29.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Curitiba – A melhor coisa do Fringe é o tiro no escuro, o sabor da aventura de ir ao teatro sem quaisquer expectativa. A mostra paralela que o Festival de Teatro de Curitiba inaugurou em sua sétima edição conseguiu atingir a meta saudável da diversidade. Houve espaço para tudo, como O Diário notou em pelo menos quatro das 32 peças que participaram do Fringe – nome importado do tradicional Festival de Edimburgo, que também abre suas portas para grupos que tenham coisas interessantes a dizer; ou melhor, a encenar.
A montagem de “Killer Disney , por exemplo, trouxe para o palco brasileiro o primeiro texto do inglês Philip Ridley, escrito em 1990. É uma história, no mínimo, perturbadora. Os jovens Presley (Ivan Cabral) e Haley (Andressa Medeiros) são dois irmãos que vivem sozinhos depois da morte dos pais. Em casa, isolados na bolha que inventaram para si, eles se escondem do medo do mundo exterior. Para suprir a resistência, se alimentam quase que exclusivamente de chocolate.
Aos poucos, os irmãos vão desnudando seus horrores. A narrativa é escatológica, beira o teatro pânico do qual o dramaturgo espanhol Fernando Arrabal é um dos expoentes (“Jovens Bárbaros de Hoje”). A doce e angelical Haley, por exemplo, conta sua escalada à estatua de Cristo, fugindo de uma matilha. Os cães rosnavam ao pé do monumento, enquanto ela beijava os lábios frios do Salvador.
Presley, por sua vez, descreve como comprou uma cobra verde, feito cor de grama, e a mastigou depois de fritá-la. As imagens de “Killer Disney” são poderosíssimas. O autor é devassador. Um terceiro personagem, Cosmo Disney, surge para aumentar ainda mais o pesadelo dos irmãos. Entre os desejos mais primitivos, a sexualidade latente e prisão do imaginário, a peça é uma crítica feroz ao isolamento do homem moderno.
“Killer Disney” uniu a Companhia de Teatro Os Satyros, sediada em Lisboa, e o grupo paranaense Resistência de Teatro. A direção é assinada por Marcelo Marchioro. A montagem transmite a atmosfera etérea do texto; as interpretações são viscerais, no limite da loucura em que os personagens estão metidos.
Outro destaque do Fringe foi “A Perseguição ou O Longo Caminho Que Vai de Zero a Ene”, com a paranaense Cia. do Drama 2. João Paulo Leão dirige e contracena com Hélio Barbosa no texto de Timochenco Wehbi.
E uma peça coerente com a abordagem existencial – e social, por extensão – que Wehbi imprime em seus textos. Na relação do outro com o mundo que o cerca, Zero e Ene fazem como Uroborus, a cobra mitológica que engole o próprio rabo. Leão e Barbosa estão à vontade no palco; estabelecem paralelismo nas falas, nos gestos, na ocupação do palco que traz latões amontoados como cenário. O silêncio beckettiano, o mergulho no vazio das almas, transformam o espetáculo em uma experiência intimista, na qual a palavra ecoa com dor e lirismo.
Em “Cara Metade”, o Caos & Acaso, outro grupo de Curitiba, encena um dos textos pouco conhecidos de Flávio de Souza (“Fica Comigo Esta Noite”, “Repetition” e “De Pernas Pro Ar!”). Trata-se de uma incursão do autor pelo mesmo tema que atraiu o francês Roland Barthes no clássico “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, livro que já recebeu algumas adaptações para o palco.
Estão lá as neuroses comuns dos enamorados, como a angústia da espera, o ciúme e a perda amorosa. “Cara Metade”, o título, é atribuído à dupla personalidade que acomete a todos; diapasão que abriga a disputa entre razão e intuição. O tratamento do diretor Chico Penafiel, que também encabeça o elenco, beira o do teatro infantil, com direito a figurinos coloridos e anjinhos saltitantes. É uma farsa descomprometida, que se não vai além do olhar raso do tema, deve-se muito ao texto pouco feliz de Souza.
Como se disse, Fringe também é susto. E um deles foi “Dois? Somente Um!”, de Pedro Pires, que também assina a direção e participa do elenco. O que se viu no festival foi um engodo, um espetáculo distante do mínimo para se levar ao palco. Nas desilusões e embates de casais em crise, a rotatividade dos seis atores se assemelha a um jogral escolar. As coreografias são preguiçosas, repetitivas.
Sob a justificativa de “falar com a maior simplicidade do mundo”, as interpretações são de um naturalismo fácil. Realmente, os atores parecem que estão falando em um boteco ou numa sala de estar. Mas o palco, convenhamos, prescinde de brilho na fala, de verdade – o que falta em “Dois? Somente Um!”.
Enfim, o Festival de Teatro de Curitiba chega ao seu sétimo ano com a certeza de que o Fringe veio para ficar. O leque de estilos, de trabalhos experimentais, de grupos que ousam dar um passo além – pelo menos a maioria deles – resulta em riqueza maior da mostra paralela. Dá gosto participar da maratona (sessões às 18h e 24h), sobretudo pelas gratas surpresas.
29.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
Curitiba – É inerente da arte do teatro transcender ao espaço no qual ele acontece. Depois do último sinal, importa o “vôo” dos espectadores. E isto só se dá quando a magia é de grande monta. Como em “Divinas Palavras”, uma das melhores atrações do 7º Festival de Teatro de Curitiba – e que poderá ser vista em São Paulo de amanhã até o dia 9, em temporada gratuita no SESC Consolação.
O texto do dramaturgo espanhol Ramón Del Valle-Inclán (1866-1936) ganhou adaptação de dois compositores expressivos da música regional brasileira: Xangai e Elomar. O elenco, por sua vez, é formado por atores baianos. E a direção é da jovem alemã Nehle Franke. Essa mistura de raízes contribui para o caráter universal da obra, destacado com beleza e espanto em cena.
A partir do texto amargo de Valle-Ínclan, no qual cada ser humano parece predestinado à dor, porque amor de perdição é armadilha e partilha de herança é ambição desmesurada, capaz de desgraçar toda uma família, enfim, a partir desse olhar impiedoso do autor, a montagem encontra a si mesma, incorporando seu filete de humor em pleno ritual.
“Divinas Palavras” tem o aleijadinho Laureano (Fábio Vidal) no centro da disputa dos tios. Ou melhor, nem tanto ele, Laureano, um “fardo” a grunir boa parte do tempo. O que se disputa, cruelmente, é o carrinho de mão, o “berço” no qual o pobre coitado é levado para cima e para baixo.
O nonsense em torno da herança culmina na morte do aleijadinho, na interpretação ao mesmo tempo assustadora e encantadora de Vidal, traduzindo em desespero e ódio cada músculo retesado do corpo, mais o olhar esbugalhado, a voz esgarniçante. Em estando morto, Laureano não perde a condição de “moeda”.
“Três dias na porta da igreja rendem mais do que o dinheiro do enterro”, dispara a garota Simoniña (Cibele de Sá), carregando ligeiro o falecido no carrinho para esmolar. A miséria em seu grau mais elevado; a exploração não cessa nem depois do último respiro.
A peça confronta ainda a noção de pecado com a traição de Mari-Gaila (Andréia Elia). Depois de conseguir parte da “herança”, ela se deixa seduzir pelo saltimbanco Sétimo Miau (caco Monteiro) e trai o seu marido, o sacristão da aldeia. Como Madalena, Mari-Gaila é perseguida pela comunidade e o espetáculo termina com a frase bíblica, desafiando àquele que não cometeu pecado a atirar a primeira pedra.
“Divinas Palavras” é um espetáculo que comove pela sua sinceridade. Há uma riqueza corporal, uma inventividade constante que brota do corpo dos atores. Como nos personagens construídos por Elydia Freire (Poca Pena) e Evelyn Buchegger (Marica del Reino), em que a caracterização é minuciosa, de conteúdo ancestral, antropológico.
Tal perfil também se enquadra nos figurinos e adereços de Moacyr Gramacho, nos bonecos de Olga Gomez e na cenografia de Ayrson Heráclito e Haroldo Garay, que integra a tudo e a todos com fluência rara.
