco móvel. Lucimara Martins traz à tona a criança e a mulher; a visionária e a      guerreira que cabem dentro de Shirley.

CAMINHO ESTREITO

Quando deixou soprar a vida dentro de si, naquele primeiro passeio de moto com o homem que a jogou no inferno, a personagem real não tinha a mínima idéia de que o “caminho estreito de água até a lua” fosse tão difícil de ser percorrido.

O diretor Mário Bortolotto deixa Lucimara fluindo no espaço cênico com a leveza que o peso de uma existência trágica pode ter. Não há desperdício.

O silêncio e os gestos são trabalhados com coerência. Ce­nografia e figurino, assinados por Fábio Namatame, são acinzentados, sim, mas com um tratamento dramático que leva em conta a poesia do espaço.

A sonoplastia (baladas folk e blues), também de Bortolotto, servem como “blecautes” a cada avanço de tempo do texto e se ajustam à atmosfera algo etérea do espetáculo.

“Jordan” não comporta aplauso esfuziante ao final. Aqui, a realidade dos descaminhos chega em estado bruto. É transe, nó na garganta.

Lucimara Martins nem vem para a boca de cena revelar-se como atriz que é; prefere recolher sua Shirley na penumbra sagrada do teatro a expô-la a mais uma violência – a violência da luz da sociedade. 

Jordan – De Anna Reynolds. Com Lucimara Martins. Direção: Mário Bortolotto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Paulo Emílio (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). Os ingressos custam R$ 12,00. Duração: 50 minutos. Até 14 de dezembro.

“Medusa de Ray Ban” vê do olho do furação

São Paulo – “Medusa de Ray Ban”, a montagem do grupo paranaense Cemité­rio de Automóveis, estiliza a vi­olência banalizada sem derrapar no sensacionalismo fácil ou na caricatura idem, tão comum nos meios de comunicação. O texto de Mário Bortolotto, aqui tam­bém dirigindo e atuando, faz troça das intenções pequeno-burguesas; ri literalmente dos medos de quem é vítima mas, no fundo, conspira para sê-la.

A partir do mito de Medusa, a qual petrifica o olhar, a peça discute a violência contemporâ­nea. Em xeque, a frieza dos as­sassinos de aluguel. Desde o ga­roto que deseja contratar um ca­ra para matar sua mãe, até o cú­mulo de uma entrevista de um assassino num talk-show a la Jô Soares, o humor negro dá o tom.

A crítica ácida deste “wes­tem spaguetti”, como define um dos personagens, apaga qual­quer rastro de esperança cega. “Excesso de amor pode ser mais violento do que um tiro na tes­ta”, observa um rei do gatilho.

Na sua desventura com seres desconectados do meio social, perambulando ao léu pelas ruas da urbe, o dramaturgo Mário Borto­lotto atira pa­ra todos os la­dos (a famí­lia, a televi­são, o ideal romântico etc).

Curiosa­mente, po­rém, não dá um tiro em cena, apesar das armas que aparecem aqui e ali.

À vontade no palco nu e decadente da sala do Teatro Bra­sileiro de Comédia, o lendário TBC, Everton Bortotti, Fernan­da D’Umbra, José Pimentel, Pe­dro Roberto Fiori (impagável o seu Jô) e Bortolotto atuam com desprezo total à convenção.

Vão sempre além, na gestua­lidade e na fala, reinventando ti­pos que se aproximam da comicidade dos quadrinhos ou do ci­nema.

“Quando você for visitar a Medusa, não vá de óculos de ray ban; vá de óculos espelhados”. A sentença final é a perspectiva de quem vê do olho do furação, e não de fora. Perseu se aproxi­mou de Medusa e atingiu seu objetivo: decaptou-a. Quem está disposto a tirar os óculos escu­ros ao invés de perder as asas para a violência, como a que so­freu a corujá na parábola final do texto?

Medusa de Ray Ban – De Mário Bortolotto. Com a Cia. Cemitério de Automóveis. Terça e quarta, 21h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 165, Bela Vista, tel 606-4408). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 17 de dezembro.


 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.