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“Diario de Mogi"

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O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de julho de 1998.   Caderno A – 4

Livro “Primeiro Ato” reúne textos publicados pelo ator e diretor do Oficina entre 58 -74

VALMIR SANTOS

São Paulo – José Celso Martinez Corrêa, ou simplesmente Zé Celso, é daqueles poucos que se en­tregam de corpo e alma ao teatro, sem concessões. Já lhe pespega­ram adjetivos de toda sorte -subversivo, preguiçoso, porno­gráfico, para citar alguns. Mas Zé Celso é refratário a ataques, sobretudo àqueles investidos de ódio pequeno-burguês. Ele se esquivou desde picuinhas da classe à perseguição cerrada do regime militar. O que sobressai nos 40 anos do Oficina, hoje Cia. Uzyna Uzona, é a coerên­cia ideológica e estética do ator e diretor e um dos fundadores do grupo.

Os primeiros 16 anos do O­ficina são tema do livro “Pri­meiro Ato – Cadernos, Depoi­mentos, Entrevistas (1958-1974)”, um apanhado do que Zé Celso escreveu naquele pe­ríodo. Sob organização de Ana Helena Camargo de Staal, a o­bra apresenta uma base docu­mental e histórica que ecoa o esforço e a persuasão do diretor do Oficina em registrar a sua é­poca.

Claro, Zé Celso traduziu a sua época, antes de mais nada, no palco, na celebração dos espetáculos que constituem, on­tem e hoje, sempre uma experi­ência particular a cada noite. Mas a maneira como ele deixa jorrar as palavras no papel tem muito a ver com  sua conduta no ensaio ou na apresentação em sim. Seus textos, mesmo quando em tom de protesto, de conclamação, resultam em poesia visceral, esponjosa, desconexa.

Ainda que vá direto à ferida, co­mo na carta aberta ao crítico Sá­bato Magaldi, por ocasião da montagem de “Gracias, Señor” (1972), ainda assim, Zé Celso não perde a graça. Perde a pia­da, mas não a alegoria.

Os textos, alguns semi-cata­taus, foram publicados em jor­nais ou revistas especializados em teatro; na imprensa comum ou, ainda, fruto de depoimentos a estudantes. Ou melhor, nem sempre foram efetivamente pu­blicados. “SOS”, por exemplo, o manifesto lançado logo após a invasão do Teatro Oficina, pela polícia, em 20 de abril de 1974, foi recusado pelas redações de todo o Brasil (e surge aqui, na íntegra, numa das passagens mais contundentes).

Zé Celso discorre também sobre as diferentes escolas. Ro­deado por atores de peso, como Renato Borghi, Etty Fraser, Fau­zi Arap, Célia Helena etc, o di­retor assila o método do russo Stanislavsky, por exemplo, mas não o toma por inteiro e defini­tivo. Bom antropófago, ele pre­fere a mistura de técnicas a par­tir de uma realidade tupiniquim. O mesmo se dá em relação aos americanos do Living Theatre com o happening, com o qual a crítica chegou a rotular o traba­lho do Oficina.

Ao final de “Primeiro Ato”, temos uma aula de resistência. Impressiona como Zé Celso e seus atores “vudizaram”, como ele gosta de dizer, todos os entraves que surgiram no cami­nho do Oficina em seus primei­ros anos – desde truculências até o incêndio do teatro, passando pela pindaíba da trupe. O livro fundamenta a religião te­atral que arrebanhou todos que, um dia, pisaram no terreno da rua Barão de Jaceguai, Bela Vista.

Primeiro Ato – Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958-1974) – De José Celso Martinez Corrêa. Seleção, organização e notas: Ana Helena Camargo de Staal. Editora 34 (tel. 816-6777). 335 páginas. R$ 29,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 21 de junho de 1998.   Caderno A – 4

Texto de Solange Dias harmoniza com direção de Villavicenzio ao retratar drama

VALMIR SANTOS

São Paulo – Em busca do tempo perdido, eis a sina da personagem central de “A Casa do Sol”. Dora vislum­bra a chegada da morte e pro­move uma retrospectiva da sua vida na qual a angústia, desco­bre tardiamente, foi regra.

O texto de Solange Dias, uma das dramaturgas emergen­tes na cena paulista, captura o sentimento de amargura que o­cupa os últimos dias de Dora. Uma mulher como muitas, arrependida de ter desprezado as chances que teve para experi­mentar a felicidade em vida, por mais efêmera que fosse.

Dora casou-se por conveni­ência com um militar. Teve um filho, seguiu o modelo tradicio­nal. Até o dia em que Lucas (Cássio Castelan), um fotógra­fo, colega do marido, a resgata para o universo do desejo.

E essa dicotomia, entre pai­xão e convenção, que está no centro da peça. Dora chega a op­tar pelo rompimento, sim, mas seu destino é de tal forma ema­ranhado que não vinga.

Em certa medida, “A Casa do Sol” lembra a história do filme “As Pontes de Madson”, protagonizado por Clint Eastwood e Meryl Streep. No texto de Solange Dias, vemos a mulher que termina por anular-se, em função das aparências, e só percebe o quanto isso lhe custou na velhice.

A estrutura narrativa recorre ao flashback e interpõe a Dora jovem (Daniel Carmona) com a Dora velha (Ana Ferreira). Esta é quem, de fato, costura a peça.

É através da sua memória estilhaçada que se recompõe uma história de amor e dor, por mais pobre que seja a rima.

“Ah, como o tempo demora a passar! E, no entanto, aquele que já passou, passou tão depressa” – esta é a primeira fala de Dora. O deus Cronos, sem cicatrizes, mandará outros sinais ao longo da peça. “Estou com medo do tempo”, deduz ela, de  novo, agora em pleno dia de casamento. “Se o tempo fosse um filme, eu voltava… Eu cortava!”, consola-se, sempre “com os olhos perdidos no tempo”, como observa o marido, Urbano (Atílio Beline Vaz).

Aglutina-se dramas paralelos. Vitória (Liliana Junqueira), a irmã de Dora, alimenta uma paixão obssessiva pelo sobrinho, Samuel (Emerson Me­neses), castrada pelo pai dele, Urbano.

O rito de passagem de Samu­el, quando se descobre um “ho­mem” nos braços da tia, é dos pontos de maior tensão. Desen­cadeia uma série de aconteci­mentos que vão derrubando, aos poucos, as máscaras de cada um.

A morte que vem buscar Dora é representada pela figura da Menina (Carolina Bonfanti), um misto de anjo de guarda e Emília, a boneca do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”. A relação delas é de muita ternura, parcimônia. É ela, a Menina, quem serve de interlocutora para as memórias de Dora.

Não há como isolar as atua­ções em “A Casa do Sol”. Alna Ferreira e Daniela Carmona passeiam por suas Doras com segurança e envolvimento. Os papéis masculinos correspon­dem aos perfis de Urbano (Vaz na retidão militar), Samuel (Me­neses na gana adolescente) e Lucas (Castelan na utopia pessoal em detrimento do coração alheio).

O diretor Hugo Villavicenzio, que vem de montagens calcadas na exigência física dos atores – fruto da influência do teatro latino-americano, ele que é peruano -, desta vez acentua a palavra e o tempo psicológico de cada personagem.

A movimentação dos atores se dá mais em função do belo casarão onde o espetáculo é encenado, no Parque da Água Branca. Villavicenzio, que tam­bém assina a cenografia, utiliza-se de projeção de vídeo para i­lustrar as lembranças de Dora, em preto e branco, apoiando a narrativa.

A acústica deficiente do espaço não chega a afetar a compreensão do texto. Os figurinos e caracterizações de época (anos 30, 40) são de Vaz. O canto lírico de Lilian Junqueira e o piano de Roberto Anzai injetam um tanto de leveza na trajetória de personagens tão oprimidos, não raras vezes por eles mesmos.

No retrato sem retoques de uma família convencional, “A Casa do Sol” emana a densidade de um García Lorca. O texto e a direção casam-se perfeitamente, extraindo poesia das sombras da alma.

 

A Casa do Sol – De Solange Dias. Direção: Hugo Villavicenzio. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Casarão Sede do Fundo Social/Parque da Água Branca (avenida Francisco Matarazzo, 455, estacionamento gratuito – entrada pela rua Ministro Godoy). R$ 20,00 (nos dias 3 e 17 de julho e 14 de agosto o ingresso equivale a dois quilos de alimento não-perecível ou agasalho). Duração: 100 minutos. Até 16 de agosto.

 

Peça projeta solidariedade com poesia

São Paulo – A caixa de ima­gens cresceu. Não é mais a moldura quadrada, onde os pequenos bonecos são agiganta­dos pela magia gestada pelos seus manipuladores. A Caixa de Imagens, que dá nome ao gru­po, agora espalha seu encanto por todo o espaço cênico.

Em “Tão… Feliz”, os mani­puladores/atores mostram seus rostos em pêlo, assim como as mãos. Estão efetivamente cada vez mais próximos dos bonecos, como a humanizá-los.

A interação se dá também pela voz. Quer através de cançõ­es (“Procuro o silêncio do baru­lho”, diz o verso de uma delas), quer através da pantomima ou de sons onomatopáicos, enfim, cria-se uma extensão vital para seres muito além da inanição, mesmo quando adormecidos num sótão.

Mas a imaginação continua regendo os espetáculos do Cai­xa de Imagens, como sempre o fez nesses quatro anos de atua­ção do grupo.

“Tão… Feliz” reflete maturi­dade e dá margem a novas pes­quisas de linguagem no univer­so dos bonequeiros. A principal resolução vem a reboque do conteúdo dramático das cenas. Tudo começa com um velho pintor em sua angústia para e­xercitar o talento numa metró­pole caótica.

Depois temos o personagem que resume a peça. Trata-se de um mendigo carismático, inofensivo, como muitos que pe­rambulam pelas ruas da cidade. (Ele foi inspirado em mendigo da vida real que, certo dia, fez uma poesia para o grupo após uma apresentação de rua – e nunca mais deu o ar da graça).

Sua vidinha é preenchida pe­la leitura de jornal (alheios, co­mo o inferno, são os outros); mordisca um pão que, a duras penas, tenta reparti-lo; e sofre com o corte em seu pé, depois socorrido com mercúrio cromo por um voluntário da platéia.

Aliás, a cada noite o Caixa de Imagens convida um ator pa­ra contracenar com os bonecos. Duas semanas atrás, foi a vez de Hugo Possolo, um dos palhaços convictos dos Parlapatões, Patipes & Paspalhões.

E tudo se passa no âmbito da pracinha, do banquinho. À mar­gem da vida – o velhinho em sua solidão artística, o mendigo em sua carência material -, ambos celebram o gesto de solidarieda­de que faz a diferença.

Por trás de tanta amargura (a buzina, o choro), resta a poesia, o olhar acalentador de perceber-se no próximo. “Tão… Feliz” é um canto de união. Bebe da nos­talgia de um espaço mútuo de convivência, de respeito. E, de quebra, liberta o passarinho do realejo na ânsia de que ele traga alvíssaras – hoje e sempre, en­quanto há tempo.

Carlos Gaúcho, Mônica Si­mões, Evelyn Cristina e Fábio Coutinho encontraram o tom certo. Os bonequeiros do Caixa de Imagens são atores na acep­ção graúda da palavra. Recriam a mentira dos personagens para construir a verdade que seduz e toca, com equilíbrio, o coração de adultos e crianças. 

Tão… Feliz – Roteiro e direção: grupo Caixa de Imagens. Domingo, 17h e 19h. Teatro Cultura Inglesa/Vila Mariana (rua Madre Cabrini, 413, tel. 549-1722). R$ 10,00. Duração: 45 minutos. Até 28 de junho.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 14 de junho de 1998.   Caderno A – 4

Companhia do Latão atualiza peça de Brecht com talento e técnica de jovens atores

VALMIR SANTOS

São Paulo – Antes do espe­táculo, o público aglome­ra-se no saguão do Teatro João Caetano. A procis­são dos “soldados de Deus” sur­ge no meio da multidão. Depois de breve discurso, apresenta-se Joana, a líder carismática. Os “soldados” então convidam os espectadores a entrar pela lateral externa do teatro, via porta e corredor estreitos. O aperto, ombro a ombro, transmite sen­sação de que a massa é conduzi­da para um abatedouro, feito ga­do. A propósito, é assim que co­meça “Santa Joana do Matadou­ro”, a nova montagem da Companhia do Latão.

Escrita há quase 70 anos, a peça de Bertolt Brecht (1898-1956) guarda uma atualidade impressionante com os tempos que correm. O autor, cujo cente­nário de nascimento é lembrado este ano, tomou alguns clássicos da literatura universal – como Goethe, Hõlderlin e Schiller – para construir uma paródia do i­deal humanista à época, ainda sob efeito do crash de Nova Ior­que em 1929 – aliás, quando a peça começou a ser escrita.

Aqui, Joana está a serviço do Exército da Salvação, entidade de cunho evangélico. Ela prega a não-violência no embate entre operários famintos e patrões que dominam a indústria da carne enlatada na Chicago forrada de gângsters.

O discurso gandhiano de Jo­ana é levado à exaustão. No afã de “mostrar a eles que eles não são maus”, referindo-se aos patrões, ela chega ao ponto de trair seus companheiros boina-pretas em uma greve. Mas depois é“canonizada” pela opção pelos pobres.

Pedro Paulo Bocarra, o rei da carne industrializada – ele não dá um passo sem o aval dos “amigos de Nova Iorque” – é o an­tagonista da história. Mesmo preferindo o cheiro de cavalo ao do “populacho”, vê seu dique capitalista rompido pela “santa” Joana, mulher que lhe provoca certo encanto.

No duplo jogo entre a con­templação da porta-voz dos o­perários e a manipulação desta em favor do próprio bolso – não cede uma nesga sem que lhe se­ja revertido em dobro , Bocarra é a perfeita tradução daquela meia dúzia de cérebros que o­peram a máqui­na capitalista com frieza ím­par.

A atualiza­ção de “Santa Joana dos Mata­douros” é certa­mente um dos atributos que le­vam o pesquisador e tradutor Roberto Schwarz a clas­sificá-la como uma das peças mais importan­tes do século. A­lude, por exem­plo, no Brasil, aos recentes sa­ques de alimen­tos pela popula­ção carente e aos conflitos pela terra.

Na monta­gem da Compa­nhia do Latão, a história ganha um tratamento farsesco, como o dramaturgo alemão sugere. So­bretudo nas interpretações, sempre a recriar o conceito de distanciamento tão propagado pelo Brecht diretor.

Gustavo Bayer capta muito bem o perfil apatetado de Bo­carra. O sentimento de araque, a resignação dissimulada, enfim, um personagem erguido no li­mite entre a comédia desbraga­da e o nonsense. O vilão, por as­sim dizer, é convertido em bu­fão. A empatia está em ser ridí­culo no pódio do poder.

A vocação de mártir de Jo­ana, edulcorada pela condição de mulher, operária e pobre, fi­ca patente na voz clerical da a­triz Débora Lobo e na postura corporal um tanto alquebrada, como se carregasse um fardo, uma cruz, ao longo do espetáculo. Cega em sua crença, a via-crúcis da protagonista lembra a de Jó em sua perseverança.

O elenco, ressalta-se, come­te uma atuação uniforme. O vi­gor, a técnica e o talento são inerentes em cada um dos jovens atores da Latão.

A direção conjunta de Sérgio Carvalho e Márcio Marciano empresta uma dinâmica de es­paço que transcende ao palco i­taliano. “Santa Joana do Mata­douro” inventa o seu espaço-to­tal, físico e imaginário. As ce­nas itinerantes se passam no saguão, do lado de fora, ao ar li­vre (iluminadas pelas chamas do fogo), no palco propriamente e na platéia. A inversão de pa­péis culmina com a entrada do público pela cochia, já captan­do, in loco, a tensão e o sarcas­mo que pontuam a encenação.

Márcio Medina reflete atem­poralidade na cenografia e nos figurinos. O tom predominantemente cinza das roupas e as cor­rentes suspensas retratam o pro­cesso de desumanização subli­mado no texto. A iluminação de Wagner Pinto e a música da du­pla Walter Garcia e Lincoln An­tônio complementam a densida­de que se quer atingir por trás de cada esgar, de cada riso.

Talvez seja esta uma boa de­finição para a Companhia do Latão. Como nos espetáculos anteriores, “Ensaio para Dan­ton” e “Ensaio sobre o Latão”, o entretenimento não vem masti­gado. A erudição cede para um cadinho de coloquialismo, dei­xando fluir o prazer da repre­sentação. Os atores estão à von­tade e não perdem o vigor do i­nício ao fim. Disciplina e matu­ridade raras, diga-se, para criticar a “vida de gado” com veemência.

Santa Joana dos Matadouros – De Bertolt Brecht. Direção: Sérgio Carvalho e Márcio Marciano. Com a Companhia do Latão (Georgette Fadel, Edgar Castro, Maria Tendlau, Ney Piacentini, Otávio Martins, Vicente Latorre e outros). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, tel. 573-3774). R$ 10,00. Até 26 de junho.

 

Grupo lança segunda edição da “Vintém”

São Paulo – A coerência estética e ideológica em assumir a pesquisa teatral como meio, e não fim, garantiram a Sérgio Carvalho e à Companhia do Latão o respeito do público  e da crítica, já a caminho do seu segundo ano.

Desde maio de 97 o grupo ocupa o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, na região central de São Paulo. Dentro do projeto Pesquisa em Teatro Dialético, lançou a revista “Vintém”, publicação que veicula as principais questões que norteam o trabalho do grupo.

O número dois de “Vintém” será lançado amanhã, no Eugênio Kusnet. Um dos destaques desta edição é o texto de Roberto Schwarz sobre “Santa Joana do Matadouro”, peça traduzida pelo próprio.

Também na próxima sexta-feira, dia 19, começa o projeto Latão Musical, que vai reunir novos nomes da MPB, como o grupo Curupira, Bando da Fuzarca, Renato Martins, Paulo Padilha e Sandra Ximenez – esta também dará oficina de expressão vocal para atores. 

 

Vintém – Lançamento do segundo número da revista. Amanhã, às 20h. Lata Musical – Show nos finais de semana. Começa na sexta-feira, dia 19, com o grupo Curupira, às 19h. R$ 10,00. Oficina de voz – Com Sandra Ximenez. Quintas (15h às 17h) e sábados (11h às 13h), a partir do dia 25. Teatro Eugênio Kusnet (rua Teodoro Baima, 94, tel. 256-9463.

 

“Luzes da Boemia” expõe “cicatrizes”

São Paulo – As palavras do dramaturgo e romancista galego Ramón del Valle-­Inclán (1866-1936) penetram nas entranhas. Em seus textos, os personagens raramente pas­sam incólume à espiral em que mergulham. São seres que tran­sitam entre o padecimento sem fim na Terra e a platitude dos céus; ora desesperançosos, ora militando nas fileiras de um Deus presumível.

A curta temporada de “Divi­nas Palavras” em abril, encena­da pela alemã Nehle Frank, com um grupo de atores da Bahia, já introduziu o público paulista no universo onírico e ao mesmo tempo realista de Valle-Inclán. Quem dá as cartas agora é o di­retor William Pereira. Ele mon­tou “Luzes da Boemia”, outra do dramaturgo galego, tão con­tundente quanto. A história do poeta cego e marginal, à mercê da condição miserável em que vive, e sem abdicar da índole ar­tística, resulta em libelo à digni­dade de ser humano.

