Crítica
Numa situação hipotética, daqui a cem anos pesquisadores passarão a espátula no quadro da produção cênica desta segunda década do século 21 e chegarão às camadas constitutivas de Domínio público. À luz da ciência, resplandecerá um contra-argumento sutil à sordidez, ao falso moralismo, à cultura do linchamento, ao elogio da mediocridade como estratégia distorciva, vide a que culminou em obscurantismo no cenário do país.
O espetáculo destapa o eclipse sobre a arte, jorra a incontornável liberdade sobre o ato criador e sua recepção. Passados dezesseis meses da estreia, a coprodução do Festival de Curitiba (2018) resulta mais incisiva em linguagem e conteúdo, em capacidade de suscitar pensamento crítico.
O que o projeto ‘Domínio público’ expõe são os múltiplos e trabalhosos caminhos para se alcançar bom senso. Ou seja, o oposto da artificialização do consenso junto a convertidos, independente do espectro religioso ou ideológico
Ante o irracionalismo digno da Inquisição que atropelou as vidas pessoais e públicas dos artistas-criadores subjaz uma leitura expandida a contrapelo da ascensão do grupo político de extrema-direita no Brasil. Em seis meses de culto ao poder policial, paramilitar e afins, fruir Domínio público é um exercício civilizatório para quem busca parâmetros na tentativa de apreender a realidade turva.
A presunção da verdade é examinada não para predizer outras verdades. O que o projeto expõe são os múltiplos e trabalhosos caminhos para se alcançar bom senso. Ou seja, o oposto da artificialização do consenso junto a convertidos, independente do espectro religioso ou ideológico.
Historicamente, sabemos, a ignorância tem sido um instrumento-chave na manipulação de uma sociedade pelo alto da pirâmide. Aqui, a disposição para especular é de outra monta: a sede de conhecimento, a inclinação à análise, a salvação pela clareza (ou pelo escurecimento, na perspectiva negra). Dispensa-se, de todo modo, a conjectura ofensiva.
Mesmo o público não familiarizado com os episódios polêmicos que atingiram os artistas que performam sente-se convidado a exercitar sua inteligência sob a mediação da arte.
No enredo pregresso, em suma, a performer e coreógrafa Elisabete Finger é mãe da criança que tocou o tornozelo do bailarino e coreógrafo Wagner Schwartz durante a performance interativa La bête, no MAM-SP, em que ele se apresenta nu. Ambos foram patrulhados e ameaçados de morte sob a instrumentalização da pedofilia pela turba infame.
O performer Maikon K, por sua vez, foi detido por policiais enquanto exibia a performance DNA de DAN na área externa do Museu Nacional da República, em Brasília. E a atriz Renata Carvalho, travesti protagonista no solo O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, interpretou o papel de um Cristo transexual e teve sessões censuradas através de ações judiciais movidas por fanáticos religiosos.
Em Domínio público, os criadores que tiveram os corpos perseguidos pela tentativa de silenciamento optam em sublimar na voz uma experiência antiespetacular suportada por uma obra comum às suas pensatas: Mona Lisa, do pintor florentino Leonardo da Vinci (1452-1519).
O icônico quadro do período do Renascimento está posicionado ao fundo do palco em escala muitas vezes maior do que o tamanho original da tela: 53 por 77 centímetros. A luz é básica, não varia. Em figurinos civis, digamos assim, Schwartz, Renata, K. e Elisabete, nessa ordem, discorrem, um a um, sobre aspectos históricos, técnicos e estilísticos da pintura (nas sessões do FIT Rio Preto Renata participou por meio de vídeo; no entanto assistimos a uma apresentação ocorrida no Instituto Goethe paulistano no ano passado).
Mas tampouco a tela é epicentro. São compartilhados detalhes de sua origem, seu entorno e, sobretudo, a fama que angariou após ser roubada do Louvre parisiense, em 1911, por Vincenzo Peruggia, ex-funcionário do museu. O pano de fundo dos acontecimentos – o retrato só foi recuperado mais de dois anos depois – ajuda a decodificar o que é fato ou invenção. Os dados e os chistes permitem apreciar o forjamento, ao longo do tempo, da percepção desse objeto pela combinação de impressões passadas e presentes. Uma espiral secular.
No mundo real do bombardeiro de notícias falsas que deixa o cidadão no vácuo ou o incita, a pergunta final instaura um rumoroso silêncio do lado de cá. Lê-la aqui não chegaria aos pés do que significa presenciar o desfecho dessa jornada de saberes.
:. Escrito no contexto do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, o FIT Rio Preto 2019.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do evento.
Equipe de criação:
Criação, texto e performance: Elisabete Finger, Maikon K, Renata Carvalho e Wagner Schwartz Colaboração artística: Ana Teixeira
Figurino: Karlla Girotto
Assistente de figurinos: Flávia Lobo
Maquiagem: Felipe Ramirez
Iluminação: Diego Gonçalves
Direção técnica: Juliana Vieira
Produção: Corpo Rastreado / Gabi Gonçalves
Difusão internacional: Something Great / Rui Silveira
Fotos: Humberto Araujo
Apoio: Casa Líquida, Egrey, Fernanda Yamamoto
Coprodução: Festival de Teatro de Curitiba
Agradecimentos: Alba Roque e Julia Feldens
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.