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Crítica

Mercado do gozo e da bala

9.4.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Saeed Pezeshki

Curitiba – Na pesquisa continuada em torno da autoficção, em que engendra camadas de fatos ao que é invenção, ou em sentido inverso, o dramaturgo e diretor Sergio Blanco avança para o campo do realismo social em Tráfico. Falar de prostituição masculina e de matador de aluguel a partir da periferia de uma cidade latino-americana torna o intento mais complexo e terrificante, como se viu no Festival de Curitiba e pode ser conferido em sessões programadas para os dias 10 e 11 de abril no Sesc Vila Mariana, em São Paulo.

Em trabalhos recentes em que o franco-uruguaio adotou esse procedimento limítrofe, vide A ira de narciso e O bramido de Düsseldorf, ambos apresentados no Brasil, em 2016 e 2018, respectivamente, as ações diziam respeito ao universo da classe média. A figura do narrador – professor universitário ou escritor – estava condicionada a viagens a trabalho a países europeus. Sexo, crime, contravenção e morte já eram algumas das instâncias com as quais os criadores jogavam de forma distanciada e convidavam o público a estabelecer relações e delas suspeitar.

A extensão fálica da arma com silenciador traz interfaces do erotismo e da masculinidade no rol de conflitos elencados em ‘Tráfico’, do franco-uruguaio Sergio Blanco. Os componentes destrutivos ou autodestrutivos também se expressam por meio da gestualidade e do boné com o escudo do Capitão América. O sonho de menino, ser astronauta, morre com o mito do super-herói estadunidense

A racionalidade solicitada em Tráfico é de extração bruta. Não há o sofisticado álibi do profissional que tem na elucubração da linguagem o seu ofício, seja falando em simpósio de filologia na Eslovênia ou escrevendo o roteiro de um filme pornográfico na Alemanha, para ficar em dois atalhos presentes nas peças anteriores.

Dessa vez Blanco habita o território da margem, no duplo sentido dos marginais e dos marginalizados, na sociedade do consumo, até mesmo religioso. As variantes são de outra ordem, portanto. Há mais campo para a violência e para a sombra do que para as ilusões dissimuladas. Talvez seja a montagem com traços sociopolíticos e sul-americanos mais evidentes no escopo recente do autor nascido em Montevidéu, em 1971, e radicado na França desde 1993.

Não que a geografia determine objetivamente a recepção a uma obra de arte, mas a cultura urbana que está na base do discurso e da visão de mundo de Alex, o personagem do monólogo, é conversível, por exemplo, à experiência imediata do público brasileiro morador de cidades médias ou metrópoles.

Por outro lado, estão presentes o ritmo e os passinhos da rumba afro-cubana largamente conhecidos no país do ator Wilderman García Buitrago, do grupo colombiano La Maldita Vanidad. Tráfico é fruto da parceria de Blanco com o coletivo de Bogotá que investiga a estética realista e já circulou por festivais internacionais em Belo Horizonte, Santos e São Paulo, desde 2012.

A área do espaço cênico, em arena, é envolta em penumbra. No epicentro, sob a luz baixa de um poste, ao lado de uma moto esportiva, Alex relata como se iniciou no trabalho da prostituição, aos poucos concentrando a clientela em homens (infere-se, é ele o garoto de programa que o professor recebe em seu quarto de hotel na trama de A ira de Narciso). Depois, conta como se deixou atrair pelo serviço de assassino contratado e exclusivo de uma organização criminosa.

Annelize Tozetto

O ator colombiano Wilderman García Buitrago, do grupo La Maldita Vanidad, no solo ‘Tráfico’, escrito e dirigido pelo franco-uruguaio Sergio Blanco, que passou por Curitiba e será apresentado em São Paulo

No meio do caminho, cita os percalços com a namorada, a mãe, o pai e um professor universitário francês, cliente que certa vez lançou ao rapaz uma metáfora que foi entendida ao pé da letra. A breve citação a essa figura de linguagem que transfere ou substitui sentidos ilustra como as falhas se acumularam na vida do protagonista diante das ambições materiais e afetivas. O nome do professor que provoca esse ruído atende por Sergio Blanco, sujeito oculto aliciador na história.

Corpo jovem e delineado, atributos de quem negocia satisfazer o desejo do outro e a lembrar ainda a virilidade explorada nos clipes musicais e na publicidade, Wilderman García Buitrago atua como se os espectadores ao redor fossem os vizinhos do bairro e tivessem acompanhado seu crescimento em uma família disfuncional. A simpatia, porém, dispensa indulgência e articula o pensamento com lógica alienante e insidiosa.

A extensão fálica da arma com silenciador traz interfaces do erotismo e da masculinidade no rol de conflitos que elenca. Os componentes destrutivos ou autodestrutivos também se expressam por meio da gestualidade e do boné com o escudo do Capitão América. O sonho de menino, ser astronauta, morre com o mito do super-herói estadunidense. A cultura da violência e a indústria bélica municiam o imaginário das juventudes atingidas pelas desigualdades.

Tráfico chega em momento sufocante da realidade brasileira. A leitura do espetáculo, inescapável, faz zunir estampidos do culto às armas e das licenças para matar emitidas por parte dos governantes empossada no início do ano. Numa peça de 2002, .45’, Blanco recorreu ao calibre no título para aludir à prática dos donos de uma companhia internacional que praticavam tiro ao alvo no sótão de um clube de elite. Poder e corrupção unidos na legalização de assassinatos: ficção ou realidade?

.:. O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Curitiba

.:. Leia a crítica de Maria Eugênia de Menezes a O bramido de Düsseldorf

.:. Leia a crítica de Valmir Santos à montagem brasileira de A ira de Narciso

Serviço:

Onde: Sesc Vila Mariana – teatro (Rua Pelotas, 141, tel. 11 5080-3000)

Quando: Somente quarta (dia 10/4) e quinta (dia 11), às 21h

Quanto: R$ 9 a R$ 30

Saeed Pezeshki

A prostituição e o mundo dos assassinatos contratados se entrelaçam na obra que estreou em março passado em Bogotá

Equipe de criação:

Texto e direção: Sergio Blanco

Com: Wilderman García Buitrago

Assistência de direção: José Saeed Pezeshki

Produção: Wilson I. García e Matilde López

Produção no Brasil: Pedro de Freitas / Périplo Produções

Coprodução: La Maldita Vanidad Teatro (Colômbia) e Marea Productora Cultural (Uruguai)

Realização: Festival de Curitiba e Sesc SP

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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