A platéia giratória conduz o olhar do espectador como uma câmara cinematográfica. Numa das sequências mais impressionantes, o giro acompanha um grupo que persegue Mari-Gaila por entre as cercas. A rusticidade do espaço, com vários ambientes – ora uma tenda, ora um descampado, por exemplo – alcança também a expressão oral. As falas pertencem à tradição de quem vive nos confins dos sertões, com seus códigos específicos, na maioria das vezes evocando a natureza. Daí, a remissão imediata à peça-irmã “Vau da Sarapalha”, do grupo paraibano Piollin, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa.
Xangai, Elomar, Nehle Franke e os vibrantes atores baianos captaram de Valle-Inclán a universalidade pungente. É um espetáculo que coliga o sofrimento brasileiro, de ontem e de hoje, com o sofrimento de vários povos. O choro da sanfona e o cantochão da cantora que costura as cenas representam o lamento de uma humanidade que beija o rosto da morte ao mesmo tempo em que foge dela. Os artifícios para viver são muitos. “Divinas Palavras” não prega juízo de valores, não quer transmitir mensagens. Faz, de bom tamanho, o seu recorte lírico e cruel da pequenez que habita os corações dos mortos-vivos que perambulam por aí, Brasil adentro.
Divinas Palavras – De Ramón del Valle-Inclán. Tradução: Carlos Roberto Franke. Adaptação: Elomar e Xangai. Direção: Nehle Franke. Com Ana Paula Bouzas, Caica Alves, Katia Leal, Rino de Carvalho Inácio e outros. Estréia amanhã, 21h. Terça a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Consolação/Salão Verde (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2322). 90 lugares. Grátis (retirar convites com antecedência). Até 9 de abril.
Matheus acentua humor em “Orgulho”
Curitiba – Como em “Deadly”, apresentada no ano passado, a Cia. do Circo Mínimo – leia-se Rodrigo Matheus – voltou ao Festival de Teatro de Curitiba com um espetáculo no qual o ator passa boa parte do tempo suspenso no ar. Matheus segue na sua pesquisa do espaço aéreo, que vem desde “Prometeu Acorrentado”, cerca de dois anos atrás. Agora, é a vez de “Orgulho”, dividindo a cena com o músico e ator Thibaut Delor.
E a presença deste, aliás, o diferencial em relação às montagens anteriores. A presença de Delor coincide com maior espaço para o humor. Em “Orgulho”, aquela densidade recorrente do drama e da tragédia cedem espaço para o lúdico, sob direção de Cala Candioto.
Matheus surpreende ao explorar sua veia cômica, brincando com o ego inflado do seu personagem. A caricatura gay é o ápice da ruptura que o ator insinua em seu novo trabalho.
O texto de “Orgulho” tem como eixo o conto homônimo de Rubem Fonseca. A impotência do homem diante de Deus – este sim, onipotente, como quer seus seguidores – espelha o esforço do trapezista na missão de alcançar o status de herói.
Enquanto ele (Matheus) mostra seu virtuosismo no ar, retorcendo músculos aqui e ali, com muito suor, o violoncelista (Delor) e seu inseparável instrumento servem como contraponto. A coreografia assinada por Sandro Borelli faz uso sobretudo do contato improvisado entre os corpos. A música que ecoa das cordas, ao vivo, constitui ela também um elemento da narração.
Muito mais do que um retrato da ambição humana diante da construção do mito, do herói -cita-se, por exemplo, a carta de Getúlio Vargas que “saiu da vida para entrar para a história” – o que se destaca em “Orguho” são os seus momentos cômicos.
Neles, a interpretação combina com o espaço e dinamiza a relação com o público. Um caminho que Rodrigo Matheus e sua Cia. Circo Mínimo já provaram que têm cacife para investir muito mais.
Fringe veio para ficar, garante diretor
São Paulo – Num balanço prévio da 7ª edição do Festivai de Teatro de Curitiba (FTC), o diretor de comunicação, Leandro Knopfholz, 24 anos, avalia positivamente os resultados da primeira mostra paralela. O Fringe, como foi batizada a mostra, inspirada no Festival de Edimburgo (Inglaterra), reuniu 32 peças e teve desde platéia reduzida a três, quatro pessoas, até casas lotadas (40, 50 pessoas). Ou seja, a freqüência do público reflete a própria diversidade do painel que foi apresentado (leia na página 3 a crítica de alguns espetáculos acompanhados por O Diário).
“O Fringe veio para ficar”, garante Knopfholz. Ele destaca principalmente o empenho dos próprios grupos em cuidar das apresentações com esmero – alguns chegando a produzir programas de invejar os participantes da mostra oficial. Com uma taxa de R$ 50,00, os grupos interessados tiveram direito ao teatro e à divulgação da montagem.
A partir do próximo ano, o diretor quer ampliar a faixa do horário alternativo (sessões às 18h e 24h) para o período da manhã. A intenção é descongestionar as noites, que registraram quatro espetáculos seguidos, entre mostra oficial e paralela. O diretor estima que, em seus 11 dias, o festival atraiu um público de cerca de 60 mil pessoas.
Knopffiolz concorda que foi um equívoco a apresentação de “Arlechino, Servidor de Dois Patrões”, pela Cia. Teatro Di Stravaganza (RS), na abertura do festival deste ano, “O talento da companhia é inegável, tanto que foi selecionada para a mostra oficial.
Mas o espaço não foi adequado”, reconhece o diretor. Na sua opinião, para uma peça funcionar na Ópera de Arame é necessário que utilize muitos recursos visuais e seja expansiva. “Arlechino”, ao contrário, era intimista e foi diminuída pelo gigantismo do espaço.
Para o próximo ano, a única certeza é a inclusão de mais uma atração internacional na programação. “Agulhas e Opio” (Needles and Opium), que introduziu o teatro do diretor canadense Robert Lepage no Brasil, foi uma das grandes sensações do festival.
28.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 28 de março de 1998. Caderno A – capa
“O Crime do Dr. Alvarenga” reflete o talento de seu autor para cair no gosto do público
VALMIR SANTOS
24.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 24 de março de 1998. Caderno A – capa
Walderez de Barros e Luís Melo em seus monólogos emocionam o público no FTC
VALMIR SANTOS
Curitiba – Waiderez de Barros (“Tu e Eu”) e Luís Meio (“Nijinsky”) interpretam monólogos neste 8º Festival de Teatro de Curitiba. A programação traz ainda Iara Jamra (“O Caderno Rosa de Lori Lamby”), que estreou ontem. O formato costuma receber críticas, quer pela suposta facilidade em montá-lo em tempos de crise econômica, quer pela exigência maior da entrega/atenção do público, esse ser flutuante cada vez mais acostumado à fácil digestão de entretenimento.
Mas tudo isso ainda é muito pouco para relegar o monólogo. Enfrentar personagem e platéia sozinho é dos maiores desafios que um ator pode registrar no currículo. Walderez de Barros e Luís Melo, cada um a seu modo, fazem um libelo à interpretação solitária nos espetáculos que chegam a São Paulo no mês que vem.
Em “Tu e Eu”, Walderez traz à cena a palavra do afegão Rumi (1207-1273), um mestre versado em filosofia e poesia que legou para a humanidade uma obra repleta de lampejos líricos e espirituais. “Apenas somos quando em nada nos tornamos” – eis um exemplo da reflexão que Rumi propõe na reverência a seu interlocutor, que pode ser um deus, uma mulher, um homem, não importa. Embriagado pelo outro, o personagem evoca a energia solar ou lunar para declarar seu amor universal e incondicional.
Walderez de Barros recupera o olho no olho do espectador, um gesto cotidiano tão elementar quanto distante dos palcos contemporâneos. O prazer da palavra, da trova, toma conta do espaço. Vestida em terno e calça cinzas, divagando entre as pedras, a atriz cativa o espectador com um encanto arrebatador.
