Um procedimento criativo de que lançou mão há 25 anos retorna feito bumerangue à cena de Antunes Filho. Substituir da boca dos atores o idioma corrente do espectador brasileiro por uma fala ininteligível, sob a alcunha de fonemol, foi o risco que ele assumiu em Nova velha estória, em 1991, relativizando o sistema de representação e o maniqueísmo no conto de fadas de Chapeuzinho Vermelho. Seria imprudente colar à obra sexagenária desse artista o gesto de repetir-se em Blanche por retomar o som da fala como iminência ficcional a partir de um texto dramático. E no caso, conjugado à noção de teatralidade que ganhou sopro nas peças curtas do projeto Prêt-à-porter (1998-2010) e agora ascende a outros patamares.
Na montagem que estreou em pleno governo Collor o fonemol servia à fábula em que o Lobo Mau não o era tanto assim. Passado o impacto inicial dessa subversão, acabava prevalecendo o tom lúdico (no universo da narração de história, diga-se, a língua bolada de improviso costuma ser conhecida como gramelô). Nova velha estória tinha Luís Melo e Samantha Monteiro como antagonistas, na primeira versão. O estranhamento vocal subjazia ao tratamento espetacular da encenação e da assinatura do trio de colaboradores icônicos de Antunes à época: J.C. Serroni (cenografia e figurinos), Davi de Brito (iluminação) e Raul Teixeira (sonoplastia), este na equipe atual. No palco do Sesc Anchieta, dezenas de esferas de acrílico pairavam sobre a narrativa, suspensas. Uma delas catalisadora, no enredo, ao ser convertida em armadilha para o presumido vilão capturado.
O espetáculo ‘Blanche’ jamais traduziria sínteses como a que testemunhamos se Antunes Filho não tivesse bagunçado o coreto das convenções teatrais no ‘Prêt-à-Porter’
Em Blanche, o fonemol deixa de ser pretexto e se arvora enquanto linguagem. A estratégia centrada na emissão da voz abarca poeticamente o conjunto estético. Soa inerente aos atores encadear fonemas aleatórios em ritmos e sonoridades primos de idiomas do Leste Europeu. A exposição oral em português é deslocada a outros sentidos e sensações. O descondicionamento do signo verbal pela materialidade cênica ocorre a partir de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, drama imortalizado no imaginário do espectador ocidental através da adaptação cinematográfica de Elia Kazan, o mesmo que o encenou na Broadway.
A dramaturgia é preservada em essência, mas transmitida em tal dialeto de sugestivo estágio primitivo. O ruído no artifício do dizer/sentir reivindica do ator distanciamento permanente entre o inconsciente e o presente da ação. A rigor, nada de novo para o intérprete que decora o texto e o representa. A distinção está em desconfigurar o ato de memorizar e deixar-se levar pela noção de esvaziamento. Os diálogos inventados pressupõem o instinto, bebem do improviso. O corpo do intérprete, por outro lado, ocupa o espaço cênico sem artificializar a expressão em gesto ou movimento. Não há esforço em compensar o indizível quando se almeja o inefável. Estado a que se alcança.
Quando o elenco e o diretor assim procedem na sala oficial de ensaio e para ela convidam o espectador, estamos no campo simbólico comum. Ao adotarem o experimento como eixo determinante do espetáculo, eles aumentam a percepção crítica sobre as inaptidões de Blanche e do cunhado Stanley mediados pelo amor e complacência de Stella.
A função dramatúrgica do fonemol atinge as demais estruturas de cena. Os criadores saem dos trilhos da convenção teatral ao inscrever o próprio ambiente da sala de ensaios do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT/Sesc, na subjetividade arquitetônica do prédio de dois andares onde vivem os Kowalski. Inexistem paredes ou portas cenográficas, mas não é difícil intuir o confinamento nos dois cômodos do térreo e imaginar o que se passa no andar de cima habitado por outra família. O espectador se vê artisticamente estimulado à intimidade nessa habitação (o cortiço brasileiro?) e cúmplice do murmúrio da rua em frente.
A tênue separação entre público e privado é lembrada por meio de linhas brancas e vermelhas no piso, devidamente borradas pelos personagens em momentos de tensão. A inverossimilhança do que é dito desliza para o que é visto. É encantador – não há outra palavra – quando Blanche derruba a parede que o espectador desenhara até então, em sua sensibilidade, ao contar ao pretendente Mitch, emocionada, sobre um ex-namorado que cometeu suicídio.
As cerca de 50 pessoas da arquibancada acabam se dando conta da falta de delimitação entre cena e plateia, principalmente, devido à estabilidade da luz de serviço, branca. As 20 luminárias fixadas próximas ao teto sugerem uma tarde de ensaio fechado, em que a claridade do dia poderia entrar pelas janelas de vidro ao fundo da plateia. Contribui para isso a atitude proativa dos atores nas costas da arquibancada, preservando o vínculo com o colega que está em cena do outro lado, trocando de figurinos e assumindo a contrarregragem em instantes precisos. A sonoplastia com levadas de blues e jazz à moda de New Orleans costura essa espacialidade difusa assim como a vibração vocal dos atores pressupõem os conflitos e sussurros ocultos na vizinhança.