Max Estrella (Heitor Gold­flus) passa a limpo a sua história naquele que se converterá em último dia de vida. Abandona a fome do lar, compartilhada por mulher e filha, e perambula por uma Madri “absurda, brilhante e faminta”. Quem o guia pelos bares e vielas é o amigo – mas nem tanto – Don Latino de His­palis (Roberto Leite), interlocu­tor dileto no testamento oral.

O legado é de muita dor. “Os olhos são uns iludidos embus­teiros”, filosofa o cego Max Estrella, se autoproclamando um “mero Tirésias”. “Abaixo a lite­ratura do êxtase”, protesta o poeta, desdenhando dos “mole­ques modernistas”. “Onde eu vivo é sempre um palácio”, de­lira o homem miserável. “Eu sou um espectro do passado”, consola-se, por fim.

Mas uma peça que cita Ni­etzsche e Calderón de La Barca não se convalesce somente de niilismo; sinaliza também com esperança. Afinal, como escre­ve Valle-Inclán, as coisas não são como a gente as vê, mas co­mo as recordamos. E o que so­bra de “Luzes da Boemia”, ao final, é a convicção de que o e­xercício de uma ética, por míni­mo que seja, foi e continua sen­do a base para tudo na vida.

Os personagens deformados fisicamente, a sabujice do ami­go traidor, a excrescência do jornalista travesso (atuação hi­lária de Plínio Soares), os inte­lectuais infantilóides, a secretá­ria estúpida, o ministro canalha, o povo esfarrapado que passa fome na rua, enfim, o painel pintado pelo autor é demasiada­mente humano.

O operário Mateus (Olair Coan) que Max Estrella encon­tra na prisão, recluso pela bruta­lidade militar, é o personagem de resistência. E pela dignidade deste que o poeta chora de im­potência e raiva. O abraço dos dois na cela, diante da morte a­nunciada, é tocante.

Serve como contraponto ao abraço frouxo e distante que o próprio Estrella experimenta quando encontra um amigo de outrora, hoje enfastelado na ca­deira de ministro. Vinte anos depois, não sobrou nada dos i­deais que trocavam no passado.

Há uma dureza física e, ao mesmo tempo, uma fragilidade iminente na interpretação de Heitor Goldflus. Seu Max Es­trella não é arrogante nem pie­doso. A couraça, no entanto, vai-se desmontando aos poucos. A visão retomada à beira da morte, ele tremendo, sugere uma brecha para o porvir. Uma atuação circunscrita ao universo interior. Mas não necessaria­mente intimista – há uma reser­va no personagem que Goldflus faz questão de manter.

Não se trata de espetáculo fácil. Como o fez em “Sinfonia de Uma Noite Inquieta – Ou o Livro do Desassossego”, Pereira soube cavocar a alma esmeri­lhando a palavra, o gesto e a plasticidade cênica.

A dramaturgia de Silvana Garcia, os figurinos de Leda Se­nise, a iluminação de Guilher­me Bonfanti e a cenografia assi­nada pelo próprio diretor, enfa­tizando o vazio no espaço, re­sultam numa montagem bem cuidada. O trabalho já valeria por reluzir a poesia de Valle-In­clán neste final de milênio, a lembrar as cicatrizes eterna­mente abertas, o lado escuro de nossas vidas. Mas “Luzes da Boemia” vale muito mais por­que é teatro maior, com poder brutal para emocionar.

Luzes da Boemia – De Ramón del Valle-Inclán. Direção e tradução: William Pereira. Com Angela Barros, Carlito Salvatore, Clarissa Drentchinsky, Cristina Rocha, Gustavo Engracia, Ivan de Almeida, Newton Milanez, Pedro Paulo Eva, Telma Vieira e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Arthur Azevedo (rua Paes de Barros, 955, Moóca, tel. 292-8007). Duração: 120 minutos. R$ 10,00. Estacionamento gratuito. Até 28 de junho.

Reestréia a montagem “Sinfonia”

São Paulo – Um dos mais belos espetáculos da temporada passada reestreou no Teatro Faap, na Capital, em horário alternativo.

“Sinfonia de Uma Noite Inquieta – Ou o Livro do Desassossego”, que o diretor William Pereira – o mesmo de “Luzes da Boemia” – adaptou da obra de Fernando Pessoa, constrói uma espécie de poema cênico, onde os quatro intérpretes (Adriana Mendonça, Patrícia Zuppi, César Guirao e Frederico Foroni) revezam-se na pele do escritor português.

O espetáculo reflete sobre o negativismo na obra de Pessoa.

A adaptação foi fundo na evanescência do “Livro do Desassossego”, o diário que só veio a público em 1982, 47 anos depois da morte do poeta.

O Fernando Pessoa que está no palco, quadruplicado, é bastante representativo do homem que mutiplicou-se porque sua literatura era maior que e1e.

Sinfonia de uma Noite Inquieta – De Fernando Pessoa. Adaptação e direção: William Pereira. Terça e quarta, 21h. Teatro FAAP (rua Alagoas, 903, Pacaembu tel. 3662-1992, estacionamento gratuito). Duração: 80 minutos. R$ 20,00. Contato para escolas: tel. 258-6740. Até 24 de junho.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 31 de maio de 1998.   Caderno A – 4

“Boemia e Política” narra trajetória do ator, escritor, cantor e compositor

VALMIR SANTOS

São Paulo – Tal­vez seja um tanto difícil, para as novas gerações, imaginar o manancial memorialístíco que está por trás daquele senhor de cabe­los grisalhos, aparência frágil, em plena forma nas novelas da Globo. Mário Lago comporta o epíteto de artista total. Aos 87 anos, o co-autor do samba “Ai, Que Saudades da Amélia” ga­nha uma biografia que, pelo in­tertítulo –  “Boemia e Política” – dá conta da transcendência poé­tica e humana com a qual o ator, escritor, cantor e compositor vem pautando a vida.

A historiadora Mônica Vel­loso fez um trabalho de fôlego para reconstituir a trajetória do artista. Além de um total de 15 horas de entrevistas, nas quais Lago falou à vontade, deixando fluir as reminiscências, a autora escarafunchou o Centro de Do­cumentação da Funarte, o Mu­seu da Imagem e do Som (MIS), a TV Globo, o Arquivo da Rá­dio Nacional e a Biblioteca Na­cional. Sem contar a colabora­ção fundamental dos filhos. Fo­ram pinçados episódios e fotos inéditas que vêm a público.

Ainda garotinho, Lago já to­mava aulas de piano com Lúcia Villa-Lobos, mulher do célebre compositor. Ainda que um tanto arredio à música clássica naquela época, ele, como bom carioca da gema, já tendia para enveredar pelas vielas do morro da Lapa. O jovem consumiu ali a sua tendência para a boemia. Naqueles românticos anos 20 (finalzinho) e 30, despontou como um bamba.Meteu-se no meio da plebe, por assim dizer. Frequentou ruas, cafés, cabarés. Bebeu da fonte popular, contrariando os pais que batiam pé sobre as errâncias daquele moço.

Em 1942, uma parceria com Ataulfo Alves rendeu “Ai, Que Saudades da Amélia”. No início, a música não encontrava intérpretes. Moreira da Silva chegou a desdenhar: pre viu que se trata­va mais de uma marcha fúnebre do que carnavalesca. Ledo Engano. Ataulfo gravou ele mesmo, acompanhado de Jacó do Bandolim e grupo Academia do Samba. “Amélia” explodiu e tornou-se um dos marcos da nossa música popular. Ao ponto do “Aurélio” citá-la como verbete: “Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”.

Só mais de uma década depois Lago revelou que a Amélia da música existia de verdade. Era a empregada de Aracy de Almeida e seu irmão, Almeidinha. “Com essa explicação, desiludi milhares de Amélias que se julgavam homenageadas. Mas, em compensação, ganhei tranquilidade doméstica. Minha esposa até hoje era cismada com essa tal de Amélia…”, conta.

O ingresso na rádio aconteceu pelas mãos de Oduvaldo Vianna, que gostou da voz de Lago em um espetáculo teatral e o convidou para trabalhar na Pan Americana. O artista não só assimilou os macetes do novo veículo, chegando a comandar programas de auditório em sua fase de ouro, como teve em Vianna, dos mais importantes dramaturgos do país à época, uma escola e tanto para o teatro. Já vinha de escrever revistas desde 1993, mas dali em diante passou a esmerar-se nos diálogos.

Depois de 17 anos de rádio – a última em que deu expedi­ente foi na Nacional -, Mário Lago mergulha de vez na tele­visão. Desde 1954 fazia uma coisa aqui, outra ali. Mas o lan­ce decisivo foi sua entrada na Globo, em 1966, na novela “Sheik de Agadir”. Um dos seus melhores momentos, lem­bra, foi em “O Casarão” (1976), na qual interpretava A­tílio. Foram, ao todo, cerca de 50 novelas – atualmente ele po­de ser visto na minissérie “Hil­da Furacão”. O personagem? Olavo, claro, um boêmio ena­morado da protagonista.

Mas Lago nunca foi muito condescendente com o veículo-mor das massas. “A TV é fascis­ta. Ela não dá o direito de so­nhar, de construir os seus so­nhos. A TV apresenta um galã e diz: o galã é esse! Você não tem o direito de imaginar que seja outro. O jardim não é outro, se­não este. É uma postura fascista da TV, ela tira a ilusão do sonho, da criatividade e da imaginação”, declarou em 1978, à revista “Status”. Como se vê, nada mudou.

