Crítica
26.1.2019 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Ronaldo Gutierrez
Ao celebrar seus 40 anos de existência, o Tapa – uma das mais longevas companhias brasileiras – escolheu montar O jardim das cerejeiras. Para um grupo que alcançou a maioridade levando ao palco justamente a primeira obra de Anton Tchekhov, Ivanov, em 1998, é significativo que a comemoração seja marcada por essa que é a última e mais brilhante das peças do autor russo.
Encenada pela primeira vez em 1904, pouco antes da morte de Tchekhov, O jardim das cerejeiras carrega muitas das características que notabilizaram o dramaturgo: os personagens são frustrados e infelizes, mas nada fazem para mudar suas vidas ou se livrar daquilo que lhes provoca desapontamento. É como se, predestinados ao sofrimento, oferecessem a inação como única resposta. Mas, além de levar adiante a temática que lhe foi tão cara no teatro, esse texto também esquadrinha uma problemática reveladora de seu momento histórico – pouco mais de uma década antes da eclosão da Revolução Russa de 1917.
A morte do jardim das cerejeiras pode ser também o ocaso de um certo tipo de teatro que o Tapa não deixa morrer. Em cena, atores e atrizes que foram notáveis na trajetória do grupo renovam o compromisso com a sobrevivência de um determinado repertório e com a formação de público. Clássicos que as plateias deveriam revisitar de tempos em tempos – até mesmo para ter referências ao se defrontar com a desconstrução proposta pelo teatro pós-dramático
A montagem do Tapa põe em relevo um nó social: de um lado, há uma falida aristocracia, do outro, uma burguesia emergente; entre as duas estão os empregados (outrora servos). Ruíram os mecanismos de manutenção de uma classe no poder. Aqueles que antes lhe serviam ascenderam e se tornaram novos proprietários. Já uma outra parcela apenas trocou a servidão pelo trabalho assalariado, mas se manteve em posição subalterna e dependente.
Ambientada no período histórico em que foi escrita, a atual encenação busca figurinos e cenário que remetam à Rússia do final do século 19 e início do século 20. Ainda assim, elege alguns traços dissonantes – como denota, por exemplo, a escolha da trilha sonora com temas como Melodia sentimental, de Villa-Lobos. Grosso modo, é como se ao quadro delineado por Tchekhov, a direção de Eduardo Tolentino de Araújo quisesse contrapor (ainda que muito discretamente e com grande respeito ao original) circunstâncias de outros tempos. Afinal, vivemos também uma época de essenciais transformações no que diz respeito à produção e à distribuição da riqueza.
Após uma longa ausência, Liuba Andrêievna Raniévskaia retorna ao seu cerejal – eis o mote da peça em quatro atos. A propriedade, há décadas pertencente à família, está hipotecada e ameaçada de ir a leilão. Membros de uma aristocracia falida, Liuba (Clara Carvalho) e seu irmão Gaév (Brian Penido Ross) vislumbram a perda de suas terras, mas nada fazem para detê-la. Negociante enriquecido, Lopakhin (Sergio Mastropasqua) tenta sugerir um caminho para sanar a dívida: repartir o terreno em pequenos lotes e construir chalés para os veranistas. A proposta, contudo, não é sequer considerada. O antigo jardim das cerejeiras acaba sendo comprado pelo próprio Lopakhin – filho e neto de servos que ali trabalharam.
Afamado em toda a Rússia, o cerejal é posto abaixo para ceder espaço ao novo empreendimento. Se quisermos nos deter em uma leitura histórica, a cena surge como metáfora para a camada social que precisa ser extirpada para que outra surja em seu lugar. Lopakhin adquire aquelas terras não por ter um interesse específico no que elas poderiam proporcionar. Trata-se mais de um acerto de contas com seus antepassados, uma edípica vontade de se sobrepor ao pai, a desforra da burguesia que mesmo sem formação ou nobreza possui o dinheiro.
Sendo essa, contudo, uma obra escolhida para marcar os 40 anos do Tapa, é interessante vislumbrá-la por outro viés. Depois de amargar anos sem financiamento, o espetáculo estreou como parte do projeto selecionado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A morte do jardim das cerejeiras pode ser também o ocaso de um certo tipo de teatro que o grupo não deixa morrer. Em cena, atores e atrizes que foram notáveis na trajetória do grupo – entre eles, Clara Carvalho, Brian Penido Ross, Guilherme Sant’Anna, Zécarlos Machado e Sergio Mastropasqua – renovam o compromisso com a sobrevivência de um determinado repertório e com a formação de público. Clássicos que as plateias deveriam revisitar de tempos em tempos – até mesmo para ter referências ao se defrontar com a desconstrução proposta pelo teatro pós-dramático.