O diretor Jorge Takla deposita tudo na atriz, suavizando cenário e luz em favor da poesia. Quem viu Walderez em outro monólogo recente, interpretando e cantando versos do poeta francês Jacques Privet, sabe do poço de energia que ela é. Em “Tu e Eu”, temos simplesmente uma intérprete que faz jus à poderosa mensagem de Rumi em sua esperança na força transformadora do homem e – do teatro, por que não?
Já em “Nijinsky”, a cenografia, a iluminação e a música funcionam mais do que elementos de apoio – elas dialogam o tempo todo com Luís Melo, dirigido pela dupla Rosella Terranova e Ciáudia Schapira.
O monólogo é baseado nos cadernos que o bailarino russo escreveu compulsivamente, por volta dos 29 anos, antes de ser internado na “casa de loucos”, como diz o texto. Não é propriamente uma biografia (pinçela o relacionamento com a mulher, o rompimento com Diaghilev, seu professor).
“Nijinsky” expõe o homem por trás do mito, a loucura sã por trás da fachada de “bobo da corte” que o personagem assumiu para como que despistar os desafetos burgueses do início do século. Um Van Gogh, um Arthur Bispo do Rosário.
Impossível não enxergar na interpretação de Melo os resquícios da fase com Antunes Filho. Está lá impregnado, por exemplo, um ensandecido Macbeth. O ator encontra no seu Nijinsky terreno propício para uma expressão corporal mais acurada afinal, estamos falando de um dos gênios da dança mundial.
É assim que Melo vai preenchendo todo o espaço do palco, se enlaçando nos panos do cenário, saltitando nos quatro cantos, sempre no limite da consciência que precede a loucura. Ao contrário da imobilidade e parcimônia de “Sonata Kreutzer”, pulsa aqui o devaneio, o instinto, a porção anima que referenda Kazuo Ohno – não à toa, ele surge com um vestido rendado que remete ao dançarino japonês na célebre coreografia “La Argentina”. Enfim, um Melo como nos bons tempos.
15.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 15 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo O “laboratório”, como é definido no meio teatral o período em que o ator sai à cata de conteúdos internos e externos para compor seu personagem, não raras vezes proporciona bons momentos no palco. Nesse exercício de decantação, é imperativo sondar os confins da alma, peregrinar por caminhos d’antes não percorridos, trazer à superfície da consciência – ou não – a emoção em seu estado bruto. Considerando a interpretação de Diogo Vilela em “Diário de Um Louco”, sua viagem pessoal foi de uma riqueza tremenda. Única, intransferível, trata-se de uma dádiva dos deuses do teatro, reservada àqueles jque se atiram sem rede na fase de pré-montagem.
Na pesquisa sobre o personagem do conto do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1952), Vilela foi visitar manicômios. Sentiu na pele a lida de seres humanos com a irrealidade cotidiana. Numa entrevista recente, a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, se questionava: “Quem sabe o que acontece no imenso mar do inconsciente? Quem dizer que sabe, este sim é louco”. Pois Vilela chegou bem perto na busca da insanidade e do carisma de Popritchitchine um funcionário público do século passado, angustiado numa repartição kafkiana.
Em suas anotações, o sujeito, vai relatando as mazelas do seu chefe, que goza do poder. Popritchtchine queria ser um general, um governador, um intendente, quem sabe. Mas não. Está ali, metido na “fauna de burocráticos fétidos”, como ele define os coleguinhas de repartição.
Não bastasse a submissão social, o personagem amarga um amor platônico pela filha do chefe. O sentimento é tão desconcertante que o leva a estabelecer uma relação afetuosa com o cachorrinho da moça. Sem título de nobreza, sem dinheiro, só lhe resta o diálogo imaginário com o cachorrinho para quem declara seu amor incondicional por Sofia.
A solidão com o papel, no qual “deita sua pena”, culmina com sua elevação a rei da espanha. A despeito da autoproclamação, em que sobe na mesa do escritório e encara os demais como seus súditos, Popritchitchine é encaminhado para um manicômio. Aos poucos, o grau de esquizofrenia é proporcional ao seu estado de consciência.
Preso à camisa-de-força, aquele mero empregado, ainda assim, traduz a surra nas costas, com pauladas, como se fosse ação de um inquisidor. Nem a crua dor de um bastão o demove da liberdade imaginária.
Diogo Vilela perpassa a via crúcis de Popritchitchine expondo a leveza e agudeza com que a loucura dota os visionários. Cita-se Van Gogh ou Artaud, por exemplo. Aliás, paira em “Diário de um Louco” o espectro do monólogo histórico de Rubens Corrêa, já falecido, para o francês que deu à luz o “teatro da crueldade”. Não se comparam, mas se ligam pelo tema.
Entre a dor da impossibilidade humana diante de algumas forças da vida, e a dor do grito infinito da alma, Vilela não sucumbe ao drama total. Há brechas para o humor e ele aproveita muito bem esses momentos. Como nas confissões entre o personagem e o “sr.” cachorrinho.
Mas o Gogol que surge aqui não é o mesmo da comédia política (pós-revoluçãO russa) “O Inspetor Geral” (1936), sua obra-prima, escrita quatro anos antes de “Diário de Um Louco”. Este é um texto perturbador. E um espetáculo tanto quanto.
Adornado pela coroa de garfos, uma referência ao artista plástico Arthur Bispo do Rosário, outro que transcendeu à loucura, Diogo Vilela constrói gestos e movimentos dissociados de seus trabalhos anteriores – notadamente “Solidão, a Comédia”.
Seu suporte está no olhar, no corpo que ocupa o espaço cênico dilatando a sua expressão. Parece olhar a loucura nos olhos. Neste monólogo, compete a ele, ator, dar conta também dos desenhos físico e orgânico projetados pelo texto. “Enxergamos” o cachorrinho ao seu lado, sim, quando ele fica de quatro e estabelece uma “conversa” de igual para igual. O cenário subjetivo e extemporâneo de Beli Araújo também não faz sugestão ao escritório, estimulando o leque imaginário.
O diretor Marcus Alvisi não dilui a dureza do drama e tampouco o florea. Como Diogo Vilela é um ator com forte apelo cômico, a montagem não desprezou esse quinhão. Entre as concessões, de um lado e de outro, o resultado é um monólogo que consegue dar seu recado poético, sem o cerco literário.
No silêncio introspectivo da platéia, magnetizada pela presença de Vilela/Popritchitchine, conduzida ainda por uma trilha musical fabulosa (Tchaikovsky, Bruck), enfim, a cena compartilha também se reveste de um pouco da experiência que o ator viveu antes de chegar ao seu personagem. Em pouco mais de uma hora, somos atingidos pelos devaneios daquele funcionário que ousou ir além numa sociedade de parasitas. É atordoante.
Diário de um Louco – De Nikolai Gogol. Tradução: Luis de Lima. Dramaturg: Robert de Cleto. Direção: Marcus Alvisi. Com Diogo Vilela. Figurinos: Kalma Martinho. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel.258-3616). R$ 25,00 e R$ 30,00 (sábado). Duração: 70 minutos.
8.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Espanta a avalanche de denúncias estampadas ultimamente em manchetes. São proporcionais à impunidade. O Brasil está repleto de casos insolúveis – de Brasília aos “brasis”. Essa overdose de falcatruas poderia até depor contra a peça “Caixa 2”. Por um momento, o espectador, entuchado da realidade política, não agüenta mais falar de Collor, CPI dos precatórios, enfim, dessa ciranda que não dá em nada. Mas estamos numa comédia de Juca de Oliveira, com um bom elenco, estrelado pelo próprio e por Fúlvio Stefanini e Cláudia Mello. E aí, não tem jeito: o talento reina absoluto.
Juca de Oliveira foi buscar em outra peça sua, “Motel Paradiso”, nos anos 80, a inspiração para retomar a comédia de fundo político-social. Espécie de raio-X do País, “Caixa 2” vai além da perspectiva história em que vivemos. Oliveira constrói personagens que têm carisma, densidade psicológica, se sustentam por si só. A despeito da concretude dos mecanismos bancários, financeiros, a peça diz a que veio com os sonhos frustrados, os ideais vendidos, a sem-cerimônia de quem dá as cartas no jogo do poder.
O empresário Luiz Fernando (Juca de Oliveira) e o gerente Roberto (Fulvio Stefanini) possuem caráter distintos. O primeiro é movido pelo vil metal. Pouco lhe importa o outro. Quer o lucro, a vantagem a qualquer custo. Roberto, não. Ele acredita na dignidade do trabaiho, veste a camisa da empresa, faz o seu arroz-com-feijão e se dá por feliz – até ser despedido depois de 22 anos de suor.
Nessa gangorra entre bem e mal, “Caixa 2” perfila, aos poucos, os demais tipos da história. Cláudia Mello é a mulher de Roberto. Aliás, é a “mulher” da peça. Cabe a ela furar o bloqueio masculino do mundo dos negócios e ditar as regras – “O dinheiro é meu!”, brada a certa altura. Depois vem o seu filho (Petrônio Gontijo), que também joga no seu time para driblar os vilões. E tem ainda o assessor não menos inescrupuloso do empresário (Cassiano Ricardo) e a secretária do patrão (Suzy Rêgo).
O corre-corre é por conta dos R$ 10 milhões que o empresário captou em suas negociatas (o manjado caixa dois). Para se desviar dos olhos da Justiça, ele deposita o dinheiro na conta da sua secretária, depois de também lhe prometer algum. O azar é que o dinheiro vai parar na conta corrente negativa da mulher de Roberto, então despedido pelo mesmo Luiz Fernando.
Na tentativa de reaver sua pequena fortuna, o empresário tenta subornar Deus e o mundo. Mas a família de Roberto, tipo classe média baixa, não arreda pé. Só devolve o dinheiro se o ex-patrão deixar pelo menos 40%. Como pano de fundo, surgem os pequenos dramas pessoais.
É uma comédia de atores. Fulvio Stefanini faz um Roberto típico das comédias italianas -felliniano até. Já virou marco da temporada a cena em que o personagem refastela-se na poltrona e, ainda assim, sem ação alguma, sem dar um pio, faz a platéia gargalhar. Sua expressão sempre dissimulada, como se a história não fosse com ele, lhe garante a empatia.
O empresário de Juca de Oliveira também é de um sarcasmo atroz com suas sentenças lapidares, tais como: “Se a Justiça não autorizar a minha candidatura, só me restam a Casa Branca ou a casa de Collor em Miami” e “Ninguém vai preso neste País por dinheiro”. É histriônico na medida certa.
Comediante nata, Cláudia Mello desfila à vontade no palco. Vai à forra na condução dos seus homens – marido e filho. Petrônio Gontijo, Suzy Rêgo e Cassiano Ricardo completam um time coeso, onde todos têm espaço para fazer valer seu dote de bom intérprete.
E são eles, os atores, que o diretor Fauzi Arap mais uma vez privilegia em cena. Em cartaz também com “Santidade”, ele tem pleno domínio ao tratar o drama ou a comédia com isenção incomum. Arap tem o mérito de diluir a figura do diretor, de se “esconder” no palco, para deixar vir à luz o teatro em sua essência. É uma virtude dos grandes homens do teatro.
Mais simples e funcionais ainda, em se tratando de um espetáculo nos moldes do chamado “teatrão”, são os cenários e os figurinos de Márcio Medina. A cenografia, junto com a iluminação de Laura Figueiredo e Arap solucionam o espaço cênico – a divisão do escritório e da casa – com um tratamento perfeito. Não há o blecaute constante, mas uma exigente e perfeita simultaneidade de cena.
Na sua perspectiva às vezes ingênua, às vezes contundente, sem nunca perder o fio do humor desbragado, sem culpa e sem medo de ser feliz, cutucando os donos do poder que constroem prédios como castelo de areia. “Caixa 2” resulta num dos melhores momentos da comédia brasileira nos anos 90.
Caixa 2 – De Juca de Oliveira. Direação: Fauzi Arap. Com Oliveira, Fulvio Stefanini, Suzy Rêgo, Cassiano Ricardo, Petrônio Gontijo e Cláudia Mello. Quinta, 21h; sexta, 21h30; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433 ou 607-3364). R$ 20,00 (quinta), R$ 25,00 (sexta e domingo) e R$ 30,00 (sábado). Duração: 90 minutos. Temporada por tempo indeterminado.
“Espumas Flutuantes” voa, mas não consegue achar equilíbrio
São Paulo – O retrato de Castro Alves, quando jovem, lembra o de Oscar Wilde. Mas as semelhanças podem ser mais profundas. Tal qual o dândi inglês, o escritor baiano também fez da sua existência uma eferveção poética literal. Suas inquietações estimularam muitos corações e mentes – da época e de hoje. O musical “Espumas Flutuantes – O Vôo do Gênio” vai de encontro ao espírito libertário desse homem que viveu no século passado e continua fazendo suas palavras se apoderarem dos nossos sentidos com intensidade incomum.
Musical talvez não seja a definição correta. Um recital, quem sabe. O certo é que a montagem moldura o verbo com tanto esmero que a poesia de Castro Alves chega estalando, fluindo na boca e nos corpos libidinosos do elenco. O lirismo é tocante.
Francamente aberto à infinita contribuição das sensações humanas – leia-se Dionísio até à medula -, o espetáculo é visionário na medida em que pode. Ou seja, transcendendo aos limites do palco e, paradoxalmente, se perdendo nas várias possibilidades que isso implica.
Os 13 poemas extraídos do único livro publicado em vida, “Espumas Flutuantes”, são cantados e interpretados com pungência. Há momentos brilhantes, como nas cenas iniciais, quando o elenco é um cardume em dispersão, uniformizando seus contrastes, jogando com o público, incitado-o a digerir a poesia como se fosse o mel que desce macio pela garganta.
Mas o espetáculo desanda depois. Estreou sem estar pronto. Falta-lhe o ritmo. Os altos e baixos ainda são gritantes, inclusive entre os atores. Escorregões na fala, na sonoplastia, na iluminação, enfim, minam aos poucos a beleza cênica que se tenta construir.
A vantagem do ator e diretor Pascoal da Conceição, presença ativa nas peças de José Celso Martinez e seu grupo Uzyna Uzona, é de que “Espumas Flutuantes”, o espetáculo, já encontrou sua razão de ser. A narrativa que entremea dramatizações, por exemplo, funciona sem nenhum prejuízo. Ao contrário, os quadros seguem uma coerência autobiográfica.
Há a liberdade para o vôo, que passa pela percussão musical (Luiz Gayotto), em simbiose com os objetos de cena – e de platéia -; passa pelos figurinos criativos e bem desenhados (Val Barreto); passa pela evocação feminina de Elis e Janis (aliás, ressalta-se a força conjunta das sete mulheres do elenco); passa pela celebração do espaço e do corpo que nele atua. O rito está garantido. E, com ele, a poesia das palavras, que insistem: “Como um pássaro, o coração do morto volta para o ninho”.
O problema da montagem é de ordem puramente técnica. De outro modo, é difícil entender por quê tanta energia é empregada em vão. Já que se chegou à cristalização dramática da poesia de Castro Alves, seria o caso de se voltar, agora, para as arestas que estão aí, por vezes expostas grosseiramente. Às vezes, é preciso ter os pés no chão para voar.
Espumas Flutuantes – De Castro Alves. Roteiro e direção: Pascoal da Conceição. Com Monica Henriques, Dulcinéia Dibo, Vanessa Frigo, Daniela Jaime-Smith, Lucia Helena Gayotto, Fabiana Serroni, Ronaldo Silva e Paula Kill. Terças, 20h30. Teatro Bibi Ferreira (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 931, Bela Vista, tel. 605-3129). R$ 25,00. Duração: 80 minutos. Até maio.
22.2.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 22 de fevereiro de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Ele era do tipo que tinha um nó na garganta quando via um cenário sendo desmanchado, ao final de cada temporada. O diretor paulista Ademar Guerra (1933-1993) inscreveu seu nome na história do teatro brasileiro com paixão incomum.