Lago sempre se distinguiu do ramerrão de artistas globais que pa­recem viver em outro país. Jamais abandonou a militância política; fez jus à coerência ideológica. Foi ligado ao Partido Comunista do Brasil (PCB) durante 50 anos. Experimentou sua primeira pri­são em 1932. Para se ter uma i­déia do envolvimento, um co­mício serviu de palco para o pri­meiro encontro com Zeli, a mu­lher com quem viria a se casar depois, mãe dos seus cinco fi­lhos.

O período mais brabo se deu a partir do golpe de 64, quando foi detido várias vezes, perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Lago era do tipo que botava ordem, sim, nas quatro paredes do cárcere: delegava tarefas, pedia para os amigos ministrarem cursos de acordo com a especialidade de cada um. Enfim, transformava o xa­drez em local de entretenimen­to social e humano, por mais duro que fosse. Nos anos 80 e 90, Lago participou de campa­nhas do Partido dos Trabalha­dores (PT), demonstrando sua simpatia com a candidatura de Lula.

Cinema também foi praia frequentada por Lago. Atuou em filmes como “Terra em Transe” (1967), de Glauber Ro­cha, e “São Bernardo” (1973), de Leon Hirszman.

Enfim, vai-se falar de Mário Lago em tudo quanto é mani­festação cênica, radiofônica ou visual. Ele continua rodando o País com seu show intimista, onde relata “causos” e canta su­as composições diletas.

Em recente entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, declarou que o melhor conselho para os jovens é viver tudo que tem para ser vivido. Pense menos e vá à luta, realize- foi mais ou menos a mensa­gem com a qual Lago fechou o programa.

Lendo “Boemia e Política”, compreende-se a extensão da sua filosofia de boêmio, ideólo­go e artista. Lago aprendeu cedo que não vale a pena dissociar o prazer do curso da vida já um tanto dolorida, da concepção ao crepúsculo.

Mônica lança mão da lin­guagem acadêmica e deixa vir à tona o coloquial, inserindo falas do biografado a todo ins­tante, como a trazê-lo para o primeiro plano no “diálogo” com o leitor. A pesquisa é de­talhada e está longe do enfado. Ressalta-se o “álbum” de foto­grafias, dividido em fases. Te­mos, por fim,. um homem que vive há 87 anos e não perdeu o sorriso maroto. (Valmir Santos)

 

Mário Lago – Boemia e Política – De Mônica Velloso. Editora Fundação Getúlio Vargas (avenida 9 de julho, 2.029, tel. 281-7875). 402 páginas. R$ 29,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 24 de maio de 1998.   Caderno A – 4

Primeira montagem do texto de Tchecov prima por direção equilibrada e boas atuações

VALMIR SANTOS

São Paulo – Mesquinhez e idiossincrasias à parte, o tédio desenha a sombra dos personagens de “Iva­nov”. O sentimento é citado pe­lo menos sete vezes no espetá­culo traduzido e dirigido por. Eduardo Tolentino de Araújo, com o grupo Tapa.

Um século atrás, o autor rus­so Anton Tchecov já diagnosti­cava o enfado subliminar no universo dos negócios e da famí­lia. É paradoxal que, às portas do terceiro milênio, o poder se­gue espelhando a falência hu­mana. Constata-se: não há avan­ço
tecnológico para o tédio.

Ivanov é um ser completa­mente ilhado em si. “Viver para mim é uma tortura”, resume. O fazendeiro vai à bancarrota e, a reboque, questiona a relação com a mulher Anna, que é judia. Casou-se mais em função de um do­te de família – que nunca veio – do que por amor. Não admite, mas é o que Anna lhe joga na cara.

Em plena crise, o “homem bom, mas tão infeliz” experimen­ta uma nesga de vida. A jovem e bela Sacha o seduz. Num primei­ro momento, ele resiste. Não crê que o destino lhe conceba tal ale­gria à beira do abismo. Sacha, no entanto, o envolve de tal maneira que catalisa sua paixão.

Foi a gota d’água para Anna. Ela se convalesce na cama e co­mo que culpa Ivanov pela iminência da morte. Culpa capitali­zada pelo médico Lvov, racional até a medula: “Você está matan­do sua mulher”, sentencia. Foi a pá de cal para m Ivanov prostrado com as “cruzes” sobre os ombros.

O drama de Tchecov é tido como uma das peças menores, se comparada a “O Jardim das Cerejeiras”, “As Três Irmãs”. A montagem do Tapa é a primeira do texto de que se tem notícia no Brasil.

Só úm grupo com a estabili­dade do Tapa poderia trazer “Ivanov” à cena com rigor e inventividade. Tolentino passou cerca de sete anos trabalhando na tradução, entre um projeto e outro. Esmerou-se tanto na pa­lavra quanto na concepção e di­reção do espetáculo.

É preciosa a sua ênfase equi­librada na comicidade que per­passa a história. O elenco, de entrega e disciplina incomuns, é o grande responsável. Genézio de Barros (Pavel Lebedev), em especial, tem o público nas mãos com seu beberrão patético, no qual despreza o tipo fácil, de gestos trêmulos ou andar balança-mas-não-cai. Barros encontra o eixo até quando seu personagem surge como interlocutor do melancólico Ivanov.

Outros coadjuvantes em­prestam brilho e leveza ao dra­ma. O pão-durismo de Zinaida (Elizabeth Gasper), o riso hebe­niano de Marfa (Cristina Casci­oli), as fanfarronices de Cha­belski (Milton Andrade) Kossykh, (Chico Martins), Bor­kine (Riba Carlovitch), Gavrila (Candido Lima) e Avdotia (So­nia Oiticica), enfim, compõem um paralelo bem estruturado à densidade do drama.

Coube a Zécarlos de Andrade (Ivanov), Denise Weinberg (Anna) e Brial Penido (Lvov), contrabalanceados pela vivacidade de Carla Carvalho (Sacha), a cumplicidade com a tensão do texto. São papéis estratégicos e bem defendidos.

Andrade passa praticamente todo o espetáculo com o corpo arqueado, olhar distante, transmitindo a alma perturbada de Ivanov. Suas reações são conti­das, duras, quer diante da exuberante Sacha, quer na hora em que decide pôr fim à vida.

Denise expõe uma Anna in­segura e não menos perdida do que Ivanov. São aparições cur­tas, mas repletas de emoção. A atriz espelha no rosto a dor da perda do marido que mentiu ao jurar amor e da vida que se esvai por causa da doença.

Penido faz jus à figura mais energética da peça. O médico Lvov é de uma correção política atroz. Seu discurso asséptico privilegia a razão e o próprio umbigo. Em nome da ordem e da moral, atropela quem lhe cruza o caminho. A postura corporal de Penido, ao contrário de Andrade, é ereta, as custas do poder do conhecimento.

Clara simboliza com sua Sa­cha o único feixe de luz, de espe­rança. Não é à toa que passeia pelo palco com seu vestido bran­co, em boa parte do espetáculo. A atriz dá conta da delicadeza e determinação da personagem.

O diretor Tolentino, como se disse, não prima apenas pelo cuidado com o verbo. “Ivanov” tem um acabamento visual que harmoniza perfeitamente com o texto. A cena da festa, em que cerca de 13 personagens estão em semicírculos para a caixinha de presente que solta fogos de artifício, traduz a “limpeza” do cenário (Renato Scripilliti) dos figurinos (lola Tolentino), da iluminação (Guilherme Bonfanti) e da própria direção dos atores. É um instante mágico, em suma.

A maturidade do Tapa não vem de agora. Há cerca de dois anos, por exemplo, sua versão para “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, fez páreo com a histórica montagem de Ziembinski (43). “Ivanov”, en­fim, é um exercício de elegância da arte teatra1, em que pese o tédio dos dias que correm.

 

Ivanov – De Anton Tche­cov. Tradução e direção: Eduardo Tolentino de Araújo. Com Grupo Tapa (André Garolli, Inês de Carvalho, Paulo Marcos, Sandra Corveloni, Tony Giusti e outros). Quinta a sábado, 21h, domingo, 18h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 259-0086). Estacionamento com desconto em frente ao teatro. Duração: 135 minutos.

 

“Tio Vânia” também execra “vida besta”

São Paulo – Outra boa mon­tagem de Tchecov está em cartaz na Capital. Estrelada por Renato Borghi, “Tio Vânia” (1897) foi escrita um ano antes de “Ivanov” e também apresenta o enfastio pela vida que, aliás, caracteriza muitos personagens do dramaturgo russo (Treplev e Nina, em “A Gaivota”, não são diferentes).
 

O Tio Vânia interpretado por Borghi é quem se vitimiza mais pela “vida murcha” em que está metido. “Pelo jeito, tédio e pre­guiça pegam”, afirma a certa al­tura, em um dos muitos lampe­jos de sarcasmo e ironia que pontuam o texto.

Há também o médico, Dr. Astrov (Luciano Chirolli), outra figura recorrente nas obras de Tchecov – ele que, em vida, também abraçou a medicina. E aqui, o conteúdo autobiográfi­co, ao que parece, é acentuado.

Espécie de alter-ego do es­critor, Astrov reverbera a cons­ciência humanista, verdadeiro poço de indignação que é (há um século, já saía em defesa da ecologia).

Cansado da “vidinha” que leva, reclamando do tempo “besta” que perdeu e decepcio­nado com a “decadência da civi­lização”, o médico é a melhor tradução do mal-estar do século passado, que se repete agora nesse fim de milênio.

Mas, em “Tio Vânia”, os personagens não passam pela vida somente “em férias”. As perturbações da alma e do espírito também emprestam seu qui­nhão de água ao moinho que move corações e mentes.

Na órbita de Tio Vânia, flutu­am seu objeto do desejo, Yelena (Marina Lima), e sua âncora para a existência, a sobrinha Sônia (Leona Cavalli). Durante anos ele cuidou dos negócios do cunhado Serebriakov (Wolney de Assis), professor universitário aposenta­do e decadente, que foi casado com sua irmã, falecida, e hoje es­tá nos braços da bela Yelena.

Farto de tanta submissão, Tio Vânia se rebela contra o cu­nhado e passa sua vida a limpo. Ao ponto da loucura, provoca um fuzuê no solar de Serebria­kov, com direito a disparo de es­pingarda – lamenta não ter acer­tado nenhum tiro no alvo prete­rido, o cunhado. É a deixa pas­telão, por assim dizer, para um drama de vasta matéria-prima.

A montagem, ao contrário de recente versão para o cinema, acerta em não investir tanto nesta sequência. Prefere distribuir o humor corrosivo nos devaneios de Tio Vânia e do amigo e fazendeiro decadente Tielhêguim (Abrahão Farc), ambos emanan­do forte carisma.

Borghi, com seus 40 anos de palco, e Farc são presenças mar­cantes. Ainda que o primeiro repise a matriz vocal e gestual de papéis anteriores (seu Tio Vânia, notadamente, lembra muito o recente e não menos delirante Galileu),o que sobressai é a voz e o corpo da experiência de quem parece brincar o tempo todo no espetáculo com as noções de tempo e espaço.

O médico de Chirolli não fi­ca atrás. O ator dá consistência à utopia de Astrov, mesmo quando esta desmorona diante dos olhos do espectador. Há um equilíbrio entre distanciamento e aproximação. Quando desde­nha o amor de Sônia, ou quando reaviva a chama amorosa diante de Yelena, são momentos distin­tos, mas ligados por um fio do homem que enxerga além mas se encontra em busca de um sentido para a vida.

Mariana Lima (Yelena) e Le­ona Cavalli (Sônia) complemen­tam seus extremos de mulher com força e delicadeza. São per­sonagens que anulam os concei­tos exteriores de beleza para uni­rem-se na essência do que são; a cumplicidade feminina é um alento no reino tchecoviano da desesperança. As atrizes perscru­tam a dor de amar e de viver com magnetismo.

Vindo de atuações e, recen­temente, experimentando a di­reção no grupo Teatro Promís­cuo, o jovem mogiano Élcio No­gueira vai, aos poucos, domi­nando o ofício. Aqui, ele dispensa o formol e opta pela a­proximação do público.

Peca, porém, ao forçar a “carnavalização”, prejudicando o ritmo em certos momentos. “Tio Vânia” já possui seu con­teúdo anárquico – aliás, parado­xalmente, bem explorado no es­petáculo.

Tio Vânia – De Anton Tchecov. Direção: Élcio Nogueira. Com TeatroPromíscuo (Geisa Gama), Jolanda Gentilezza e outros). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brasileiro de Cómedia – Sala TBC (rua major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 3106-4408). R$ 12,00. Duração: 120 minutos. Até 2 de agosto.

Tchecov é montado no Rio e SP

São Paulo – Em tese, não há motivos para efemérides. ­Anton Tchecov nasceu em 1904. Mas vive-se um “boom” de montagem das peças do dramaturgo russo. “Ivanov”, com o grupo Tapa, e “Tio Vânia”, estrelada por Borghi, já estão em cartaz. Mas vem mais por aí, na temporada carioca.

“Jardim das Cerejeiras”, dirigida por Cláudio Mamberti, deve estrear no Rio ainda este mês. Em outubro, é a vez de dupla versão de “As Três em Irmãs”, com respectivas direçõ­es de Enrique Díaz e Bia Lessa.

Se se quiser encontrar uma razão para a evocação de Tchecov, pode-se lembrar que foi em 1898 que o Teatro Artístico de Moscou, o lendário TAM, então dirigido por Constantin Stanislavski, levou à cena “A Gaivota” (1896) pela primeira vez.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998.   Caderno A – 3

VALMIR SANTOS

São Paulo – O diretor Oswaldo Gabrieli e seu grupo, o XPTO, já inscreveram o nome na história do teatro brasileiro com a marca da inventividade. Seus espetáculos são hipercoloridos com bonecos em formatos mais variados e estranhos, num exercício ­geométrico que tem mais a ver com o espírito lúdico do que propriamente com teorias.

“Buster, o Enigma do Minotauro”, um dos trabalhos mais premiados de 97, segue em cartaz no Teatro Popular do Sesi na­ Capital, com entrada franca. Até final de junho, dá tempo de assistir ao infanto-juvenil que prima pela beleza do cenário, dos figurinos e pelas atuações ­com ênfase na linguagem do cinema mudo.

O XPTO começa o espetáculo projetando numa tela trechos filmes do comediante americano Buster Keaton (1895-1966). As imagens, e branco, preparam o espírito do espectador – adulto ou mirim – para o que virá a seguir.

Trata-se da história do jovem Buster (Wanderley Piras), que se mete em várias confusões graças a um Minotauro, encarnado por dois atores (Sidnei Caria e Guto Togniazzolo), que vive  atravancando seu caminho.

Uma das passagens mais engraçadas é quando o pobre Buster é encarcerado. No presídio, ele acaba driblando os presos antigos, que se metem a espertos e tentam aproveitar-se do novo hóspede da cela.

A montagem foi muito feliz em dividir o personagem em três. Além de Piras, Buster ganha dois clones interpretados por Angelo Madureira e Ednaldo Eiras. O trio responde por momentos hilários, em que a própria Anabela não sabe distinguir quem é seu namorado.

Como não poderia deixar de ser, Gabrieli presta uma homenagem também a Charles Cha­plin, que abrilhanta ainda mais o universo cômico que “Buster” traduz no palco, recorrendo à técnica do clown.

São, ao todo, 12 atores em cena – desde jovens empenhados a nomes tarimbados, como Cleber Montanheiro e Dadá Cyrino, vindos de espetáculos musicais. Aliás, aqui o gênero é bastante explorado, com direito a coreografias, ainda que breves.

Predominam, no entanto, as aventuras de Buster, em formato que se aproxima bastante dos filmes em preto e branco – tudo – muito rápido, vapt-vupt, como num videoclipe -, apesar do colorido dos figurinos e do cenário, basicamente formado por painéis
móveis.

Em seus quase 15 anos de formação, o XPTO dá mais um exemplo de como a multiplicidade de linguagens (teatro, dança, música, bonecos e animação de objetos) pode ser concebida sem muito virtuosismo técnico. Em “Buster”, tudo flui com o rigor e a magia das caixas de soldados de chumbo. 

Buster, O Enigma do Minotauro – Concepção e direção: Oswaldo Gabrieli. Com Grupo XPTO (Gerson Esteves, Helzer Abreu, Márcio Branco, Roberto Camargo etc). Recomendado para crianças a partir de 8 anos. Sábado e domingo, 11h e 14h. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, tel. 284-9787). Grátis (ingressos distribuídos com uma hora de antecedência). Espetáculos para escolas: tel. 284-4473. Duração: 75 minutos. Até 28 de junho.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 17 de maio de 1998.   Caderno A – 4

Dirigido por Rojas, Pombas Urbanas cristaliza processo de grupo em sua terceira peça

VALMIR SANTOS

São Paulo – “Ventre de Lona”, terceira monta­gem do Pombas Urbanas, consolida o trabalho de pesqui­sa que o grupo desenvolveu nos últimos oito anos, desde sua cri­ação em São Miguel Paulista, na zona leste da Capital. Para quem assistiu a “Os Tronconenses” (91), já encenado no Municipal de Mogi, e a “Mingau de Con­creto” (94), este um espetáculo de rua, o crescimento é patente.

Afinal, é o primeiro traba­lho, por assim dizer, profissio­nal do Pombas. Suas montagens anteriores tinham base amado­ra, sobretudo em relação aos e­lementos visuais (cenografia, iluminação, figurino).

O que ocorre agora é uma simbiose entre a preparação do ator, característica recorrente do grupo, com outros elementos de cena, não menos fundamentais.

Há uma melhor compreensão do texto – inicialmente batizado “Funâmbulo” e depois transfor­mado em “Ventre de Lona”. A dramaturgia de Rojas, peruano radicado no Brasil há 23 anos, é pontuada pelo realismo fantásti­co presente em obras de García Marquez, por exemplo.

Com a incrementação da lin­guagem visual, o espetáculo consegue ser mais claro em seus planos de sonho e realidade; in­clusive nos planos espaciais, já que os personagens Fu e Serzi­nho, vez ou outra, caminham pela corda bamba e travam diálogos onde um se situa no alto e o outro no chão.

Oscilando entre a tragicomé­dia – gênero ambíguo no qual o Pombas parece se situar melhor, como se viu em “Os Tronconen­ses” – e o drama, “Ventre de Lo­na” apresenta uma história mu­ito peculiar.

A história de Fu (Adriano Mauriz), abandonado ainda be­bê à porta de um velho teatro. Criado pelos fantasmas que ocupam o antigo prédio – fantas­mas de grandes estrelas do tea­tro que passaram por aquele pal­co -, Fu cresce envolto em uma “bolha”, distante da realidade de seres humanos como ele.

Quem cuida do garoto são Serzinho (Marcelo Palmares), Fedegoso (Paulo Carvalho Jr.) e o Coro, todos espíritos de artistas do passado.

Graças a eles, Fu é alimenta­do e aprende tudo sobre o circo e o teatro. Ensinam-lhe, por exemplo, a se equilibrar no ara­me.

Por volta dos 10 anos. Fu es­tabelece seu primeiro contato com a vida real. Uma menina de rua, a Mi (Marta Guedes), inva­de o local através de um buraco, em busca de teto. O choque, num primeiro momento (exis­tem pessoas como ele, de carne e osso), resulta depois em afei­ção. Fu se enamora de Mi, pro­vocando ciúmes nos fantasmas adotivos.

