Menu

Crítica

A disputa de presenças e o lugar do teatro

20.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Otten Severonoe

Em Itajaí

Quando escreveu a peça A voz humana (1929), o francês Jean Cocteau rebatia quem o acusasse de instrumentalizar seus textos com “estruturas maquinais”. Pois acabara de testar uma pegada mais essencial com um monólogo. Num quarto desarrumado, uma mulher aguarda a ligação telefônica do amante que recém a abandonou. Coube ao dispositivo mediar a oralidade, a escuta, os silêncios e o sentimento amoroso em pedaços. Virou sua obra mais montada ao redor do planeta. Oito décadas depois, Odiseo.com sugere que o músculo da voz expandiu para o corpo inteiro e vaga pela rede mundial de computadores materializando os rearranjos amorosos sob os mesmos intangíveis mistérios da paixão.

O espetáculo conjuga outros formatos de relação e de percepção da arte a partir de ferramentas velozmente incorporadas na pele e na alma de quem vive nas cidades médias urbanas. O edifício teatral, o palco, a plateia, a coxia, os refletores, enfim, essas convenções inexistem por aqui. São as alteridades da comunicação e a discussão da qualidade de atenção (leia-se presença) nos relacionamentos, em todos os níveis, que atraem para a arena dessa navegação antiespetacular, geradora de experiências virtual e presencial imersivas graças à tessitura dramatúrgica para lá de expandida e convicta das janelas que a palavra abre por si mesma.

O código mais assimilável talvez seja o do clássico mote da triangulação dos amantes (ele e ela) e da mulher dele. Três situações combinam planos ficcionais captados por webcam em tempo real (também subvertido lá pelas tantas) e cujas ações transcorrem em três distintos lugares. Ao cabo, a conexão por Skype é pulsão desse sistema cênico-tecnológico que opera sobre os afetos através da imagem e da fala.

Cohabitantes desse percurso, os espectadores brasileiros e argentinos não têm diferença no fuso horário. Já o relógio local alemão está adiantado cinco horas

Em Itajaí, vinte espectadores roçam os ombros um no outro, bem instalados, para acompanhar, na sala de um sobrado, no bairro São Judas, a intimidade à distância entre a cantora Elisa, amante brasileira que faz dali sua casa, na atuação de Milena Moraes, e o executivo argentino Ulises, hospedado em algum hotel dessas cadeias globais, talvez em Pequim, na atuação do ator Juan Lepore, que também abriga um pequeno público em sua casa, em Buenos Aires.

A terceira figura a pontuar essa história é Laura, de quem se saberá pouco, mas com a qual ele é casado e divide o mesmo teto na capital argentina, sob atuação da chilena Amalia Kassai, moradora em Bremen, na Alemanha.

Cohabitantes desse percurso, os espectadores brasileiros e argentinos não têm diferença no fuso horário. Já o relógio local alemão está adiantado cinco horas. Porém, a participação de Laura se dá apenas no ambiente virtual, isenta de contracenar ao vivo com a audiência ao lado.

A observação crítica aportada desde o olho a olho com Milena Moraes constata como ela sustenta o campo da intimidade sem esmorecer, tendo por testemunhos 20 pares de olhos e ouvidos colados proximamente à atuação. Estamos entre quatro paredes e é como se ela de fato se encontrasse sozinha, desnuda em tesão e apaixonada por Ulises. Está a anos-luz da paciente Penélope da mitologia grega, assim como o trabalho escrito em colaboração pelo chileno Marco Antonio de La Parra e dirigido por André Carreira não leva ao pé da letra o mito retratado na Odisseia, preferindo tomar apenas como pretexto a jornada do herói viajante que retarda sua volta a Ítaca em função das aventuras e obstáculos enfrentados no caminho, levando sua mulher a esperá-lo por anos.

Apesar do aparato que a cerca e das infiltrações performativas – ao conectar o cabo do notebook ao televisor de tela plana ou regular o volume à maneira do contrarregra –, Milena reflete agudamente os conflitos de Elisa preservando a instância do dramático. Estirada no sofá-cama, deslocando-se até a cozinha ou ao banheiro, subindo as escadas para tomar banho no que se presume a suíte (em muitas cenas a atriz está oculta), atendendo sua mãe ao celular, o fato é que o público sente a presença de Elisa permanentemente, ausculta seu coração.

Ressalve-se que as sincronias não resultam virtuosísticas; pausas e vazios preenchem igualmente.

Milena Moraes triangula na webcam com atores na Argentina e na AlemanhaOtten Severonoe

Milena triangula na webcam desde o Brasil

As reações de Elisa ao discurso titubeante de Ulises na webcan tornam a presença dele na tela igualmente poderosa nos jogos eróticos, nos rompantes, nas solidões. Ele tem dois filhos e não para em casa, vive nas nuvens, viajando a negócio. Ela é mãe de uma filha, está em processo de separação e nutre expectativa de que Ulises também deixe Laura. A introdução desta na narrativa causa uma guinada temporal e os diálogos desviam para o campo da memória. Do mesmo modo, as mutações dos figurinos de Elisa e Ulises – nomes que se tocam –, da nudez às roupas sociais que os devolverão às ruas, também são indícios de que o real é construído enquanto o tempo das falas e lembranças pode se mover em direções outras.

Entre as interfaces que desdobra, Odiseo.com oferece uma experiência limítrofe da representação em flerte deliberado com conceitos da instalação e da performance. Nada de novo com as desterritorializações e experimentos de fronteiras. Chega a ser prosaico o modus operandi dominado pela maioria da assistência que depende da banda larga ou fibra óptica, ao sabor da precariedade dos serviços de telecomunicação. Em vez do rasgo tecnológico, sobrepõe-se a valorização do ator. Não há a mínima possibilidade de se tropeçar em fios soltos neste emaranhado digital, carnal e desejante disposto de forma clara e pungente, a ponto de não perturbar a vigília ou o sono do “Jazz”, o cão do dono do sobrado anfitrião, deitado ao pé dos espectadores durante toda a sessão. A parceria do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis, com o Centro Latinoamericano de Creación e Investigación Teatral, da Argentina, ora ganha ares de trama de telenovela, pela familiaridade temática, ora atalha com a tensão dos filmes de John Cassavetes. É o teatro defendendo seu lugar na disputa de presenças.

.:. Escrito no âmbito do IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, de 7 a 16/8, em Itajaí. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

.:. Leia artigo de Dirce Waltrick do Amarante sobre O teatro e o virtual.

Ficha técnica:
Texto: Marco Antonio de La Parra
Direção: André Carreira
Com: Amalia Kassai em Bremen (Alemanha), Juan Lepore em Buenos Aires (Argentina) e Milena Moraes em Florianópolis (ou outra cidade brasileira)
Assistente geral: Mercedes Kreser
Cenotécnico: Fernando Diaz

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados