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Entrevista

Três grupos gaúchos no limiar dos 10 anos

16.6.2014  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Pedro Karan

O jornal Zero Hora reuniu três companhias de teatro de Porto Alegre que completam 10 anos em 2014 para avaliar o que mudou na produção local neste período e o que ainda precisa mudar. Quais são os desafios da cena gaúcha? Confira, a seguir, entrevista com os diretores Daniel Colin (Teatro Sarcáustico), João de Ricardo (Cia. Espaço em BRANCO) e Patrícia Fagundes (Cia. Rústica).

O que mudou no teatro gaúcho nesses 10 anos?
Patrícia Fagundes – Tem eventos que modificaram alguma coisa, ainda que eu não saiba exatamente a consequência. Acho importante a criação do mestrado em Artes Cênicas (no Departamento de Arte Dramática da UFRGS, o DAD), que recicla a rede de referências e os processos de pensamento. Surgiram dois novos festivais com um perfil pedagógico, o Palco Giratório e o Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre, que têm uma busca por um discurso de formação. No panorama nacional, tem mais editais. Pode ser bom ou ruim: talvez a gente fique focado demais em editais, mas entra mais grana.

Daniel Colin – A produção teatral aumentou. Nesses 10 anos, sinto que tem alguns espaços a mais para novos artistas. Tem editais específicos para eles, o que está fazendo proliferar a produção. A própria Usina das Artes (projeto de residência artística da Usina do Gasômetro), apesar de sucateada, é um espaço que está juntando muitas pessoas. Também tem a abertura do curso de Artes Cênicas da UERGS. Estão surgindo mais espaços de pesquisa e discussão. Antigamente, o DAD era a única referência acadêmica.

João de Ricardo – Falando em estética e procedimentos de criação, tenho a impressão de que, quando comecei com a companhia (Espaço em BRANCO) e estava recém me formando em direção, os trabalhos em Porto Alegre tendiam a estar concentrados no trinômio texto-concepção-encenação. E parece que, nestes 10 anos, houve um aumento de processos de criação que envolvem mais a construção de uma dramaturgia em processo. Também percebo uma elevação no grau de montagens com textos inéditos, adaptações e textos de novos dramaturgos, e não tanto da dramaturgia clássica. Noto um vir à tona do uso de tecnologias, principalmente audiovisuais. Começou a ter mais dinheiro, os equipamentos baratearam. Outro aspecto é a questão da performance. Pouquíssima gente falava nisso há 10 anos. Agora, o discurso e o pensamento da performance contaminaram muito da cena.

Por que companhias que trabalhavam com teatro tradicional começaram a trabalhar com performances e intervenções urbanas?

Patrícia – Acho que intervenção urbana não tem relação com performance exatamente. Elas dialogam, dentro do cenário contemporâneo e nos processos de pensamento, mas são diferentes em termos de preocupação de linguagem.

Daniel – Para mim, Teresa (Teresa e o aquário, de 2008, da Cia. Espaço em BRANCO, que enveredava pela linguagem da performance) é um espetáculo bem forte [foto de cena no alto]. Assisti bem depois da estreia. Lembro de como foi interessante para mim ver que aquele tipo de espetáculo estava sendo feito em Porto Alegre. Parecia que eu não tinha visto nada parecido na cidade. Naquela época, foi muito marcante. A partir dali, vi que as pessoas começaram a trazer essas coisas (relacionadas à performance). Sinto bem isso: as pesquisas foram mais para esse lado nos últimos anos. Não lembro disso antes desses 10 anos.

João – Nem se falava nisso. Minha iniciação em performance, muito antes de entrar no mestrado, foi com o Renato Cohen em um seminário e oficina com ele. Isso foi em 2000 e poucos. O que se tinha escrito sobre performance no Brasil eram os dois livros dele e o livro do Jorge Glusberg. De lá para cá, [a sérvia radicada nos EUA] Marina Abramovic conseguiu, por fato pessoal e do espírito do tempo, colocar a performance no topo da cadeia do pop, da arte de consumo e da arte institucional mundial. Hoje, falar de performance é falar de pop art. Em termos de mercado, não há mais mistério. É um fenômeno cultural mundial.

