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Crítica

Pé no chão e linha de fuga em ‘Os um e os outros’

28.10.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cacá Bernardes

Urgente e ancestral, a causa indígena desponta como eixo em Os um e os outros, parceria da Cia. Livre e da Cia. Oito Nova Dança. É a arte confrontando séculos de arbitrariedade e opressão, lidando com o legado das culturas imemoriais dos habitantes originários do Brasil e demais extensões do continente americano. Os estados de presença de uma mulher, de uma criança e de homens do povo Guarani M’Bya amplificam a experiência do público, como se conformassem um bioma cênico na dignidade manifestada através do olhar e da postura. Mais em tupi do que em português, eles se expressavam através de corpo, voz, canto e instrumentos artesanais. A relação com atores, bailarinos e músicos se dá de maneira a reconhecer diferenças e a delinear saberes da floresta. Uma modulação poética microscópica que toca com magnitude no cerne das ameaças ambientais e ainda tem a ver com a noção de espiritualidade (nela contida a ritualidade).

Para uma corporeidade assertiva e coerente com o vocabulário gestual ameríndio da festa, do rito e da prontidão à luta quando sob a ameaça – condição histórica de quem enfrentou genocídios –, o coro de criadores, como a produção designa, foi perspicaz em operar essa ancestralidade à luz de um texto de Bertolt Brecht, poeta cujas peças são estruturadas como sistemas que também pedem disposição ao jogo

Em níveis estético e de cidadania, a cocriação surge carregada de ressignificações quanto ao choque de realidades (que ao cabo também pode ser de confluências) entre a comunidade dos índios e a comunidade dos artistas não-índios. O branco, portanto não nascido numa etnia, costuma ser denominado juruá ou karaí na língua tupi.

Choque entendido na acepção produtiva, de movimentos de placas tectônicas – o espetáculo ergue um fluxo rotatório de múltiplas fontes –, e choque no sentido de ação violenta, de genocídio dos seres que aqui estavam em séculos pré-cabralinos e só tiveram seus direitos sobre as terras oficialmente reconhecidos por meio da Constituição de 1988. Ou seja, respeito à identidade e organização social, aos costumes, línguas, crenças e tradições. Prerrogativas infringidas pelos ocupantes do Planalto e das Esplanadas dos Ministérios que insistem em “civilizar” índios, em liberar produção agrícola nas terras demarcadas e em se fazer de entreposto do setor de mineração.

Por outro lado, é impossível não contrastar as presenças guaranis com a catequização de José de Anchieta e Companhia de Jesus nos primeiros anos da “invasão” portuguesa, no que a historiografia sinaliza os primórdios da memória cênica, esta que possivelmente remonta a mitos e cosmologias indígenas ainda mais remotas. Em Teatro de Anchieta a Alencar (Editora Perspectiva, 1993), Décio de Almeida Prado anotou como os colonos portugueses investiam na conquista de terra, escravizando e executando os povos originários, enquanto aos padres caberia “a tarefa ainda mais árdua”, no dizer do crítico: sujeitar a alma indígena.

Cacá Bernardes Cena de ‘Os um e os outros’, conjunção de artistas da Cia. Livre, da Cia. Oito Nova Dança e de colaboradores com passagens ou vínculos com outros agrupamentos de São Paulo

O espetáculo em análise alinha-se aos pares de ponta nas artes da cena do país que dialogam efetiva, crítica e inventivamente com o cenário de “ecocídio”, na definição recente da Procuradoria da República em Altamira (PA). Há obras emblemáticas que abordam a resistência indígena nos repertórios de José Celso Martinez Corrêa e Oficina; Marika Gidali e Décio Otero na Companhia do Ballet Stagium; João das Neves; Lia Rodrigues Companhia de Danças; Maria Thais e Companhia Teatro Balagan, entre outros nomes e agrupamentos.

