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Crítica

O espelho do tempo em ‘Caros ouvintes’

29.9.2019  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Daumer De Giuli

Quando estreou, em 2014, Caros ouvintes era uma peça que falava do passado. Na obra, escrita e dirigida por Otávio Martins, apareciam em destaque personagens de um mundo às vias de extinção. No fim dos anos 1960, enquanto o Brasil assistia ao acirramento da ditadura militar, crescia o poderio das redes de televisão e chegava ao fim a era das rádios. Cantores, sonoplastas, dubladores, operadores de som e atores das radionovelas perdiam seus empregos e buscavam se recolocar em um mundo transformado.

Em 2019, ao entrar novamente em cartaz, o espetáculo manteve o tom nostálgico e cômico que cativou as plateias em sua primeira temporada. É possível que muitos daqueles que vivenciaram o momento histórico retratado, de ocaso do rádio no Brasil – ao menos da forma como as rádios operavam até então – encontrem na obra motivos para rememorar a época de maneira edulcorada. Como se aquele fosse um tempo de certa inocência perdida.

Questões que pareciam ponto pacífico, como liberdade de expressão, precisam ser debatidas novamente. As certezas se liquefizeram. ‘Caros ouvintes’ atrai a plateia com um chamariz – a história de artistas tragados pela modernidade – mas leva esse público a deparar-se com um incômodo e contemporâneo espelho

Mas a reestreia também trouxe a Caros ouvintes um insuspeito sabor amargo. Quando foi concebida, sua dramaturgia lidava com informações que pareciam ser consensuais na sociedade brasileira. Assim como a televisão tornou-se hegemônica, o país viveu um período sob dominação militar, originada de um golpe de Estado, com restrição de liberdades civis e ações de coerção, tortura e assassinato de vozes dissidentes ao regime.

Tudo mudou. Após as últimas eleições presidenciais, com a ascensão de forças de extrema direita ao poder, pôs-se em curso um forte movimento de negacionismo histórico. Os fatos passaram a ser meras versões. Para esse grupo político, a mentira não é um descuido, mas uma operação premeditada de reescrever o passado segundo novos termos. De maneira imprevista, essa movimentação tornou movediço todo o território sobre o qual a peça se estruturava. A alteração, porém, antes de solapar a visão proposta pelo autor, trouxe-lhe novas camadas possíveis de leitura e tornou seu processo de recepção pelo espectador muito mais complexo.

Daumer De Giuli A partir da esquerda, Eduardo Semerjian, Alex Gruli (de costas), Nattalia Rodrigues, Carol Bezerra, Léo Stefanini, Agnes Zuliani e Dalton Vigh, elenco dirigido por Otávio Martins

Durante a transmissão ao vivo do último capítulo da novela Espelhos da paixão, a estação de rádio retratada irá encerrar suas atividades. Atores, locutores e outros profissionais trabalham sem saber do triste desfecho que os espera. Até o princípio da década de 1970, ainda havia novelas no rádio. Com a extinção do gênero, muitos de seus intérpretes migraram para TV. Também alguns autores, como é o caso de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, fizeram essa transição.

Em Caros ouvintes, enquanto os personagens estão às voltas com essas transformações, do lado de fora, uma manifestação política é duramente reprimida pela polícia. Os gritos e o gás lacrimogênio invadem os estúdios. Ali, o espectro político é amplo: há quem prefira não se envolver, há posições conservadoras, como é o caso de D. Ermelinda (Agnes Zuliani), há aqueles que só se preocupam em estar em bons termos com o poder vigente, sem se importar com os abusos cometidos pela política repressiva em curso. Responsável pelos contratos de patrocínio da rádio, Vespúcio Neto (Fernando Pavão) vislumbra um futuro dourado com o crescimento das redes de televisão.

A tensão cresce conforme fica claro que um dos atores da novela desapareceu. Ao que tudo indica, foi capturado por sua participação em uma reunião do sindicato. Não se sabe do seu paradeiro. Talvez esteja preso, talvez algo pior. Nas entrelinhas vislumbra-se o perigo de que possa desaparecer uma vez que caíra em poder do Estado policial.

Além de tratar de questões políticas e das transformações profissionais e tecnológicas do período, a peça também lança luzes para a revolução nos costumes que estava em curso. A personagem Conceição Neves (Natallia Rodrigues) representa a mocinha na radionovela, mas busca um papel diferente para si na “vida real”. Quando o galã e seu chefe, Vicente Martinho (Dalton Vigh) lhe pede em casamento, ela não hesita em descartar a hipótese em nome de sua independência profissional. Já Wilson Nelson (Eduardo Semerjian) ainda precisa esconder a natureza de seu vínculo com Jonas, o personagem desaparecido.

Daumer De Giuli Gruli e Carol na produção que estreou em 2014, manteve o tom nostálgico e cômico somado a um insuspeito sabor amargo, vide o forte movimento de negacionismo histórico em curso

Involuntariamente, essa segunda temporada nos apresenta um espetáculo com feições de alegoria. Os preconceitos de gênero voltaram com fôlego novo. Os discursos homofóbicos foram reabilitados. Questões que pareciam ponto pacífico, como liberdade de expressão, precisam ser debatidas novamente. As certezas se liquefizeram. Caros ouvintes atrai a plateia com um chamariz – a história de artistas tragados pela modernidade – mas leva esse público a deparar-se com um incômodo e contemporâneo espelho.

Serviço:

Onde: Teatro Renaissance (Alameda Santos, 2.233, Cerqueira César, tel. 3069-2286)

Quando: Hoje (domingo), às 18h; a partir de 5/10/2019, sábado, às 18h, e domingo, às 20h. Até 3/11

Quanto: R$ 70 (inteira) e R$ 35 (meia-entrada)

Horário da bilheteria: quinta, das 14h às 20h; sexta, sábado e domingo, das 14h até o início da sessão do último espetáculo.

Vendas online: www.ingressorapido.com.br

Duração: 90 minutos

Classificação: 12 anos

Capacidade: 440 lugares

Equipe de criação:

Texto e direção: Otávio Martins

Com: Agnes Zuliani, Alex Gruli, Carol Bezerra, Dalton Vigh, Eduardo Semerjian, Fernando Pavão, Léo Stefanini e Natallia Rodrigues

Assistente de direção: Marcos Damigo

Cenário: Will Siqueira e Fabio Almeida Prado

Cenotécnica: Rafael Mesquita, Rafael Junqueira, Rafaelle Magalhães e Phelippe Lima

Direção de arte: Fábio Almeida Prado

Música original: Ricardo Severo

Desenho de luz: Matheus Macedo

Figurino: Fábio Namatame, Otávio Martins e Adriana Grzyb

Visagismo: Eliseu Cabral

Operador de luz: Matheus Macedo

Operador de som: Vinícius de Souza

Contrarregras: Danilo Queiroz e Lucas Ramos

Fotos: Heloisa Bortz

Vídeo: Matheus Luz

Assessoria de imprensa: Pombo Correio

Produção: Adriana Grzyb, Léo Stefanini e Will Siqueira

Assistente de produção: Gabriela Fiorentino

Assistente de elenco: Mayara Justino

Design: Aline Moreira e Rodolfo Ferreira

Administração: Adriana Grzyb

Assistente administrativa: Márcia Oliani

Realização: Cora Produções Artísticas Ltda.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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