Uma ressalva a Blanche é que sua dramaturgia em fonemol não assume a fundo o equilíbrio sobre o abismo da incomunicabilidade – uma das máculas da era da informação. A generosidade em manter em bom português o nome dos personagens e os gentílicos para situar aqueles que desconhecem a trama mitiga a natureza ousada dessa ideia. Pesa a mão, ainda, o trecho do prólogo em que a atriz-narradora (Stella Prata) enfatiza a necessidade de o espectador imaginar e criar sua própria dramaturgia. São direcionamentos contrários à liberdade de voo nos neologismos impressos na cena. Resquícios parecidos com os das jornadas Prêt-à-porter, quando a introdução a respeito das três cenas da noite e a gênese dos personagens foram gradativamente abandonadas em prol da capacidade de síntese e apreensão dos dois lados, público e ator.
Marcos de Andrade interpreta Blanche e seu duplo na criação do CPT
Diante da rotatividade das mulheres e dos homens que passam pelo CPT e Grupo Macunaíma, Marcos de Andrade, no papel-título, e Andressa Cabral, como Stella, coincidem no feliz encontro de pertinências técnicas e talhos da vida e da arte. O primeiro abraço das irmãs, um reencontro após anos, sela uma imagem idílica com ambas parecendo desenhar com as mãos, no ar, as esperanças que cultivaram na infância. Na peça, equivale à antessala das violações e crueldades que virão. O autor norte-americano fornece substrato social suficiente para se notar a naturalização arraigada do espancamento das mulheres pelos homens com quem dividem o mesmo teto. O que a montagem amplifica para o cotidiano de agressão e morte às travestis, a homofobia no atacado.
Decano do elenco (são dez anos sob Antunes), Andrade é um dínamo de nuances de gênero e de projeções psíquicas e sensoriais de uma Blanche impossível de ser categorizada. O ator travestido de mulher como que dança sobre as máscaras de Kazuo Ohno (referência explícita ao solo Admirando La Argentina, 1976) em atravessamentos líricos. E outra cena, seu olhar denuncia o horror na sequência do estupro de que ela é vítima e o público, angustiado, não vê (cena oculta também no texto original e no filme). Andrada flana ou ziguezagueia com destreza performativa para não apagar o cidadão do teatro que entrediz Blanche e sua condição de artista em 2016. A virilidade infiltrada em contraponto à hegemonia de Stanley, um machista menos óbvio na atuação de Felipe Hofstatter.
O desempenho de Andressa Cabral carreia energia com um registro discreto, de tonalidades próximas ao pensamento e à prática stanislavskiana. Ela mora nessas contradições de matrizes como a alma de Stella balançada entre postergar os desejos ou concretizá-los. Seu rosto de tez polonesa e cabelos ruivos parecem emprestados de uma daquelas personagens de conjunto habitacional em filme europeu.
No retorno mais direto à cruzada antiespetacular, Antunes Filho desfruta de dois achados em meio à dezena de atores e atrizes que cumprem todas as partituras com admirada competência. E Blanche jamais traduziria sínteses como a que testemunhamos se Prêt-à-porter não tivesse bagunçado o coreto das convenções teatrais ao ocupar, primeiro, a área de convivência no térreo do Sesc Consolação e, em seguida, subir com o público para o sétimo andar, o do CPT e seu labirinto.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
.:. Leia reportagem com Antunes Filho e elenco de Blanche, bem como a crítica de Ferdinando Martins.
Serviço:
Blanche
Onde: Espaço CPT – Sesc Consolação, 7º andar (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000)
Quando: quarta a sexta, às 20h; sábado e feriado, às 17h. Até 1º/10
Duração: 110 minutos
Quanto: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 9 (credencial plena do Sesc)
Classificação: 14 anos
Ficha técnica:
Autoria: Tennessee Williams
Encenação: Antunes Filho
Assistente de direção: Francieli Fischer
Com: Stella Prata (Eunice), Vânia Bowê (vizinha), Felipe Hofstatter (Stanley), Alexandre Ferreira (Mitch), Luis Fernando Delalibera (Pablo), Andressa Cabral (Stella), Marcos de Andrade (Blanche), Bruno Di Trento (Steve), Luis Fernando Delalibera (jornaleiro), Antonio Carlos de Almeida Campos (médico), Guta Magnani (enfermeira)
Diretor de palco: Luis Fernando Delalibera
Figurinos: Telumi Hellen
Assistente: Tainara Dutra
Adereços: Clau Carmo
Costureira: Noeme Costa
Ambientação: José de Anchieta
Assistente: Emerson Mostacco
Cenotécnico: Fernando Brettas
Trilha sonora: Raul Teixeira
Sonoplastia: Lenon Mondini
Iluminação: Edson FM e Elton Ramos
Produção executiva: Emerson Danesi
Preparação de corpo e voz: Antunes Filho
Programa: Ricardo Muniz Fernandes e Érico Pereira
Fotos: Inês Correa
Pesquisa: Thiago Brito
Assessoria de imprensa: Marina Reis
Agradecimentos: Klaus Kühn e Marichilene Artisevskis