De volta a Os um e os outros, a contundência vem sustentada em cosmo estético próprio, engenho de encontros promovidos a partir da sondagem do caos: as vidas real e institucional atualmente em colapso. Nascidas na virada de milênio, na cidade de São Paulo, a Cia. Livre (2009) e a Cia. Oito Nova Dança (2000) já vinham se dispondo a projetos comuns no exercício de alteridade em percursos, pesquisas e procedimentos, como em Xapiri Xapiripê, lá onde a gente dançava sobre espelhos (2012). Dessa vez, a parceria radicaliza-se em parâmetros sociopoéticos. Além do coro convidado Guarani M’Bya, que vive na Terra Indígena Tenondé-Porã, no distrito de Paralheiros, zona sul, há a participação de artistas colaboradores cujas trajetórias incluem coletivos teatrais como a Cia. do Feijão e Oficina Uzyna Uzona.

A rigor, não se tem aqui a preocupação formal de uma linguagem tributária da fusão ou da fricção dança-teatro, e vice-versa. Os elementos plásticos da cena e a movimentação dos atuantes espraiam-se num constante rearranjo, estimulando na audiência um olhar multifocal, percepção coerente com a natureza indígena.

Para uma corporeidade assertiva e coerente com o vocabulário gestual ameríndio da festa, do rito e da prontidão à luta quando sob a ameaça – condição histórica de quem enfrentou genocídios –, o coro de criadores, como a produção designa, foi perspicaz em operar essa ancestralidade à luz de um texto de Bertolt Brecht, poeta cujas peças são estruturadas como sistemas que também pedem disposição ao jogo.

A escolha de Os Horácios e os Curiácios (1933-1934) revela-se organicamente bem-sucedida. Derradeira em sua fase de peças de aprendizagem, foi escrita quando o dramaturgo alemão estava em seus primeiros dois anos de exílio em países europeus. Ele queria ficar geograficamente próximo do seu, pois tinha esperança de que a ascensão do nazismo não durasse tanto, regime respaldado por boa parte dos concidadãos. Ao todo, o autor passou 15 anos longe de Berlim.

Cientes de que didático não quer dizer doutrinário, os artistas superpõem diferentes situações e informações ao texto original, praticamente intacto (a tradução não é informada), sem artificializá-lo ou travar a comunicação direta com a plateia, atitude anti-ilusionista que está na base da fábula brechtiana.

Cacá Bernardes Espetáculo é uma livre recriação de ‘Os Horácios e os Curiácios’, que Brecht escreveu sob nazismo e os brasileiros correlacionam com a opressão aos povos da floresta

Inspirado no conflito da Roma Antiga (753-509 a.C.) que também motivou o dramaturgo Pierre Corneille em Horácio (1640) e o pintor Jacques-Louis David em O juramento dos Horácios (1784), ambos franceses, Brecht recorre à alegoria para narrar a disputa de terras e minas pelas cidades de Roma e Alba.

Em vez de acionarem os respectivos exércitos, as autoridades preferem que a disputa seja definida por meio do embate de clãs. Três irmãos romanos, os Horácios, e três irmãos albanos, os Curiácios, embrenham-se em campo de batalha como guerreiros dispostos a lutar até a morte lançando mão de espadas, lanças e arco e flecha. A vitória dos que eram mais desprovidos de armas, mas conheciam seu território como ninguém, e a derrota de quem confiou no poderio bélico e desprezou a tática permitem analogia com a inteligência dos índios para resistir à predação capitalista. Afinal, a visão do desfazimento do céu, pelo xamã yanomami Davi Kopenawa, interlocutor dos artistas, é plausível a essa altura do estágio da humanidade no planeta.

Por isso a voltagem política é incontornável e ganha momentos esclarecedores, como no trecho audiovisual da fala da Sonia Guajajara, coordenadora da Associação dos Povos Indígenas (Apib). Essa liderança mostra-se lúcida e alerta quanto ao inimigo-mor da floresta nos dias brasileiros de hoje, Jair Bolsonaro, cuja voz e face aparecem insistentemente ao longo da encenação, como que para delimitar o inimigo. Estratégia que quase faz o espetáculo desandar, por efeito reverso de fixação no presidente, não fosse o contraponto de Sonia ou mesmo do cacique Tinini, do povo Yudjá, falando em tupi direto da aldeia Tubatuba, no Território Indígena do Xingu (MT), posicionando-se de chefe de nação para chefe de governo logo nas primeiras horas da gestão posta em xeque.