Montagens como “Marat/Sade” (1967) e o musical “Hair” (1969) marcaram pela disciplina ferrenha e despretenção estética. O ator era alicerce de tudo e a ele Guerra devotava sua arte. O perfil instrospectivo, pouco chegado aos holofotes, o deixou como que à margem da geração seminal de diretores brasileiros, como Antunes, Boal, Zé Celso, Abujamra, Haddad etc. Quando o incenso é muito, o santo desconfia – bem que a máxima caberia nos 59 anos vividos por Guerra.
O livro “Ademar Guerra: O Teatro de Um Homem Só”, do jornalista Oswaldo Mendes (Editora Senac), descortina toda a trajetória do diretor – desde a atuação como assistente de Antunes Filho, nos anos 50, até o seu último espetáculo, “O Vampiro e a Polaquinha”, que estreou em 1992, um ano antes de sua morte. E vem preencher, também, uma lacuna para as novas gerações, carentes de informações sobre o passado do teatro no País.
Não se trata propriamente de uma biografia. Quando muito, toca na forte ligação com a mãe. Mendes, amigo e parceiro em muitos trabalhos de Guerra, resgata a memória do diretor através de depoimentos colhidos do próprio e dos inúmeros profissionais que conviveram com ele. Mendes ousa colocar o texto na primeira pessoa, demonstrando o grau de intimidade com o encenador, resultando numa narrativa póstuma. Essa ressuscitação, por assim dizer, recupera oralidade coloquial de Guerra e o aproxima ainda mais do presente.
Entre suas montagens históricas, estão os musicais “Oh! Que Delícia de Guerra” (1966) e “Hair”, dois textos estrangeiros que lhe valeram patrulhamento à época, acusado de alienação política. Na opinião de Guerra, o bom texto era aquele que embutia um olhar universal. Capaz, por exemplo, de catalisar a atenção do público brasileiro para a guerra do Vietnã (caso de “Hair”), independente da contextualização. Ele provou essa espécie de globalização de problemas e virtudes humanas muito antes de “Angels in America”, de Tony Kushner, nestes anos 90.
O formato editorial de “O Teatro de Um Homem Só” é curioso. Nas páginas ímpares, Mendes segue contando a luta de Guerra para levar suas idéias adiante; as frustrações com alguns colegas; enfim, a projeção afetiva com a qual o diretor ficou conhecido na classe teatral. Já nas páginas pares, o livro reproduz depoimentos não menos passionais, de críticos, jornalistas e amigos de Guerra (Décio de Almeida Prado, Alberto Guzik, Jefferson del Rios, Bárbara Heliodora, Márika Gidali, Maria Bonomi, Aracy Balabanian, Renata Pallotini etc).
É importante lembrar que Ademar Guerra trascendeu às fronteiras do teatro e também flertou com a dança e a música. Respondeu pelo roteiro de algumas coreografias do grupo Stagium, como “Quebradas do Mundaréu” (1975) – adaptação de “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos – e “Paulistânias” (1994). Assinou ainda a direção de um dos shows mais importantes da carreira de Elis Regi-na, “Saudade do Brasil” (1980). Aliás, no final do livro, ele se encontra coma cantora no céu, concessão um tanto permissiva de Mendes.
Didático sem ser enfadonho, “O Teatro de Um Homem Só” é um livro de memória fresca que, não fosse por ele, o livro, estaria mofando úa cuca de muitos que compartilharam da presença cativante de Guerra. Explorando, sem medo, a veia afetiva do “biografado”, dando voz a pessoas não menos especiais, ilustrando boa parte dos espetáculos dirigidos por Guerra, enfim, Mendes deu seu recado com um belo projeto.
Ademar Guerra – O Teatro de um Homem Só – De Oswaldo Mendes. Editora Senac (rua Dr. Vila Nova, 228, 4º andar, Consolação, tel. 236-2135). Preço médio: R$ 28,00.
15.2.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 15 de fevereiro de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Além do ataque veemente ao regime nazista alemão, o dramaturgo norte-americano Arthur Miller, 82 anos, transforma “Vidros Partidos” em um divã para a psicanálise. Situando a história da peça na Nova York de 1938, um ano antes da morte de Sigmund Freud, o autor deu contornos psicológicos tão fortes aos personagens do triângulo principal da história, que é impossível sair do teatro sem compartilhar de tanta angústia.
A relação do casal Philip Gellburg (Francarlos Reis) e Sylvia (Minam Mehler) é pura neurose. Ela está acomodada numa cadeira de rodas, vítima de uma “paralisia histérica”, como diagnostica o médico e dublê de psicólogo Herry Hyman (Luiz Serra).
Num primeiro momento, Sylvia atribui seu transtorno pessoal às notícias de guerra que chegam do outro lado do oceano. Como ela e o marido são judeus, se condói pelo massacre da etnia pelos carrascos de Hitler. Aos poucos, porém, o que se descortina são as mazelas de um casamento que agoniza há mais de 20 anos, desde o nascimento do único filho, hoje capitão das forças armadas dos Estados Unidos e atuando no front.
Enfim, são personagens de perfis desafiadores. Felizmente, a montagem de “Vidros Partidos”, em cena no Teatro Cultura Inglesa desde a semana passada, conta com a presença tocante de dois grandes atores em cena.
Francarlos Reis catalisa atenção com seu Philip turrão, obsessivo com os negócios, corpo sempre tenso, arqueado, dono de um olhar que é esbugalhado, de vigília, mas também é de peixe morto. O martírio de dar expediente como judeu 24 horas por dia, a âncora da culpa, o desconcerto da impotência sexual – Francarlos transmite a essência desse personagem que carrega sobre as costas todo o peso das obrigações que o mundo ocidental impõe sobre a masculinidade
– o mito do herói faz-tudo, pronto para embarcar para a guerra.
Contundente é também a interpretação de Miriam Mehler. Sylvia é uma mulher de brio, mas que abdicou da vida e se anulou bastante em função do casamento. Ao sublimar o genocídio dos judeus, se apegando ao fio universal da história viva da humanidade, ela acaba somatizando seu inferno na paralisia.
Nas cenas em que é impingida a voltar a andar, seja no acolhimento (leia-se calor humano) do médico, seja no embate com o marido, Miriam Mehler é puro arrebatamento. Ao exteriorizar a raiva de Sylvia, ao mesmo tempo em que a personagem reencontra sua força interior, a atriz vai ao limite do drama e expõe ali, atirada ao chão ou fragilizada na cadeira de rodas, o talento que cristaliza os 40 anos de carreira.
O diretor Iacov Hillel (“Angels in America”), de descendência judia, soube equilibrar aqui as duas vertentes temáticas de Arthur Miller (anti-nazismo, pró-psicologia). Para tanto, contou com um elenco que é a substância da montagem.
Soma-se ao brilho de Francarlos Reis e Miriam Mehler a entrega de Luiz Serra em cena, como o médico e vértice do triângulo, responsável pelos lampejos que iluminam a consciência do casal – ainda que Miller não seja nenhum pouco concessivo no desfecho da peça. Miriam Lins e Tuna Dwek cumprem bem as funções de válvula de escape para o quinhão de humor num drama psicológico que pede o envolvimento do espectador a todo instante. Denis Victorazo, por fim, completa o elenco com tranquilidade.
Com “Vidros Partidos”, sua peça mais recente, Arthur Miller estilhaça as histórias universal e pessoal, refletindo até que ponto este cruzamento afeta a todos. Para o bem e para o mal.
Vidros Partidos – De Arthur Miller. Direção: Iacov Hillel. Quinta e sexta, 29h30; sábado, 19h30; domingo, 19h. Teatro Cultural Inglesa (rua Deputado Lacerda Franco, 333, Pinheiros, tel. 814-0100). R$ 10,00. Até dia 28 de fevereiro.
“Entrevista” tem síntese de texto e interpretação
São Paulo – Foram apenas sete sessões no Sesc Pompéia, no período de 4 a 8 deste mês. Mas “Entrevista” merece uma longa temporada. O texto de Fernando Moreira Salles é uma instigante discussão sobre dois aspectos antigos e, ao mesmo tempo, extremamente atuais da humanidade: o amor e a criação. |
Contextualizando para a nossa época, a peça enfoca o encontro de um homem e uma mulher separados dois anos atrás, sabe-se lá porquê. É a chance de Paulo, dramaturgo, e Marta, jornalista e crítica teatral, colocarem os pontos nos “is”.
A formalidade de uma entrevista, onde se extrai informações da fonte, descamba para a pessoalidade das lembranças. O passado ainda fresco no olhar, no toque, no desdém de um pelo outro.
Paulo estava pronto para o ataque. Afinal, a despedida foi tão banal. Estavam em Veneza, cobrindo o festival internacional de teatro, quando ela simplesmente escreveu um bilhete sucinto, dizendo que partiria assim, de chofre, para nunca mais dar o ar da graça.
As explicações passionais, recheadas de ironia, são intercaladas por um exercício de metalinguagem que coloca em cheque sobretudo o teatro. Crítica e dramaturgo vão desde a busca do outro em Beckett, passando por “esse teatrinho feito de anabolizantes” até a franca retaliação com a cultura da TV e seu nivelamento por baixo.
Finalmente, no seu depoimento abertamente sentimental, Marta explica as razões do coração que a levaram a deixar o companheiro. A bucólica imagem dele tomando banho de mar em Veneza serviu-lhe de mola propulsora. Todo aquele desalento demonstrou, enfim, que a incomunicabilidade do casal era inevitável. Esta consciência, ainda que subjetiva, motivou sua partida.
Dirigidos por Maria Lúcia Pereira, profunda conhecedora da arte do ator, Sérgio Mastropasqua (Paulo) e Élida Marques (Marta) têm uma atuação concisa, econômica nos gestos, movimentos. Há uma nítida valorização do verbo na montagem, como requer o texto e a curta duração do espetáculo (menos de uma hora). Warde Marx, como o amigo comum do casal (Mário), testemunha ocular e silenciosa, cumpre seu papel sem comprometimento.
“Entrevista” tem, ainda, o mérito de trazer o diretor da Companhia das Letras, em seus primeiros passos, para o circuito da dramaturgia brasileira. Salles demonstra conhecimento do ofício e não se aventura por causa pequena.
“Irmãs do Tempo” tira bruxas do estereótipo
São Paulo – Como o dramaturgo inglês Tom Stoppard, 60 anos, que pinçou os traiçoeiros de Hamlet da condição de personagens coadjuvantes para lhes dar vida em “Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos” (1966), a peça “Irmãs do Tempo” reporta às bruxas não menos shakespearianas que previram a ascensão e queda de Macbeth.
Os autores Cláudia Vasconcellos e Marco Aurélio Pais escreveram o texto mergulhando nos arquétipos das bruxas, para depois liberá-las dos estereótipos e desaguar numa pesquisa cênica de fôlego das intérpretes Raquel Ornellas e Neca Zaryos.
Tomando como base as irmãs Weird de “Macbeth”, as atrizes desenvolveram uma atuação que prioriza o trabalho corporal. Dos gestos aos movimentos, passando pela extensão da voz e suas variantes onomatopaicas, ambas reinventam as noções de tempo, espaço e ação, transformando o palco em território livre para a imersão imaginária da caixa preta.
Com recursos que se aproximam da linguagem do clown e passam necessariamente pela contato-improvisação, elemento recorrente da dança-teatro contemporânea, Raquel e Neca se entregam à atuação prestando atenção aos mínimos detalhes. Apesar da formação acadêmica inerente das duas atrizes – a montagem é fruto de pesquisa de mestrado no Departamento de Artes Cênicas da USP -, felizmente “Irmãs do Tempo” é despida de hermetismos afins.
Aqui, importa o jogo cênico entre Raquel e Neca, as nuanças que estabelecem a cada momento do espetáculo. Elas estão em cena por completo, interagem com os objetos cênicos, com os figurinos, adereços, de modo que “recriar” e o verbo que melhor define suas performances.
É engenhosa e instigante a forma como a interpretação e o texto se equilibram entre o horror sangüinárío da história de Macbeth e a dimensão lúdica das histórias infantis. Assim, Rapunzel e Lady Macbeth surgem com o assombro e o onírico que lhes cabem – fio às vezes imperceptível.
Da temporada de estréia, no ano passado, para a reestréia agora, com sessões no Teatro Brincante, “Irmãs do Tempo” avançou bastante na sua comunicação com o público. Alcança síntese até quando cruza as barbaridades da Inquisição com o episódio do índio pataxó queimado em Brasília.
O ex-secretário de Cultura em Mogi, Armando Sérgio da Silva, que dirigiu a peça na primeira fase, desta vez divide a direção com Regina Mendes, professora, dona de formação sobretudo na dança. Daí a influência na afinidade corporal.
A cenografia de Renato Cymbalista e Eduardo Canella corresponde à atmosfera sugerida pelo texto – os galhos suspensos contrastam com a modernidade high-tech. Também os figurinos assinados por Christiane Gauche emprestam atemporalidade às personagens ora capetas, ora anjos de ocasião. Bem e mal, outro diapasão para a montagem.
Nesta viagem – simbolicamente, o espetáculo abre e fecha com um belo “barco” sugerido pelos corpos e vozes de Neca e Raquel -, o espectador tem a chance de penetrar o universo da bruxaria com introspecção e entretenimento garantidos. “Irmãs do Tempo” consegue ser experimental e acessível na medida certa. Sem concessão, sem redoma. Mas com leveza e muita inventividade.
Irmãs do Tempo – De Cláudia Vasconcellos e Marco Aurélio Pais. Direção: Armando Sérgio da Silva e Regina Mendes. Com Raquel Ornellas e Neca Zarvos. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 1º de março.
18.1.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 18 de janeiro de 1998. Caderno A – 4
“Vida e Arte” traz memórias da atriz que debutou aos 47 anos e completa 87 em fevereiro
VALMIR SANTOS
São Paulo – Você – permita-me dispensar o tratamento de senhora – descortina o passado com a maturidade que só o tempo vivido em sua plenitude pode dotar os seres humanos especiais. Embarcar na leitura de “Vida e Arte – Memórias de Lélia Abramo” é compartilhar contigo, ao pé do ouvido, o curso de urna vida pautada pela formação humanista, pela luta política e pelo ofício de atriz exercido nos palcos, na televisão no cinema.
Um casamento assim, em que a transcendência artística e a preocupação com o próximo se harmonizam, só pôde ser conquistado graças à coerência e perseverança da sua alma. Nascida no berço dos Abramos, você foi apresentada à literatura, ao teatro, às artes, enfim, por obra dos pais, dona Yole e seu Vicente, eixos de uma família de imigrantes italianos, que chegaram ao Brasil em 1892.
Quinta da fieira de sete irmãos, você também manteve com eles uma relação de ternura, de laços de cumplicidade que derrubavam distâncias continentais. Ângela Maria, a Nenê, foi a meia-irmã e, claro, não menos querida que os demais, pois filha do primeiro casamento do seu pai, que ficou viúvo e conheceu sua mãe.
Lívio, o primogênito, acentuou a vocação de desenhista e artista plástico. Athos caminhou para o jornalismo e se especializou na crítica teatral. Beatriz foi a irmã com quem esteve mais próxima, compartilhando inclusive os difíceis 12 anos de residência na Itália, em pleno espocar da Segunda Guerra Mundial, experiência que lhe deixaria sequelas para todo o sempre.
Fúlvio, o quinto mano, engajou-se na luta política, especificamente comunista, num Brasil dos anos 30 que passava pelo crivo ditatorial de Vargas. Mário, que preenchia a casa com sua bondade e delicadeza, “desapareceu” aos 41 anos – sim, porque na sua família ninguém morre ou falece, mas desaparece. Ele estava fazendo um piquenique à margem de um então límpido Rio Tietê, quando foi passear de barco, este virou e o levou, afogado.
Cláudio, o caçula, tornou-se um dos principais nomes da história do jornalismo brasileiro, chegando a dirigir a redação da Folha de S. Paulo e sedimentar uma “escola” que faz eco em todos os jornais do País. O livro “A Regra do Jogo” (1988), escrito pelo filho, Cláudio Weber Abramo, conta sua trajetória e serve de parâmetro para os jovens que sonham merguhar na profissão.