Patrícia – O que acho mais importante na performance é o discurso político. Há 10 anos, eu tinha voltado de um tempo em que morei em Londres. Foi lá, no inicio dos anos 2000, que conheci grupos como Forced Entertainment, que seria um teatro performativo. Isso já estava absorvido. Eles existiam há 10 anos. Em Porto Alegre, às vezes sinto que os alunos estão fazendo performance todo o tempo, o que banaliza. Estamos muito em contato uns com os outros. Tem ondas que viram moda. Foi assim com o teatro antropológico.

Como vocês veem a relação do teatro feito no Rio Grande do Sul com as outras regiões do país? Os grupos gaúchos estão se inserindo no cenário nacional? Precisam circular mais? O pessoal de Rio e São Paulo precisa ter mais atenção ao que é feito aqui?

Patrícia – Todo mundo vai achar que tem que circular mais.

Daniel – O Sesc tem tido uma postura nacional de intercâmbio de grupos. Para nós, que acompanhamos o Festival Palco Giratório desde que iniciou, tivemos acesso a grupos nacionais que o Porto Alegre Em Cena, sozinho, não estava conseguindo abarcar. Como o Palco Giratório normalmente tem um foco mais para grupos, conseguimos ter relações com esses coletivos. Penso no Grupo XIX de Teatro, por exemplo, que acho supersignificativo. E, de alguma maneira, os grupos daqui estão conseguindo circular por outros estados por esse festival. Claro que não só por ele. Tem a Funarte. Acho que os olhares estão um pouco mais voltados para essas trocas. Acabamos de ir em turnê para o Centro-Oeste pela Funarte, e dessa experiência estou dirigindo um grupo de Campo Grande. Essas trocas estão acontecendo, mas claro que pode ser muito mais.

Patrícia – Estamos falando de políticas nacionais, mas acho que faltam políticas públicas de Porto Alegre para promover seu próprio teatro, que é o que São Paulo faz. No bate-papo do Palco Giratório, o Kil Abreu (crítico e curador) comentou comigo: “Vocês estão fazendo 10 anos? Que interessante, nunca tinha ouvido falar de vocês”. Acho que isso é um fracasso dos grupos, do nosso grupo (Cia. Rústica), mas também da cidade. É um país centralizado, sim. Tem uma produção cultural, econômica e política centralizada. São Paulo tem que olhar para nós? Não. Queria, na verdade, conhecer mais o teatro do Ceará. Fizemos um projeto de circulação pelo Myriam Muniz (Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz) por Santa Catarina e pelo interior do Rio Grande do Sul. Quero outras rotas mais descentralizadas. O que sabemos da produção do Mato Grosso?

Encenação da obra de Foster Wallace pelo Sarcáustico

Daniel – Concordo com a Patrícia. Municipalmente falando, não se pensa nessa relação de levar para fora, de expandir ou mesmo de trazer coisas para cá.

Como está o intercâmbio entre os grupos de Porto Alegre? Eles se falam, trocam experiências?

João – Pelo Facebook (risos). Essa é a resposta.

Patrícia – Acho que falta (intercâmbio).

Daniel – São iniciativas bem pontuais.

João – Vou fazer uma pergunta louca. Falta intercâmbio. Mas precisa? Falo de uma maneira irônica. Estamos em um contexto tão próximo que isso é natural. Estamos sempre vendo as coisas dos amigos. Conhecemos as trajetórias, as poéticas. Conhecemos as pessoas fisicamente há anos, vemos os espetáculos uns dos outros. Precisa de intercâmbio? Precisa quando rolar. Acho que não precisa ser fomentado institucionalmente.

Daniel – Mas poderia, se a gente quisesse.

Patrícia – Não estou falando em política pública, mas em trocar entre nós. O quanto é difícil sentar e dizer: “Vi teu espetáculo e não gostei por isso ou por aquilo”. Somos beiçudos para conversar.

Daniel – Talvez as trocas não sejam tão claras, mas existem relações profissionais. Eu já atuei em espetáculos do João. Gostaria que isso acontecesse mais. Lembro de uma reunião que foi legal, na comemoração dos cinco anos da vai (vai!cia de teatro, em 2013). Eles fizeram performances e nos convidaram. Era uma galera junta por uma história que era da vai, mas acabou tomando uma proporção maior. Essas coisas acontecem pontualmente, e seria legal se acontecessem mais.

Patrícia – Acho que o mestrado (em artes cênicas na UFRGS) acaba sendo assim, um lugar de troca com pessoas diferentes.

Como um grupo no Rio Grande do Sul sabe que um espetáculo foi bem-sucedido?

João – Não consigo dizer qual dos meus trabalhos foi bem-sucedido ou malsucedido. Uma trajetória artística não é objetiva. Se eu colocar minhas coisas objetivamente, como números de público ou premiações, minha trajetória é um fracasso total. Se contar todas as pessoas que já viram minhas peças, é um punhadinho de gente. Minha companhia não tem qualquer prêmio. Nunca fui sequer indicado a diretor (no Prêmio Açorianos de Teatro). Então, desse ponto de vista do mercado, de uma expectativa de sucesso, tirei 5,5, que é nota suficiente para existir, bancar meus trabalhos e pagar meus companheiros. Agora, do ponto de vista pessoal, é nota 10 porque é minha própria história enquanto gente.

Mas acreditas que Teresa e o aquário se destaca. Ou seja, alguma medida de sucesso se tem.

João Teresa se destaca porque mudou a metodologia de um fazer artístico de um encenador e de uma companhia.

Patrícia – Esse afetar pessoas pode ser um parâmetro do que é bem-sucedido. Depende do ponto de vista.

Marina Mendo
(da Cia. Rústica) – No lugar em que estamos, nessa ilha em meio a tantos espetáculos feitos para consumo, que têm grana imensa para divulgação, acho que ser bem-sucedido é conseguir se autogerenciar, ter uma verba para produção dos trabalhos. E que esses trabalhos sejam feitos em função do que acreditamos, gostamos de investigar, do que é coerente para nós. É claro que isso tem que chegar a um público, e chega.

Patrícia – Depende do que se quer. Rola grana em teatro. Em Homens de perto rola dinheiro, no Tangos & tragédias rolava dinheiro. Não é que nem a Madonna, mas tem. Quando vou fazer um espetáculo, não espero ganhar um apartamento da bilheteria. Mas poderia esperar, por que não? Agora, podem ser outros parâmetros. Para mim, ser bem-sucedido tem a ver com o quanto se pode afetar as pessoas. Tenho vontade de fazer teatro para um grupo amplo que não seja apenas composto pelas pessoas que leram aqueles livros. Que seja um público diversificado. Se afeta as pessoas, se toca de alguma maneira, sinto que é um dos momentos mágicos do teatro. É o que nos sustenta. Tem alguns momentos mágicos, de intensidade, em que as coisas subitamente fazem sentido.

João – Também compartilho disso. O teatro vai contra uma lógica de produtividade. É um pouco improdutivo. Depender da presença física das pessoas tanto para criar quanto para apresentar demanda muita energia. Não estamos mais em um mundo desse tipo de presença. Cada vez mais, essa presença física está ampliada para outros tipos de meios, principalmente o virtual. É uma coisa intrínseca ao teatro. Agora, essa coisa da não produtividade também gera sua moeda contrária: a intensidade. É muito específico do teatro. Essa reunião vai causar um fenômeno que não tem em outras artes.

Por mais que a sala de espetáculo esteja lotada, sempre se atinge um público limitado, se comparado com o público dos filmes ou das músicas, que podem ser baixados da internet em qualquer parte do mundo.

João – A especificidade das presenças gera uma arte ilimitada. Estou falando de performance, dança, as artes do encontro ao vivo. O cinema não tem isso, tem outras qualidades.

Patrícia – É anacrônico, por um lado, porque é pouca gente, mas ao mesmo tempo encontra um espaço muito potente na arte e no discurso contemporâneo, que é o das micropolíticas. Não é só no teatro, é na filosofia, na sociologia. Não são ações para transformar toda uma sociedade, mas para provocar pequenas transformações. Hoje, tudo é para as multidões. O teatro, sendo para poucos, fica precioso, especial.

O elogio do erro na peça de 2009 da Cia. Rústica

Há um pensamento no meio teatral que diz: “Se o espectador assistir a um espetáculo gaúcho pela primeira vez e não gostar, ele nunca mais voltará ao teatro”. Concordam?

Daniel – Ser espectador é um processo pedagógico. Tem toda a questão sensorial, mas é um processo de pedagogia do olhar. Não acredito que um espetáculo ruim possa levar alguém a não voltar ao teatro. Mas pode ser que sim. Para mim, essa questão de pensar no que o público vai achar é tão distante. Quando fizemos o Wonderland, pensávamos que apanharíamos dos amigos porque falávamos mal das pessoas na peça. Mas não mudamos. Não fazemos as coisas de acordo com o que achamos que as pessoas podem pensar.