O teatro dito realista foi capturado por obras e criadores muito distantes de seu propósito original. Como se sabe, o sistema de interpretação desenvolvido por Constantin Stanislavski, no Teatro de Arte de Moscou, pautou o desenvolvimento do Actors Studio, em Nova Iorque – espraiando-se dali para os estúdios de Hollywood e posteriormente para a televisão. Com ênfase na memória afetiva dos atores, essa leitura americana do sistema Stanislavski limou boa parte das técnicas desenvolvidas pelo diretor russo e limitou o que compreendemos como realismo.
Nesse contexto, o que poderia soar como uma encenação convencional adquire quase um sentido de resistência. A frivolidade e o despropósito que Liuba enxerga na construção de casas de veraneio talvez sejam os mesmos que a companhia veria em encenações de mero entretenimento, que não estivessem comprometidas com a inteligência do espectador. Assim como as árvores floridas de O jardim das cerejeiras, a arte não tem utilidade. É, nesse sentido, supérflua. Talvez, por isso, especialmente valorosa em tempos sombrios.
Uma antiga celeuma envolve esta peça de Tchekhov. O autor sempre defendeu tratar-se de uma comédia, mas o diretor da primeira montagem, Stanislavski, via ali uma tragédia. E foi a sua visão, de certa forma, a que prevaleceu. “Não é uma comédia, nem uma farsa como o senhor escreveu, é uma tragédia, por mais que se liberte para uma vida melhor, como o senhor faz no último ato. O resultado é enorme e é alcançado por meios-tons, delicadas aquarelas”, escreveu o diretor do Teatro de Moscou em carta à Tchekhov.
A versão do Tapa atualiza essa discussão equilibrando as duas visões. Garante o humor ao explorar as excentricidades de alguns personagens ao mesmo tempo em que desenha com sutileza a personalidade de outros. Em seu ensaio, O riso, Henri Bergson discorre sobre os efeitos de comicidade. De acordo com o filósofo francês, provocam o riso as atitudes involuntárias do corpo – traço explorado por Paulo Marcos em sua composição do desastrado Epikhodov – e a caricatura de certas características, como podemos observar na frivolidade de Duniacha (Natália Beukers) ou na surdez de Firs (Guilherme Sant’Anna).
Outra fonte de riso pode ser o comportamento mecânico, aquele que é incapaz de se adaptar ao contexto. É daí que surge o efeito cômico alcançado por Gaév (Brian Penido Ross) em sua fixação pelos jogos de bilhar. Todo o seu mundo está caindo, a família está à beira da ruína com a perda da propriedade, mas ele parece incapaz de amadurecer; em sua constante imitação de movimentos de sinuca evade-se da realidade.
Diminuída em muitas encenações de O jardim das cerejeiras, a governanta Carlota parece merecer o espaço que o dramaturgo lhe concedeu: Tchekhov considerava esse um “grande papel”. Destoante do contexto, Carlota fala com sotaque, pensa em disparates como alimentar seu cão com nozes e está sempre a recuperar truques de mágica, herança de sua família circense. A composição de Mariana Muniz instaura o estranhamento que seria próprio do papel. E consegue fazê-lo justamente pelo corpo – explorando sua formação e conhecimento em dança. Sua caracterização, contudo, tem algo de excessivo. O figurino – a evocar os trajes de um mágico – parece reforçar desnecessariamente a excentricidade que já lhe seria própria. Dessa maneira, é como se Carlota já estivesse, a priori, destacada do corpo do elenco – retirando do espectador a chance de compreender paulatinamente o seu deslocamento.
Se a graça tem seu lugar assegurado, a tinta da melancolia também colore a montagem. Clara Carvalho apresenta uma Liuba tão digna de compaixão quanto de escárnio, heroína e anti-heroína, ciente de seu desamparo, mas decidida a fechar os olhos. Outra composição notável é a de Vária – a personagem, que também costuma ser negligenciada nas montagens, surge aqui inteira, compreendida em toda sua dignidade pela precisa interpretação de Anna Cecília Junqueira.
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Serviço:
O jardim das cerejeiras
Onde: Teatro Aliança Francesa (Rua General Jardim, 182, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3572-2379
Quando: Quinta a sábado, às 20h30; domingo, às 19h
Quanto: R$ 30,00 (quina e sexta) e R$ 60 (sábado e domingo). Até 25/2
Duração: 120 minutos
Indicação etária: 14 anos
Capacidade: 226 lugares
Equipe de criação:
Texto: Anton Tchekhov
Direção: Eduardo Tolentino de Araújo
Com: Adriano Bedin, Alan Foster, Alexandre Martins, Anna Cecília Junqueira, Brian Penido Ross, Clara Carvalho, Gabriela Westphal, Guilherme Sant’Anna, Mariana Muniz, Natália Beukers, Paulo Marcos, Riba Carlovich, Sergio Mastropasqua e Zécarlos Machado
Figurinos: Rosângela Ribeiro
Iluminação: Nelson Ferreira
Designer Gráfico: Mau Machado
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Produção executiva: Ariel Cannal
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.