No meio dos sete, você, Lélia, era o “abajurzinho” da farnília, como a defendeu carinhosamente o irmão Athos. Você dividiu tristezas e alegrias com todos; aprendeu, ensinou. Hoje, prestes a completar 87 anos, mês que vem, você se vê sozinha no mundo. Foram-se os pais, os seis irmãos, sozinha, entre aspas, porque o destino lhe reservou um afeto de amizade, em várias frentes, que sedimentou seu caminho até aqui.
Lélia, são tocantes os relatos sobre a busca amorosa. Você, trotskista, namorou um militante leninista. Deixou-se levar pelo coração, escanteando um pouco a razão ideológica daqueles verdes anos de vida. Apaixonou-se pelo rapaz de inúmeras virtudes e um vício frenético: mulherengo à beça. Você, tão aguerrida, quem diria, fez vistas grossas, humana que é, porque as razões do coração pertencem a outra instância, sabe lá Deus qual. “Não sei se foi orgulho ou amor demais”, pondera em suas memórias.
Conviver com a solidão foi como que um estigma em todos esses anos. Por conta da incompetência assombrosa de um médico italiano, você deitou numa mesa de operação, em Roma, para extrair o ovário esquerdo, mas o desastroso cirurgião extirpou-lhe justamente o ovário sadio. “Além disso, ‘alguém’ esqueceu de suturar um vaso, provocando um choque hemorrágico pós-operatório, percebido tardiamente quando meu estado já era desesperador”, relembra. Foi um episódio, como muitos outros, que a marcaram para sempre. Este, em particular, tirou-lhe o direito de gerar um filho.
Ninguém passa incólume aos anos de guerra. Sua estadia na Itália, entre 1938 e 1950, veio confirmar ainda mais sua veia humanista. Testemunhar, in toco, os desvarios de Hitler na Segunda Guerra fez de você uma mulher antenada com as causas sociais – nem que isso lhe demandasse duas pátrias. Não foi à toa que você levou a bandeira da profissionalização do ator brasileiro à frente do Sindicato dos Artistas, em São Paulo.
Seu envolvimento com o movimento sindical chegou ao poto de testemunhar o lançamento do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 80, consequência das greves que mobilizaram os operários do ABC em 1979. Você serviu como interlocutora para convencer o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, a tomar a dianteira naquela semente do PT. Poucos anos depois, você viria a trabalhar na gestão de outra mulher de força incomum, a ex-prefeita Luiza Erundina, canalizando sua energia teatral para projetos comunitários.
Ah, sim, a atriz. A maturidade, mais uma vez, se fez presente no início da carreira. Você só foi subir ao palco profissionalmente aos 47 anos, interpretando, sintomaticamente, a operária Romana de “Eles Não Usam Black-Tie” (1958), peça que Gianfrancesco Guarnieri escreveu em sua juventude. Cinco anos depois, você tremia no palco em “Os Ossos do Barão”, de Jorde Andrade, quando notou que o grande ator italiano Vittorio Gassmann estava sentado na platéia.
No dia do golpe de 64, lº de abril, você ensaiava “Vereda da Salvação”, também de Andrade. Antunes Filho, em seus primeiros passos de diretor, decidiu suspender os ensaios, A montagem chegou a cumpnr uma curta temporada no TBC. Você interpretava Durvalina no palco, mas na versão da peça para o cinema, naquele mesmo ano, sob direção de Anselmo Duarte, você foi escalada para fazer Dolores, uma mãe arrebatadora.
Sua experiência com a televisão nunca foi uma maravilha. Dona de uma consciência social contumaz, era difícil se eximir de crítica ao veículo. Sobretudo à toda poderosa Rede Globo, surgida na esteira do regime militar. Sua saída da emissora, como descreve, é a melhor prova desse confronto intelectual em que os interesses humanos e os capitais se chocam. Participavas da novela “Pai Herói” (1979), dirigida por Gonzaga Blota, quando sua personagem, Dona Januária, “morreu” subtamente e você foi parar no olho da rua, ficando desempregada.
Perseguida pelas armadilhas do destino ou pelas injustiças, você nunca se esquivou de enfrentá-las. Foram tantos os obstáculos, de toda ordem, que é de admirar a força com que você chega até nós para rememorar as lembranças, força-motriz de qualquer história pessoal. “Mas a vida sempre nos prepara situações inesperadas e às vezes dolorosas que não podemos alterar ou impedir – só nos resta ter paciência, suportar e sofrer”, ensi na você, escolada na arte do bom senso.
Lançamento conjunto da Editora Fundação Perseu Abramo e Editora da Unicamp, com um alentado material ilustrativo, “Vida e Arte” é calcado nas reminiscências, com precisão de detalhes como o pôr-do-sol e a tonalidade dos céus. Você faz questão de costurar os fatos históricos – realidade que tanto sublimou para compensar as perdas e danos pessoais. Lélia, deambular é teu verbo vitorioso, porque fizestes da solidão um instrumento para se agarrar aos gestos essenciais da vida como ela lhe é. Muitas vezes gestos pequenos e, por isso, gigantes.
Vida e Arte – Memória de Lélia Abramo – De Lélia Abramo. Editora Fundação Perseu Abramo tel. 259-8024 e Editora da Unicamp tel. 19-788-2015. 272 páginas. R$ 27,00.
23.11.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de novembro de 1997. Caderno A – 4
Peça de José Vicente mantém atualidade dos enfoques social e religioso
VALMIR SANTOS
São Paulo – Num primeiro que plano, como quer José Vicente, “Santidade” expõe a vida de michê com a devida mácula cristã. A prostituição masculina está aquém da retidão divina. Mas o autor transcende o tema. A peça também expia a noção de pecado segundo o peso da crença católica. Mais: avança para dentro mas de uma juventude vivida das relações humanas no que elas têm de superfície e essência.
Há 30 anos, quando o então presidente Costa e Silva censurou “Santidade”, em seu ataque de moralidade cívica, ele provavelmente se ateve a algumas frases de impacto que, não necessariamente, refletem o âmago da história. Por exemplo: “O Cristo morreu sufocado; a Igreja matou Cristo!” – é uma das sentenças espulmantes que saem da boca de Arthur, o personagem-vértice da peça. “Eu não acredito em santo sem esperma!”, continua. Mais: “O Deus da juventude está morto!”.
O que José Vicente “pregou” em sua primeira peça, escrita aos 22 anos, era muito mais do que uma pichação à Igreja Católica. Os diálogos entre Arthur, ex-seminarista, e seu irmão Nicolau, na iminência de se tornar padre, constituem o eixo do texto. Arthur e Nicolau, uma corruptela do autor para homenagear o poeta francês Arthur Rimbaud.
Num pequeno apartamento barato do centro de São Paulo, os três personagens despem seus medos, angústias, desejos, iras, virtudes. Arthur vai ao inferno. Como michê, morando com Ivo, ele exorciza os fantasmas de uma juventude vivida em nome de Deus. Quando seu irmão chega, surge então a oportunidade de enfrentamento; de botar para fora o que ficou engasgado na garganta.
Arthur joga no limite da vida. É quem mobiliza os demais. Na interpretação visceral de Mário Bortolotto, o personagem atinge uma dimensão caótica da existência que é traduzida pelo ator em gestos estridentes e movimentos expansivos – como a reivindicar um território maior que o pequeno palco do Crowne Plaza, para efetivamente explodir. É no Arthur de Bertolotto/José Vicente que “Santidade” rouba fôlego do espectador – parece arrancá-lo da cômoda poltrona e jogá-lo ao centro do palco, tamanha é a emoção que pede e dá.
Na sua terna e delicada presença, o Nicolau de Nívio Diegues é o contraponto perfeito. “A tua inocência me faz mal”, chega a confidenciar Arthur, perplexo com a ingenuidade do irmão, ainda a fugir do sexo e reverberar a utopia cristã. “Ainda tenho medo de possuir meu corpo”, resigna-se Nicolau. O jovem Diegues demonstra segurança contracenando com dois atores experientes.