A esse fio da meada, Rojas acrescenta histórias paralelas como a da Mulher da Casa (Ju­liana Flory), que resiste a mais um despejo; a da Pipa (Kátia Alexandre), única maneira do menino Fu transitar entre o passado e o futuro; e a do Ho­mem Alado (Palmares) e sua cachorrinha Mary (Kátia), his­tória na qual o primeiro tanto quis aprender a voar que lhe nasceram asas nas costas e ago­ra ensina o mesmo à sua me­lhor amiga.

Absurdas, mas nem tanto, as situações criadas pelo autor ganham lirismo e encantamen­to em cena. Há um momento em que Fu lembra que via o mundo através do umbigo da barriga da mãe. Aqui fora, ele não tinha medo da morte, mas da vida.

O crescimento – pessoal e ar­tístico – dos atores do Pombas é uma grata constata­ção para quem os a­companha desde 1989. Palmares se destaca pela expres­são corporal de tra­ços primitivos, pela pintura que vai dos pés à cabeça raspada, e pela própria nature­za do seu Serzinho, personagem carismá­tico que não é nada mas é tudo.

Carvalho Jr. vai em direção contrária: menos expansão, mais introspecção. Como Fedegoso (es­pírito de um ator que morreu queimado no teatro) e Homem Bí­lis (torcedor fanático, marido da Mulher da Casa), o ator combi­na, chaplinianamen­te, o peso e a leveza da existência.

Mauriz, o caçula do elenco, ainda car­rega o estigma das crianças de “Os Tronconenses”. Parece-lhe difícil romper com a máscara da­queles personagens. Sobretudo nos mo­mentos em que Fu se vê às voltas com sen­timentos demasiada­mente humanos, co­mo no reencontro com a mãe e no en­volvimento amoroso com Mi. No entanto, Mauriz tem a seu fa­vor o brilho dos olhos a todo instante e a­quela entrega em ce­na que ganha qual­quer espectador.

Marta buscou re­ferências nas meninas de rua para construir sua Mi. A composição tem consistência, mas ainda falta maior proximidade da atriz com a personagem. Ela às vezes che­ga lá, mas recua. E o texto in­dica que a história de Mi, fave­lada e mãe aos 11 anos, é mais profunda.

Kátia encarna uma Pipa, es­se brinquedo tão frágil que cri­anças e adultos empinam nos céus. Tanta subjetividade é ma­terializada em movimentos pela intérprete, no diálogo emocio­nante com Fu. Ele descarrega a linha para que ela voe cada vez mais longe a fim de encontrar a mãe do garoto. É uma cena to­cante.

Juliana Flory tem em suas mãos a carga propriamente dramática de “Ventre de Lona”. Faz Jéssica, a garota que abandona Fu, e a Mulher da Casa, a quem o menino identifica como sua mãe no futuro. São papéis viscerais, de grande carga existencial.

Juliana não os domina ple­namente, mas transmite o desespero diante dos cruéis desígnios do destino.

A direção de Rojas, mais uma vez, privilegia o instrumental do ator. O conteúdo dos gestos, da movimentação do elenco, do encadeamento das cenas, tudo depõe a favor do intérprete.

O despojamento também está presente na cenografia e no figurino de Márcio Tadeu. Cercado por lonas pintadas com motivos, ao que parece, rupestres, autóctones, um guarda­-roupa no centro do palco serve como “túnel” de onde surgem os personagens e para onde eles voltam, tal qual uma caixa de pandora.

A iluminação de André Boll dá corda ao imaginário que a peça propõe. São marcações precisas, distante da estilização gra­tuita. O mesmo ocorre com a sonoplastia, que traz, entre outras, composições de Tom Zé.

Com seu caráter quase artesanal, onde tudo se desmancha e ergue, onde o efêmero ganha status de infinito, “Ventre de Lona” dá conta de conjugar a sua poesia cênica. (Apesar do problema concreto da voz, com seus altos e baixos, que merece prioridade daqui para frente). O espetáculo cristaliza especifici­dades de um grupo estável – como a gana, o respeito e a hones­tidade com que o Pombas pisa o palco. Premissa de grandes ar­tistas.

Ventre de Lona – Texto e direção: Lino Rojas. Com Pombas Urbanas. Quinta a domingo, 20h. R$ 7,00 (quinta e domingo) e R$ 15,00 (sexta e sábado). Centro Cultural Elenko (rua Cardeal Arcoverde, 2.958, Pinheiros, tel. 870-2153). Até 28 de junho.

 

Texto e montagem se chocam em peça

São Paulo – Escrita e dirigi­da pelo jovem Samir Yaz­bek, “Antes do Fim” é pre­judicada, tudo indica, pela du­pla função do autor. Yazbek não consegue estabelecer um distan­ciamento suficiente entre seu texto e o que concebe para o pal­co. A sobreposição de planos da história complica ainda mais seu ritmo em cena.

A peça abre com o velório de Rodrigo, que matou a namorada Luciana e suicidou-se em segui­da. Tadeu, um dos melhores a­migos do rapaz, matuta em compreender a tragédia. E ele quem funciona como narrador para recapitular o namoro de Rodrigo e Luciana, na forma de flashback.

Daí para frente, acompa­nhamos a gênese do relacio­namento, sua ascensão e queda. A reconstrução do crime passional instiga. Mas o autor abre tanto o leque pa­ra desenhar as personalida­des conflitantes de Rodrigo e Luciana que o enredo torna-se maçante (tem os pais dele, o melhor amigo “do bem”, o melhor amigo “do mal”; e tem a melhor amiga dela, conselheira de plantão).

Na ânsia pela minúcia, o tex­to de Yazbek peca por passagens inverossímeis, ou pelo menos montadas assim. O encontro de Rodrigo com a enfermeira e o de Luciana com Ivo soam artifi­ciais, sobretudo pela ligeireza dos diálogos.

Mas o entrave maior está na figura de Tadeu (Wagner Reixelo). Todo vestido de preto, ele surge como um gu­ru espírita. A fala com auxílio de microfone torna sua voz mais etérea, corrobrada pela música new age ao fundo. Quando se condói ao final, i­maginando os tiros dispara­dos e perguntando ao Rodri­go, já morto, “Por que você não me ouviu, cara?”, então a peça descamba de vez para o tom religioso, com direito a mensagem do falecido para Tadeu “seguir em frente”.

Nessa “equação de várias variáveis”, como diz Tadeu a certa altura, “Antes do Fim” não apresenta grandes atua­ções. Os protagonistas Ro­drigo Penna (Rodrigo) e Eh­sa Nuiiez (Luciana) são in­térpretes que seguem à risca o perfil dos personagens e não têm impacto. O restante do elenco também se esfor­ça, mas os papéis não aju­dam, porque deslocados do eixo principal.

O rigor da marcação de pal­co, por conta de um cenário (Paulinho de Moraes) que traz um tablado, ele também, dividi­do em vários planos, em escala piramidal, também contribui decisivamente para o esquema­tismo que toma conta dos ato­res. Há uma tensão constante, que não é dissimulada sequer na cena em que o elenco deveria surgir mais à vontade: quando Rodrigo vai com um amigo à boate.

Yazbek poderia ter criado um torvelinho de paixão e ciú­mes menos complicado.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 10 de maio de 1998.   Caderno A – 4

VALMI
R SANTOS

São Paulo – Depois de romper a parceria de dez anos com Antunes Filho, no final do ano passado, J. C. Serroni, 47 anos,começou a tirar da prancheta seu sonho recorrente em 21 anos de palco: o Espaço Cenográfico.

Há três meses ele encontrou uma pizzaria abandonada anexa ao Teatro Eugênio Kusnet, a poucas quadras do Centro de Pes­quisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação; investiu R$ 31 mil do próprio bolso para reformas no prédio; e inaugurou na última terça-feira o seu laboratório permanente de cenografia, figuri­no, arquitetura teatral e outros elementos visuais. “Poucas pessoas no Brasil estão dispostas a fazer o que estou fazendo”, afirma Serroni a O Diário. “E faço não por mim, mas pela ce­nografia brasileira.” A seguir, os principais trechos da sua entrevista.

 

Diário – Por que dei­xou o CPT?

J. C. Serroni – Coinci­diu, no ano passado, com a volta do Antunes para o seu método de ator. Eu não queria parar co­mo meu trabalho de cenografia e já havia experimentado muita coisa lá com ele. Claro, poderia experimentar mais. Mas com minha bagagem toda, achava que para a cenografia eu tinha que fazer uma coisa mais indivi­dual. Se o Antunes está voltando para o trabalho fechado de ator, eu queria voltar para o designer, para a cenografia. Então, resolvi me afastar.

Diário – No programa de “Prét-à-Porter”, o novo espe­táculo de Antunes, ele afirma que acabou a fase de “diretor de designer”. O que acha dessa definição?

Serroni – Eu não sei… O An­tunes sempre foi muito inquieto. Em todo esse tempo que estive lá, ele sempre se preocupou mu­ito com o trabalho do ator. Aí ele radicalizou mesmo. Antunes queria fechar seu método, um projeto que vem desde antes do CPT. A voz, o corpo, essa coisa toda… Não que eu queira fazer designer, decoração… Vou estar sempre preocupado com o ator também, uma coisa que aprendi com o Antunes. Só que existe também um outro mundo: a ce­notécnica, o figurino, a arquite­tura teatral. A minha formação é essa. Se eu deixar de fazer isso, que é o que sei fazer – dar aula de cenografia, fazer arquitetura de teatro, criar cenário, figurino -, vou entrar em conflito comi­go.

Diário – “Prét-à-Porter” fez uma “faxina” na cenogra­fia. Você se imagina traba­lhando assim com Antunes?
 