Patrícia – Eu acho, sim, que as pessoas podem assistir a uma peça ruim e nunca mais voltar. Não temos uma cultura de ir ao teatro como temos com o cinema. Quando vemos um filme ruim, dizemos que a culpa é daquele filme. Quando pessoas que nunca vão ao teatro assistem a uma peça de que não gostam, dizem que o teatro em si é ruim.

Tem preconceito do público com o teatro gaúcho?

Daniel – Sinto que o gaúcho tem orgulho das coisas gaúchas. Por isso, é estranho não ter orgulho desta arte feita aqui. É aquela piada: “Esse espetáculo é tão bom que nem parece daqui”.

Patrícia – Tem um monte de artista gaúcho bom. Tem uma produção significativa. Em proporção, é muito melhor do que a de São Paulo. Em proporção. Lá, tem um monte de coisa ruim. Temos uma produção legal, significativa, consistente. Tem gente criativa, inteligente, potente.

João – Acredito que não tem essa pegada tão pop aqui. Existe uma cena superdiversificada e feita muito por teatro de grupo. É uma característica da cidade. Aqui, faz mais sentido investir no teatro de pesquisa e de grupo do que tentar a sorte no mainstream, porque nosso mainstream não é tão grande. O mainstream paulista e carioca é outra coisa.

Como vocês projetam os próximos 10 anos?

Daniel – As ideias têm que sair do rascunho. Têm surgido muitas ideias, mas elas não evoluem. Parece que a quantidade de artistas e grupos está aumentando, mas a verba (pública) é a mesma.

João – Eu moro na zona norte. Lá só tem shopping. Não tem um centrinho cultural, nem um lugar para oficinas.

Patrícia – Então, vamos fazer a lista de desejos: circulação, descentralização dos espaços públicos na cidade e fomento para a produção ser incrementada.

Parece que há um público de teatro que só vai no Theatro São Pedro e ao Teatro do Bourbon Country porque ambos têm estacionamento e comodidade para quem tem carro. E talvez esse público acredite que esses teatros são certificados de qualidade. Como está o acesso das companhias gaúchas a esses espaços?

Patrícia – Nunca vamos ao Bourbon Country. Mas o Theatro São Pedro está próximo.

Daniel – O Theatro São Pedro tem uma política de fazer a custo reduzido para grupos daqui. É caro para nossa realidade, mas compreendemos que é o custo do espaço.

Patrícia – Não acho que qualquer espetáculo tem que se apresentar necessariamente nestes espaços. São para um tipo de produção. Queria que tivessem teatros diferentes, para outras linguagens, como a caixa preta prometida do Teatro Elis Regina (na Usina do Gasômetro, atualmente cedida para ensaios da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre).

Daniel – Pensando em voz alta, às vezes me parece que os grupos não têm interesse em ir ao Bourbon Country, porque é muito caro, é outro tipo de relação. Ao mesmo tempo, acho que o próprio teatro não tem interesse, porque o foco deles é outra coisa.

Patrícia – Mas o Theatro São Pedro é mais próximo.

João – Talvez o melhor palco da cidade.

Patrícia – Nessas linguagens da proximidade da cena contemporânea, o Theatro São Pedro, apesar de ser antigo, favorece.

Mais alguma coisa que vocês gostariam de acrescentar?

João – Vou falar uma coisa para os colegas. Quando se falou daquela coisa sobre o intercâmbio entre os grupos gaúchos, se houver uma ideia de se fazer alguma coisa, eu sou parceiro.

Daniel – Temos que pensar um pouco mais nesses projetos.

João – Não precisa ser espetáculo, pode ser tanta coisa.

* Depois de publicada a matéria, o diretor João de Ricardo entrou em contato com Zero Hora para acrescentar que a Cia. Espaço em BRANCO não venceu prêmios, mas recebeu uma série de financiamentos públicos para a montagem de seus espetáculos: Prêmio de Ocupação do Teatro de Arena (em Andy/Edie), Prêmio Palco Habitasul (em Teresa e o aquário), Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz (em Homem que não vive da glória do passado), Financiarte (em Anatomia da boneca) e Fumproarte (em Polaroides made in dança).

.:. Versão ampliada da entrevista publicada originalmente no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, páginas 1, 6 e 7, em 16/6/2014, e publicada na versão on-line do matutino.

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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