O Ivo de Antonio de Andrade quebra a densidade da peça com sua ligeireza. Dono de uma butique, sustentando Arthur e agora Nicolau, exerce uma forma de poder que lhe concede companhia na cama. Com Arthur nas mãos, tenta seduzir também o irmão, ainda que em vão. Andrade é afeminado sem carregar na afetação; sem camuflar a solidão da qual o personagem também padece.
Montada por Fauzi Arap, cotado no final dos anos 60 para o papel de Arthur, “Santidade” ganha nesses anos 90 uma aura stanislavikiana que o tempo ofuscou um pouco. Arap é um excelente diretor de ator. Sabe o que quer. Quando a matéria-prima humana é de bom grado, o resultado é um espetáculo vigoroso. A imagem é forte: cama e sofá puídos num cenário que se faz preencher sobretudo pela expressão dos atores, marca maior do diretor.
Trinta anos depois, a atualidade de “Santidade”, finalmente em cena, é o maior indício do poder de fogo de José Vicente com o teatro (“O Assalto”, “Hoje é Dia de Rock”, etc.). Homenageado recentemente em “Ventania”, texto de Alcides Nogueira, dirigido por Gabriel Villela, Vicente sai um pouco da reclusão manifesta para compartilhar da revisão histórica que se vê no palco com sua dramaturgia. E esperar agora por “José Vicente – Virtuose”, peça inédita que encerraria o enfoque religioso em seu repertório.
Santidade – De José Vicente. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Clowne Plaza (rua Frei Caneca, 1360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 20,00. Duração: 90 minutos.
Mário Bortolotto está em três peças
São Paulo – Mário Bortolotto é um dos fundadores do grupo paranaense Cemitério de Automóveis, criado há 15 anos em Londrina (PR).
No momento, ele está envolvido em três trabalhos na Capital: atua nos espetáculo “Santidade” e em “Medusa de Ray Ban” – nesta, com o grupo paranaense, também é autor e diretor. Já no monólogo “Jordan”, ele dirige Lucimara Martins (leia crítica das montagens “Medusa de Ray Ban” e “Jordan” nesta página),que tra o monólogo da americana Anna Reynolds.
TRABALHO
No ano passado, Bortolotto esteve em cartaz na Capital com “Leila Baby”, um dos 20 textos que assinou e montou com o Cemitério de Automóveis.
Depois de mudar de Londrina para Curitiba, o grupo está sediado em São Paulo.
“Jordan” instala um silêncio de crua poesia
São Paulo – Qual a gênese de um criminoso? Em que estágio do passado se manifesta o primeiro sinal de que tal ser humano é propenso a matar, roubar? São questões que vêm à baila depois da apresentação de “Jordan”, o monólogo cortante da americana Anna Reynolds, na interpretação su preendentemente segura de Lucimara Martins.
Na base da vida como ela é, temos a história de Shirley Jones, uma interiorana garota inglesa que na década passada se aventurou pela vida com um sujeito que transava com outras mulheres dentro de casa, lhe dava surras e se tornou pai do seu único filho, Jordan.
Quando consegue separar-se do brutamontes, ela vai morar sozinha com Jordan. Sobrevive vendendo seu corpo.
Meses depois, o camarada volta engravatado, garboso, acompanhado da sua nova mulher. Não bastasse ter desgraçado a vida de Shirley, ele agora quer retirar o que lhe é mais precioso: o filho.
Shirley se vê sozinha e incapaz de proteger Jordan do pai maldito e, de quebra, do Estado que também pede a guarda do filho.
Numa certa madrugada, sai a esmo com o bebê, compra uma garrafa de vodca e algumas aspirinas para dor de cabeça.
Volta para casa e, daí em diante, só guarda na memória o fato de ter engasgado ao ingerir comprimidos e bebida. Naquela noite, viria à tona depois, ela asfixiou seu filho com um travesseiro.
Duro, cruel, com um final arrebatador (Shirley se mata no dia em que é absolvida pela justiça), o monólogo vai transcorrendo como um labirinto. Tanta amargura e delicadeza são expressadas no corpo e na palavra da intérprete.
O texto de Anna Reynolds é uma navalha. “É preciso ser bom para ser cruel”, afirma a personagem.
A fábula da princesa que, ao contrário de Shirley, consegue fugir com seu filho, acaba estabelecendo um paralelo contundente.
A atriz preenche o palco com uma movimentação apoiada somente num banco móvel. Lucimara Martins traz à tona a criança e a mulher; a visionária e a guerreira que cabem dentro de Shirley.
CAMINHO ESTREITO
Quando deixou soprar a vida dentro de si, naquele primeiro passeio de moto com o homem que a jogou no inferno, a personagem real não tinha a mínima idéia de que o “caminho estreito de água até a lua” fosse tão difícil de ser percorrido.
O diretor Mário Bortolotto deixa Lucimara fluindo no espaço cênico com a leveza que o peso de uma existência trágica pode ter. Não há desperdício.
O silêncio e os gestos são trabalhados com coerência. Cenografia e figurino, assinados por Fábio Namatame, são acinzentados, sim, mas com um tratamento dramático que leva em conta a poesia do espaço.
A sonoplastia (baladas folk e blues), também de Bortolotto, servem como “blecautes” a cada avanço de tempo do texto e se ajustam à atmosfera algo etérea do espetáculo.
“Jordan” não comporta aplauso esfuziante ao final. Aqui, a realidade dos descaminhos chega em estado bruto. É transe, nó na garganta.
Lucimara Martins nem vem para a boca de cena revelar-se como atriz que é; prefere recolher sua Shirley na penumbra sagrada do teatro a expô-la a mais uma violência – a violência da luz da sociedade.
Jordan – De Anna Reynolds. Com Lucimara Martins. Direção: Mário Bortolotto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Paulo Emílio (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). Os ingressos custam R$ 12,00. Duração: 50 minutos. Até 14 de dezembro.
“Medusa de Ray Ban” vê do olho do furação
São Paulo – “Medusa de Ray Ban”, a montagem do grupo paranaense Cemitério de Automóveis, estiliza a violência banalizada sem derrapar no sensacionalismo fácil ou na caricatura idem, tão comum nos meios de comunicação. O texto de Mário Bortolotto, aqui também dirigindo e atuando, faz troça das intenções pequeno-burguesas; ri literalmente dos medos de quem é vítima mas, no fundo, conspira para sê-la.
A partir do mito de Medusa, a qual petrifica o olhar, a peça discute a violência contemporânea. Em xeque, a frieza dos assassinos de aluguel. Desde o garoto que deseja contratar um cara para matar sua mãe, até o cúmulo de uma entrevista de um assassino num talk-show a la Jô Soares, o humor negro dá o tom.
A crítica ácida deste “westem spaguetti”, como define um dos personagens, apaga qualquer rastro de esperança cega. “Excesso de amor pode ser mais violento do que um tiro na testa”, observa um rei do gatilho.
Na sua desventura com seres desconectados do meio social, perambulando ao léu pelas ruas da urbe, o dramaturgo Mário Bortolotto atira para todos os lados (a família, a televisão, o ideal romântico etc).
Curiosamente, porém, não dá um tiro em cena, apesar das armas que aparecem aqui e ali.
À vontade no palco nu e decadente da sala do Teatro Brasileiro de Comédia, o lendário TBC, Everton Bortotti, Fernanda D’Umbra, José Pimentel, Pedro Roberto Fiori (impagável o seu Jô) e Bortolotto atuam com desprezo total à convenção.
Vão sempre além, na gestualidade e na fala, reinventando tipos que se aproximam da comicidade dos quadrinhos ou do cinema.
“Quando você for visitar a Medusa, não vá de óculos de ray ban; vá de óculos espelhados”. A sentença final é a perspectiva de quem vê do olho do furação, e não de fora. Perseu se aproximou de Medusa e atingiu seu objetivo: decaptou-a. Quem está disposto a tirar os óculos escuros ao invés de perder as asas para a violência, como a que sofreu a corujá na parábola final do texto?
Medusa de Ray Ban – De Mário Bortolotto. Com a Cia. Cemitério de Automóveis. Terça e quarta, 21h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 165, Bela Vista, tel 606-4408). R$ 10,00. Duração: 70 minutos. Até 17 de dezembro.