Serroni – E não foi só na ce­riografia. Radicalizou na ilumi­naçao, no som, no figurino e, segundo li, o Antunes radicali­zou até com o trabalho dele para ficar mais distante, dar liberda­de. Eu podia até continuar no CPT, de uma outra forma, mas não seria coerente. Lá é uma coisa do Antunes. A cenografia lá dentro vai ser sempre uma parte do todo. Eu preciso que a cenografia seja o todo. Neste momento, estou com a cabeça aqui no Espaço Cenográfico, esqueci um pouco o CPT. Mas continuo torcendo por ele, que afinal é o grande centro de pesquisa teatral no país.

Diário – Quando participou pela pri­meira vez da Quadrienal de Cenografia de Praga (87), você declarou que o Brasil estava pelo menos 20 anos atrasados. Evoluímos?

Serroni – A gente cresceu muito. Principalmente em rela­ção à luz e à arquitetura teatral. Hoje, está se dando muita im­portância aos projetos de cons­trução. Acabamos de ganhar três ótimos teatros: o Sesc Vila Mariana, o Alfa Real e o São Pedro, que foi reformado. E todos tiveram assessoria cênica.

Diário – Pode-se falar em uma linguagem cenográfica brasilei­ra?
 

Serroni – O que a gente ouve fora do país é que a nossa cenografia tem mu­ita liberdade, é sempre meio festiva. Cada espetáculo, cada autor traz um olhar diferente. Não é o caso da cenografia ale­mã, por exemplo, que tem uma linguagem muito fechada, ainda que boa; mas tudo é muito es­tanque. A brasileira não. Duas horas antes da estréia, o cenó­grafo está lá mexendo. Nosso trabalho é mais vivo. Também somos elogiados pelo uso de materiais simples, como jornal, sucata, sobra de cenários; a gen­te transforma muita coisa. Claro que o Brasil é enorme para se falar em uma linguagem brasi­leira. Mas, pelo que se vê em São Paulo, Rio, Recife ou João Pessoa, por exemplo, nosso pal­co não tem grandes maquinis­mos, aquela coisa pesada.

Diário Quais são as espe­cificidades do seu trabalho?

Serroni – Eu sempre fui um cenógrafo preocupado com a in­fra-estrutura para a cenografia, para a iluminação, para o espaço teatral. Me preocupo muito com a formação, com a mão de obra. Mas o centro é a experimentação. O Espaço Cenográfico vem preencher isso: um lugar para juntar as pes­soas na descoberta de formas, materiais e novos caminhos pa­ra as artes cênicas. Uma das metas iniciais, por exemplo, é agre­gar mais a iluminação à ceno­grafia. Há uma certa distância entre os profissionais. Ainda encaramos a luz só como ilumi­nação e não como espaço, o que já ocorre em outros países.

 

Diário – Você já cria figuri­nos e agora acena com a luz. Seria o caso de uma cenogra­fia total?

Serroni – O ideal era que o cenógrafo fosse considerado um diretor de arte, coordenando toda a parte visual (cenografia, iluminação, figurino, maquia­gem). Mas no teatro isso é mui­to difícil. A dez, 15 dias da es­tréia, não dá para você se dividir em quatro. Se o cenógrafo fi­zesse também pelo menos a ilu­minação, já seria muito bom. Mas a maioria pende mais para a criação de figurinos.

Diário O próximo passo, então, é dirigir?

Serroni – Bem, pode ser um projeto para a quarta década da minha carreira [risos]. Eu tenho vontade, mas não quero ser ape­nas diretor de espetáculo. Seria fácil. Aprendi muito com o Antunes sobre a direção de atores e quero usar isso um dia.

 

Espaço Cenográfico tem caráter público (rua Teodoro Baima, 88, Centro, tel. 257-1115 ou 256-4619). Coordenação: J.C. Serroni. Curso – De agosto a dezembro, das 19h às 22h. Vagas: 15. Inscrições a partir de 1º de junho. Taxa: R$ 5,00 (mensalidade gratuita). Biblioteca – De terça a quinta, das 16h às 20h; sábado, das 14h às 18h. Exposição – Visitas aos sábados, das 14h às 18h.
 

Espaço Cenográfico tem caráter público

São Paulo – “É como um vi­deotape: vai para frente e para trás, vocês é quem mandam.” Na introdução para a platéia, o encenador Augusto Boal faz a ponte do seu “teatro fórum” com o efeito “você deci­de” que toma a televisão de as­salto. De certa forma, o encena­dor antecipou tudo isso.

Mas, ao contrário da partici­pação virtual pelos “0900” da vida, aqui o espectador inter­vém de fato. Entra em cena na hora que quiser, substitui o ator em questão e representa como acredita que faria na vida como ela é.

Segmento do “teatro do opri­mido” gestado pelo diretor cari­oca nos anos 70, o “teatro fó­rum” se distingue também por oferecer mais de duas opções. Se nove pessoas da platéia dis­cordam da ação do personagem, então elas ganham vez e voz no palco.

Foi o que Boal mostrou no i­nício da semana em São Paulo. Ele encerrou seu workshop de cinco dias no Teatro da USP com duas apresentações. Os 27 participantes criaram quatro ce­nas curtas abordando educação, violência urbana, solidão no meio do público e o padecimen­to de uma estrela clonada de Carla Perez, vítima da “ditadura do corpo”.

A platéia escolheu os temas educação e violência para inter­vir. Na primeira cena, o diretor de escola cobra da professora maior rigor na sala de aula e cumprimento do método clássi­co de ensino. Na segunda, dois meninos de rua praticam roubo e estupro de pessoas da classe média que, antes, tinham cons­ciência social quanto aos exclu­ídos.

O “teatro fórum” requer mí­nimos recursos,. O realismo pre­dominou nas apresentações sem cenário, iluminação, sono­plastia e tampouco grandes atu­ações.

Como Zé Celso, Boal gesti­cula muito, chega a “interpre­tar” para se fazer entender, conquistando a empatia da pla­téia. “O teatro do oprimido propõe várias portas em que to­do mundo é artista, queira ou não queira”, continua explican­do. “A gente pode, no presente, pensar o passado e inventar o futuro.” 

 

Augusto Boal cria seu “você decide” de fato

São Paulo – Para uma cidade que não possui curso superior de cenografia – no Rio existem dois -, a Capital e as cidades vizinhas vêem no Espaço Cenográfico um alento que faz par com o CPT. Só que a iniciativa de J.C. Serroni tem um caráter mais institucional coordenado por Antunes Filho, no Sesc Consola­ção.

De olho nos profissionais da área e nos jovens que manifes­tam, no mínimo, curiosidade sobre o mundo da cenografia, o Espaço vai oferecer cursos, exi­bir vídeos e permitir acesso a uma biblioteca com 500 títulos, entre livros e revistas especiali­zadas, nacionais e importadas.

O folheto mensal “Espaço Cenográfico News”, com tira­gem de 2 mil exemplares, distri­buído gratuitamente, vai preen­cher um pouco do vácuo editorial com informações sobre cenogra­fia. Cada edição trará, por exem­plo, o “cenógrafo do mês”. O pri­meiro perfil é de Tomás Santa Rosa Júnior, ou Santa Rosa. Ele assinou o “Vestido de Noiva”, de Ziembinski, em 1943, marco do moderno teatro brasileiro.

Uma exposição cenográfica vai ocupar permanentemente um dos corredores. Serroni dá a largada, mas depois abre para outros cenógrafos. As paredes do Espaço apresentam texturas, adereços e objetos suspensos o­riundos das montagens que ele participou dos 70 espetáculos do currículo, 11 foram no CPT.

A intenção, diz o cenógrafo, é situar o público visitantes, alunos – num ambiente “vivo”, com direito a iluminação e sonoplastia, como se todos estivessem sobre um palco.

Também está programado um ciclo de palestras no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, ao lado do Espaço.

 

LIVRO

J. C. Serrom também escreve livros. Para o segundo semestre, ele prepara “História Visual da Cenografia Brasileira”, um pro­jeto da Funarte. Também dispõe de material suficiente para produzir uma história da cenogra­fia nacional mais acalentada, idéia a ser apresentada em breve para alguma editora.

Paralelo aos livros e, agora, ao Espaço Cenográfico, ele continua fazendo o que mais gosta: criar cenários e figurinos. Dois espetáculos infantis em cartaz levam sua assinatura: “Chimbirons e Chimbirins” e “No Reino das Águas Claras”. Daqui a duas semanas reestréia o infanto-juvenil “O Homem das Galochas”.

E os convites, depois da saí­da do CPT, não param de che­gar. Tem Ulysses Cruz com “Sá­bado, Domingo e Segunda”, do italiano Eduardo de Filippo. Vladimir Capella com “Clarão nas Estrelas”, do próprio, para o Teatro do Sesi. José Possí Neto com “O Evangelho Segundo Je­sus Cristo”, do português José Saramago, no Rio. Para o ano que vem, Fauzi Arap com “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, estrelado por Bibi Ferreira.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998.   Caderno A – 4

Companhia carioca trata erotismo com poesia e vê o corpo como veículo de prazer e afeto

VALMIR SANTOS

São Paulo – Como falar em erotismo nesse pre­núncio de milênio? Co­mo falar de toque, tocan­do, num tempo em que as pesso­as optam pelo sexo on linee e er­guem muros em volta de si? São questões assim, pertinentes, que vão pela cabeça do espectador depois da sessão de “Volúpia”. A montagem da carioca Cia. Te­atro do Movimento resgata o elo com o corpo enquanto instru­mento de prazer. E o faz, é claro, enfrentando o falso moralismo que insiste em desprezar o que Deus lhe deu.

Afinal, “Deus não me fez até a cintura para o diabo fazer o resto”, como deduz uma das personagens, numa das citações brilhantes que pululam no espe­táculo. O roteiro reúne trechos de obras de Adélia Prado, Hilda Hilst, James Joyce, Anaís Nin, Henry Miller, D. H. Lawrence, Sade, Verlaine, Cortázar, Moravia e outros nomes da literatura e do pensamento mundial que colocaram o sexo na pauta do dia e nem por isso o pintou com a tinta da publicidade que a tudo consome.

