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Crítica

Flagrante de uma sociedade em mutação

6.2.2020  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Otávio Dantas

Eu sempre gostei de tratar de coisas que eu mesmo não sei nomear, afirmou o dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra ao participar da 32ª edição do Encontro com Espectadores, junto ao ator e diretor Clayton Mariano. Ele se referia ao modo como investiga as relações sociais e políticas em sua obra: no calor dos acontecimentos, sem a visão panorâmica trazida pelo distanciamento temporal. Pois tal operação poética, que vê nas incertezas do presente a matéria por excelência a ser tratada no palco, constitui a peça Floresta, com direção e texto de sua autoria.

Na cena de abertura, está-se diante de uma família: pai (Clayton Mariano), mãe (Gilda Nomacce) e filha (Sofia Botelho), vivendo numa espécie de abrigo secreto, alimentando-se de um estoque de enlatados e confiando (pouco) na proteção da densa floresta que cerca a casa e, supostamente, impede a identificação do local. Ao menos é o que se pode deduzir das palavras extraídas da conversa um tanto desconexa entre eles.

Há algo de fugidio apontado nessa encenação de perturbadora violência que escapa à nomeação. Talvez o desvelamento, na forma estranhada da arte, de um processo de mutação radical no comportamento humano no que diz respeito à sua (des)vinculação com a linguagem, tal como a conhecemos hoje, assim como com a atual concepção de coletividade. A teatralidade deFloresta’ nos coloca diante de um quadro de humanidade que caminha para o irreconhecível

Certeza mesmo só da atmosfera de medo – ainda que sem fonte precisa – que impregna todo o ambiente. “Cada fechadura suplementar na porta de entrada faz surgir um mundo mais desconfiado e medroso”, afirma o sociólogo Zygmunt Bauman em análise sobre o processo de degradação das cidades e sua arquitetura de condomínios e shopping centers.

Em síntese, Bauman argumenta que a sensação de insegurança é ampliada pela perda do caráter público do espaço urbano, cada vez mais descaracterizado como território partilhado por pessoas de diferentes classes sociais, nacionalidades e hábitos culturais, unidas pelo interesse comum de deslocamento, de comércio e de lazer. Do ponto de vista dele, o convívio coletivo e permanente desidrata o medo.

Há pontos de contato entre o pensamento de Bauman e a investigação central da peça Floresta, que se inicia com a imagem do autor em um telão entrevistando pessoas sobre a definição de inimigo. O modo como o espetáculo apresenta a família permite deduzir que a busca de proteção na forma do isolamento só fez aumentar a sensação de insegurança, e parte desse fracasso deve-se à incapacidade geral de diálogo baseado em desejo efetivo de escuta e troca de ideias.

Alguns procedimentos da direção intensificam para o espectador a sensação de vulnerabilidade. A cenografia está longe de desenhar uma fortaleza como moradia. Ao contrário disso, não há portas e os deslocamentos das personagens – filha e mãe, em especial – se dão quase que pelas paredes. Pintadas de um verde suave e situadas no fundo do palco, atrás dos poucos móveis, são quase tão estranhas quanto os diálogos truncados, mas ainda remetem à sala de estar de classe média.

O mesmo marcador social pode ser notado nos figurinos, cuja incompletude – intérpretes meio vestidos, meio desnudos – parece simbolizar a falência das defesas daqueles corpos em seus movimentos erráticos. A porosidade do abrigo se evidencia na movimentação do par de estranhos (Andre Capuano e Nilcéia Vicente) que a certa altura entra na casa e passam a se relacionar com a família. Essas duas figuras – cuja vida pregressa ou motivação para estar ali permanece obscura – vêm da plateia e entram na casa de forma natural, como quem simplesmente exerce o direito de estar ali. Figurinos e diálogo indicam que pertencem a outra classe social.

É possível reconhecer na proximidade da floresta e na nudez parcial dos corpos um signo do desmonte da chamada civilização? Sim, e pode-se ainda ler a violência que se abate sobre o patriarca como ação punitiva contra um certo comportamento tosco de tentativa de controle sobre as mulheres, sob a capa da proteção.

Porém, em se tratando da dramaturgia de Dal Farra, nada é explícito, e a melhor abordagem talvez não seja decifrar o que se mostra, e sim atentar para o que nubla o olhar. Não por acaso o pronome interrogativo “quê?” é repetido à exaustão, algumas vezes na função de estranhar o banal, mas sempre tendo como efeito reforçar o estado de incompreensão.

Não é a primeira vez que Dal Farra tateia sob névoa forte. A opacidade parece inevitavelmente associada à criação desse autor que, em vez de dissecar o passado para iluminar o presente, prefere flagrar crises em plena eclosão. Nessa vertente criou, por exemplo, a trilogia composta pelas peças Abnegação (2014), Abnegação II – O começo do fim (2015) e Abnegação III – Restos (2016) simultaneamente ao conturbado período que precede a retirada do Partido dos Trabalhadores da presidência do país.