Cacá Bernardes Fredy Allan, que já passou pelo Oficina; recriação incorpora o coro convidado Guarani M’Bya, que vive na Terra Indígena Tenondé-Porã

O formato de opereta de Os um e os outros torna a narrativa malemolente. Como se o texto transcorresse pela borda e a plataforma central fosse permanentemente cohabitada pelo rito e pela consciência crítica, cambiando ainda a referência documental (projeções de imagens) e os lugares de fala de cada indivíduo. Os depoimentos são dramaturgia. O que aos olhos e mentes céticos que porventura não testemunharam pode soar mirabolante, a experiência constata integridade e senso de pertencimento.

Artistas “jogadorxs”, assim autodenominados na grafia da ficha técnica, posicionam-se enquanto cidadãos e miram no olho para convidar todo mundo aos deslocamentos nos arrastões, a coralidade de pés enraizados que desmancha os espaços da plateia e da cena – uma esperançada tradução movente de democracia, regime tão ideal como imperfeito, ainda mais sob ataque. A maioria das criaturas desse projeto teve suas vidas vinculadas ao universo indígena, foi a campo nas aldeias. São sujeitos realimentados pelos representantes do povo Guarani M’Bya para reencontrar a arte em suas expressividades de corpo e alma, trocas de bagagens e de visões de mundo regidas por mãos e ideias firmes da diretora e iluminadora Cibele Forjaz (cofundadora da Cia. Livre) e da bailarina, diretora de movimento e preparadora corporal Lu Favoreto (Cia. Oito Nova Dança).

.:. O espetáculo Os um e os outros cumpriu temporadas no Tusp, no Centro Universitário Maria Antônia, de 11 a 27 de outubro de 2019, e no Sesc Pompeia, de 5 a 22 de setembro.

Os Um e os Outros , curta temporada noTUSP.

Hoje tem apresentação de OS UM E OS OUTROS no TUSP!!!

Publicado por Casa.Livre em Sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Equipe de criação:

Jogadorxs: Adriano Salhab, Cibele Forjaz, Fernanda Haucke, Fredy Allan, Gisele Calazans, Lu Favoreto, Lucia Romano, Marcos Damigo, Roberto Alencar e Vanessa Medeiros

Contrarregra em cena: Jackson Santos

Músicos em cena: Adriano Salhab e Gabriel Máximo

Composições de trilha original, direção musical e arranjos: Adriano Salhab e Guilherme Calzavara

Desenho de som e sonoplastia: Ivan Garro

Direção de arte: Cla Mor, Marília de Oliveira Cavalheiro e Valentina Soares

Arquitetura cênica e objetos: Marília de Oliveira Cavalheiro

Figurinos e objetos: Valentina Soares

Vídeo: Cla Mor e Fábio Riff

Assistência de vídeo: Annick Matalon, Lucas Brandão e Mariana Caldas

Operação de vídeo: Cla Mor

Vídeo mapping: Fábio Riff e Mariana Caldas | Vapor 324

Luz: Cibele Forjaz e Matheus Brant

Operação de luz: Matheus Brant e Nara Zocher

Identidade visual e projeto gráfico: Julia Valiengo

Assistência de direção: Gabriel Máximo e Jackson Santos

Preparação e direção vocal: Lucia Gayotto

Preparação corporal e direção de movimento: Lu Favoreto

Assessoria de imprensa: Márcia Marques | Canal Aberto

Produtoras: Bia Fonseca e Iza Marie Miceli | Nós 2 Produtoras Associadas

Direção-geral e encenação: Cibele Forjaz

Coro convidado do povo Guarani M’Bya [em revezamento]: Jerá Poty Mirī | Jerá Guarani, Tatarndy Germano, Karai Negão, Karai Tiago, Poty Priscila e Karai Tataendy Ricardo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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