O objeto do desejo, aqui, é o corpo como veículo. O corpo “humilde”, despido de conceitos, idéias e couraças afins. “A indecência no cére­bro se torna obscena”, avisa um personagem. “A castida­de no cérebro é vício”, retruca um outro. E a língua passeia por aí afora, retratando o erotismo desde a mitologia grega até a filosofia moderna, sob o prisma da obscenidade e da pornografia.

Há espaço para tudo no jogo de palavras, gestos e movimentos: o lúdico, o escatológico, o onírico, o fantástico, enfim, variantes que dizem respeito à intimidade de cada um. O gozo é livre e honesto – eis uma bandeira possível para “Volúpia”.

Como em “A Lua Que Me Instrua” (1992), a diretora Ana Kfouri recorre à sensibilidade para ganhar o público. Mesmo nas passagens que poderiam fa­zer corar muita gente – palavrõ­es, relações homossexuais, e sa­domasoquistas, por exemplo -, tudo é conduzido com a “mão” do afeto sincero, da permissão para o encontro do outro (que também pode estar dentro de si).

Dispensando a narrativa li­near, os quadros são entremea­dos por breves blecautes. Os a­tores da Cia. Teatral do Movi­mento cometem verdadeiros contorcionismos. Como o pró­prio nome diz, uma perspectiva coreográfica domina a movi­mentação e chega a desembocar em canções entoadas pelo pró­prio elenco.

Heitor Martinez Mello, Isa­bel Cavalcanti, Manilha Martins, Nadya Thalji e Pedro Brício dão atenção em dobro ao seu princi­pal instrumento de trabalho: o corpo. Eles interagem com os contornos geométricos do cená­rio (orifícios, frestras) e redi­mensionam o olhar voyeur e pornô. Os figurinos – sim, eles existem! – foram inspirados na sensualidade das telas do pintor austríaco Klint.

Quando os atores simulam transas em cada espaço do ce­nário, explorando posições va­riadas, protagonizam um ver­dadeiro “Kama Sutra”. As ima­gens não chocam, mais uma vez, por causa do tratamento estético que não abre mão da poesia.

“Volúpia” é uma resposta à sociedade sexista de consumo. Dá um banho de interpretação nas montagens chínfrins que ainda insistem na gratuidade do nu como chamariz de bilheteria. Nos seus breves e consistentes sete anos, a Cia. Teatral do Movimento e sua diretora conquistaram lugar ao sol com muito suor e pesquisa. E, é claro, muita coragem.

Volúpia – Concepção e direção: Ana  Kfouri. Assessoria técnica: Leonardo Sá. Com Cia. Teatral do Movimento. Figurino: Charles Moeller. Cenário: Afonso Tostes, André Costa e Sônia Barreto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.

Espetáculo ri da incomunicabilidade

São Paulo – A surpresa co­meça já no espaço em que o espetáculo é encenado: uma piscina. Vazia e coberta, é lá que tudo se passa. E as sur­presas continuam, depois, pontuando do início ao fim. “La­drões de Metáfora (Não Importa o que Eu Falar, Você Entende o que Quiser)” poderia dizer tudo com este título quilométrico. Mas a montagem diz e diverte muito mais.

O diretor Gustavo Kurlat – nome associado à música para teatro desde o final dos anos 80, trabalhando principalmente com o Tapa – mostra que realmente é bom de ouvido. As 22 cenas que escreveu são pequenas criações em que a sonoridade da palavra soma com o silêncio e dá em di­álogos impagáveis.

É como se o espírito de Woo­d Allen baixasse na piscina d’A Casa, um dos novos espaços culturais da Capital. Com texto, direção e música em suas mãos, Kurlat tem pleno domínio lo espetáculo. Tomando como erferência a máxima de Ítalo Calvino de que “quem comanda o discurso é o ouvido”, ele desenvolve um amargo, ainda que cômico, inventário da incomunicabilidade.

Kurlat traça um painel das relações em todos os seus níveis: afetivo, familiar, amizade ou simplesmente individual, enquanto ser social. São persona­gens desnorteados, com seus pensamentos e códigos recepti­vos turvados pela poluição de i­déias – para ficar no ramerrão semiótico que também tem lá sua surdez implícita.

De volta ao espetáculo, são esquetes ou performances nas quais o poder de síntese é exigido o tempo todo. Os quatro atores – Flávia Ferraz, Fábio Herford, A­lexandre Edelstein e Vera Ferreira – dão conta do recado com mu­ita inventividade: quer no tom predominante de farsa, quer nas cenas dramáticas que beiram o dramalhão. (Vale lembrar, o ima­ginário brasileiro está impregnado das telenovelas). Herford e Flávia, em especial, destacam-se também pela interpretação musi­cal em números solos, provando que o talento de ambos se estende às cordas vocais.

Em certos momentos, a peça é um exercício de pura ironia. Como no qua­dro em que um homem e uma mulher, cada qual em sua vez, choram as pitangas na me­sa de um bar. Nesses “inter­valos” dramáti­cos, porém, a montagem titu­beia e deixa es­capar seu ritmo ideal – que é o do instalar dos dedos, estímulo e resposta, mes­mo quando não se ouve um pio.

Mas o gran­de barato está no inusitado das situações – e de como elas são solucionadas. Do corte de cabelo que dura 15 segundos (a cabeleireira corta dois dedos do cliente, literalmente), ao tapa na cabeça do sujeito que pede para o fotógrafo bater a foto; das re­ticências infinitesimais que dis­tanciam o casal em crise, à ver­borragia de boteco empregada pelos bêbados; do “portunhol” entre um galanteador argentino e uma moça brasileira, ao qui­procó semântico no qual maridos entediados explicam para suas mulheres o que vem a ser e­xatamente “impedimento” no futebol; enfim, é um desfile bem acabado da impossibilida­de de se fazer entender diante do outro.

E mesmo quando o que se ouve do interlocutor entra por um ouvido e sai pelo outro, Kur­lat insiste que é impossível que nada se assimile.

O ruído na comunicação in­terpessoal, como conseqüência da demanda tecnológica que a­vança a la Jetsons, está na or­dem do dia. Em sua síncope li­tero-sonoro-gestual, o diretor e seus ótimos atores nos fazem rir do ridículo e da desgraça em que estamos embrenhados a ca­da celular que toca, bip que vi­bra ou e-mail que chega. Para­doxalmente, é refletindo e fa­zendo blague do distanciamento que “Ladrões de Metáforas” ce­lebra a sua comunhão, o seu en­contro com o público. Dá seu toque numa boa, sem meta-me­táfora.

Ladrões de Metáforas (Não Importa o que Eu Quiser) – De Gustavo Kurlat. Figurinos: Isabela Teles. Terça e quarta, 21h30. A Casa (rua Coronel Irlandino Sandoval, 425, Pinheiros – altura do 1.754 da avenida Faria Lima, tel. 814-9711). R$ 15,00. Duração: 70 minutos. Até 6 de maio.


Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998.   Caderno A – 3

VALMI
R SANTOS

São Paulo – Já virou bordão: “Einstein estava certo…”. Quase 43 anos depois da sua morte, em abril de 1955, a comunidade científica continua confirmando teses que o físico e matemático alemão elaborou em vida mas não dispunha de nenhum satélite potente para provar suas idéias. É por essas, e por outras, que o monólogo “Einstein – Um Ato de Gabriel Emanuel” ganha sabor especial.

O ator Carlos Palma interpreta o texto de Gabriel Emanuel – pseudônimo do canadense Gordon Wiseman. Seu primeiro contato com a peça foi em 1995, quando assistiu à montagem chilena. Em princípio, Palma pensava em adquirir os direitos do texto para outro intérprete. Mas acabou, ele mesmo, quarentão, vivendo Einstein aos 70 anos. O resultado é tocante.

Einstein está prestes a participar de mais um daqueles jantares protocolares. Entre os seus chamados pela secretária Helen, que nunca vem, o personagem rememora, aos poucos, sua infância e juventude. Conta, por exemplo, como a bússola que ganhou do pai aos 5 anos, acamado, influenciou seu pensamento pelo resto da vida. Da mesma forma, a paixão pela música foi herdada da mãe, que lhe deu um violino que, pouco tempo depois, já estava tocando.

A ironia lhe era frequente. “Como meu desenvolvimento era retardado, eu era um adulto com mente de criança”, tenta se explicar o personagem. Aos 9 anos, não prestava atenção em sala de aula e vivia isolado pelos cantos, sem falar com ninguém.

Num cenário simples, composto por uma escrivania, uma poltrona e uma lousa, Einstein/Palma intercala o presente com o passado, mesclando biografia e idéias. Judeu, ele cita sua mágoa com o regime nazista alemão, que praticamente o expulsou da pátria em plena juventude. O físico chegou a ser convidado para ser presidente do Estado de Israel, mas não aceitou.

O monólogo inclui até uma explicação didática da Teoria da Relatividade, que publicou aos 26 anos – o Nobel de Física viria 16 anos depois, em 1921. A peça acerta em equilibrar aula e drama. Ou seja, não é um espetáculo propriamente escolar. O que está sendo representado é a  vida e o pensamento de uma dos gênios da humanidade. Suas inquietudes sobre razão e intuição, em que ambas não se excluem, podem ser encaradas como verdadeiras lições de vida.

Em sua caracterização, que inclui a oxigenação dos cabelos e bigode, com o benefício da calva já proeminente, Carlos Palma é a incorporação perfeita de Einstein. É rigoroso na composição dos gestos, do corpo arqueado, do andar vagaroso, do olhar que brilha ansioso por desvendar os mistérios do mundo. A direção de Sylvio Zilber também acentua o trabalho do ator, vencendo o desafio do monólogo com tranquilidade.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.