Otávio Dantas André Capuano, Gilda Nomacce e Nilcéia Vicente em ‘Floresta’, dramaturgia e direção de Alexandre Dal Farra: entre a covardia amesquinhada e a barbárie mais brutal

Dirigidas por ele em parceria com Clayton Mariano, criações do grupo Tablado de Arruar, a primeira, cheia de silêncios e elipses, retratava uma tensa reunião de políticos que haviam ultrapassado algum limite ético, ato cuja consciência minava as relações. Em Abnegação II não há mais pudores e tudo se resume a uma brutal disputa de poder. Os cadáveres saíram do porão e apodreciam a céu aberto. Na última, a questão central era a dificuldade de fazer conexão entre fatos, recentes ou históricos. Perplexidade e ignorância davam o tom.

Desta vez, em Floresta, o que ganha relevo e move os comportamentos é a sensação de ameaça. A iminência de um acontecimento terrível paira sobre todos. Na família, essa expectativa resulta em impotência e inércia; entre os estranhos, há muito oprimidos na carne, em ressentimento e agressividade. O outro é o inimigo. Sob a sombra dessa fantasmagoria tirânica os vínculos se esgarçam. Restam os puramente biológicos ou, como ocorre entre os estranhos, o equilíbrio pela força. Se não fosse tratada como tal, a fatalidade poderia ser evitada? É uma das perguntas que reverberam dessa encenação.

Embora tenha evidente caráter investigativo, Floresta não é uma peça de discursos e ideias abstratas, e mesmo que não haja um desenho nítido e psicologizado dos personagens é para o ser humano que o olhar do autor se volta. Nessa dramaturgia quase sem balizas, cabe ao elenco a tarefa de expressar por meio de corpos e sensibilidades as questões postas em cena e, é preciso dizer, a tensão que mantém o espectador ligado ao palco deve muito às atuações. A capacidade do elenco de tornar críveis a existência daquelas figuras alegorizadas é fundamental para a fruição do espetáculo.

Há vislumbre de futuro em Floresta? Cidadãos divididos podem organizar um território seguro e voltado para o bem comum? Afinal, é no presente que se forja o futuro, ainda que o traçado só se torne visível depois de dissipada a fumaça. Vale lembrar que a temporada de Floresta coincide com o período em que uma atriz que há certo tempo confessou publicamente sentir medo de um candidato oposto à sua ideologia, fazendo deste sentimento o condutor de seu voto e ação política, acaba de aceitar ser parte de um governo obcecado por armar a população.

Não por acaso a pergunta – quem é o inimigo? – está na gênese do espetáculo. Voltando à conexão com Bauman, no livro Confiança e medo na cidade (Zahar, 2005), ele observa que para as “pessoas de bem” o inimigo é “aquela gente sem perspectiva” que a economia tornou “supérflua”. Na análise do sociólogo polonês, para proteger-se dessa gente fabricada pelo modelo econômico – tratado como inalterável –, os cidadãos de bem investem cada vez mais em trancas, armas e muros.

Floresta é o retrato de uma gente que caminha entre a covardia amesquinhada e a barbárie mais brutal. Mas não se reduz à imagem que esse quadro emoldura. Há algo de fugidio apontado nessa encenação de perturbadora violência que escapa à nomeação. Talvez o desvelamento, na forma estranhada da arte, de um processo de mutação radical no comportamento humano no que diz respeito à sua (des)vinculação com a linguagem, tal como a conhecemos hoje, assim como com a atual concepção de coletividade. A teatralidade de Floresta nos coloca diante de um quadro de humanidade que caminha para o irreconhecível. Como uma trilha que aos poucos vai sendo encoberta pelo mato, e subitamente deixa de existir.

.:. Leia também:

A crítica de Beth Néspoli para Abnegação

A crítica de Valmir Santos para Abnegação

A crítica de Maria Eugênia de Menezes para Abnegação III – Restos

Serviço:

Floresta

Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, tel, 3170-4059)

Quando: quinta a sábado, às 21h; domingo, às 18h. Até 9/2

Quanto: R$40 e R$20 (meia-entrada); R$12 (credencial plena)

Duração: 90 minutos

Classificação indicativa: 18 anos

Otávio Dantas Sofia na peça que reflete acerca de como lidar com o inimigo

Equipe de criação:

Texto e direção: Alexandre Dal Farra

Com: Gilda Nomacce, Nilcéia Vicente, Sofia Botelho, André Capuano e Clayton Mariano 

Música original: Miguel Caldas 

Operação de som: Tomé de Souza 

Desenho de luz: Wagner Antônio 

Assistente de iluminação: Dimitri Luppi Slavov 

Cenografia e figurinos: Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano 

Cenotecnia: Edson Luna

Vídeos: Flávio Barollo

Direção de produção: Carla Estefan

Produção executiva: Gabriela Elias

Administração: Metropolitana Gestão Cultural

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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