Encontro com Espectadores
16.5.2020 | por Teatrojornal
Foto de capa: Jennifer Glass
Em mais um domingo de manifestação contra as instituições democráticas do Legislativo e do Judiciário na Avenida Paulista, ocorrida no dia 25 de agosto de 2019, se deu a 32ª edição do Encontro com Espectadores. Desta vez o foco recaiu sobre Pornoteobrasil, à época a mais recente criação do grupo Tablado de Arruar, tendo como convidados o dramaturgo Alexandre Dal Farra e o diretor Clayton Mariano, sob mediação da jornalista Beth Néspoli. Era o segundo convite feito ao grupo. O primeiro propunha uma discussão sobre a Trilogia abnegação, porém a agenda da dupla não permitiu a participação. Talvez por isso, nessa nova oportunidade, a conversa tenha girado não apenas em torno de Pornoteobrasil, mas tenha se estendido a outras criações do coletivo fundado em 2001 com o espetáculo de rua A farsa do monumento, em especial a citada trilogia.
Ao longo do encontro, diretor, dramaturgo e também a atriz Lígia Oliveira, uma das fundadoras do Tablado, presente na plateia, também comentaram sobre como o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, criado a partir do movimento Arte contra a Barbárie e estabelecido em 2002, ou seja, surgido e sedimentado simultaneamente à trajetória do grupo, contribuiu para configurar um processo de criação baseado em pesquisa. Por outro lado, a adoção de um dramaturgo, Dal Farra, e do texto como base para o trabalho dos atores e da direção negam, em parte, a filiação ao modo de criação colaborativo, procedimento também associado aos coletivos sedimentados nas primeiras décadas do século 21 na cidade de São Paulo.
Esse projeto tem a ver com a necessidade de olhar, de novo, para essas pessoas e falar que esses caras existem, eles estão aí. Sim, eles agora estão aí, mas a gente continua não falando com eles, a gente não os coloca no lugar do inimigo, a gente não aceita esse lugar, a gente simplesmente fala que eles são ninguém. Então é essa a questão, e tem a ver com como lidar com o inimigo, como olhar para o inimigo
Alexandre Dal Farra, dramaturgo e codiretor
Transcrevemos e editamos a conversa entre público presente, artistas e críticos na ação do site Teatrojornal – Leituras de Cena realizada em parceria com o Itaú Cultural, sempre em torno de um espetáculo previamente escolhido.
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Beth Néspoli
Bem-vindas todas e todos. Obrigada, Alexandre e Clayton por terem aceitado nosso convite para estar aqui hoje. Eu gostaria de saber se tem algum espectador que não seja ligado ao teatro, não seja ator, estudante de teatro ou qualquer atividade ligada ao teatro [raras mãos se levantam]. Temos hoje um público predominantemente endógeno.
Em nosso trabalho no Teatrojornal desejamos criar textos que qualquer pessoa interessada em teatro possa ler. Perseguimos uma linguagem jornalística em análises que tenham rigor e verticalidade. Por outro lado, na página do site no Facebook publicamos recomendações de peças semanalmente por meio de textos de cinco linhas em que é abordado um aspecto do espetáculo, um que faça valer a ida ao teatro, ou seja, é uma escrita mais dinâmica, nessa linha da rede social em que as coisas são mais curtinhas. Ainda assim, a gente busca ir um pouco mais fundo nos argumentos de nossas recomendações.
Um dos objetivos desse encontro presencial é discutir sobre os desejos e princípios que movem a criação do ponto de vista dos artistas em contraponto com o que afetou a recepção. Se a gente conseguir trocar um pouco sobre isso, sobre as diferenças entre o que o artista desejou e o que realmente afetou do lado de cá, do público, pode ser importante, porque a percepção da gente sobre uma peça é um processo sempre em mutação, não é fixo. Eu tive uma percepção sobre Pornoteobrasil quando vi no teatro e talvez saia hoje daqui com outra, a partir dessa conversa, que pode alterar meu ponto de vista e, esperamos, o nosso ponto de vista pode mudar a criação desses artistas, porque toda criação é apenas um ponto de um trajeto mais amplo.
Vou fazer uma abordagem sobre o trabalho dos participantes já com algumas perguntas, depois, cada um deles fala e a gente abre o debate. O Alexandre tem uma formação em música, graduação e mestrado [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP] e, atualmente, é doutorando [Escola de Comunicações e Artes da USP) na área do teatro. Ele é também autor do romance Manual da destruição [Editora Hedra, 2012]. Clayton tem formação de ator pela Escola de Arte Dramática [EAD-USP] e graduação em Letras [FFLCH-USP].
É curioso: Clayton é formado em Letras, mas quem escreve é o
Alexandre, que é formado em música. O Clayton é um ator com presença no cinema
(Divino amor, direção de Gabriel Mascaro; O olho e a faca, de Paulo
Sacramento; Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto; e Se deus vier,
que venha armado, de Luís Dantas) e em séries (Psi, do canal HBO; e Entre
o céu e a terra, do Canal Viva). Ambos os artistas trabalham em outros
grupos, não apenas de teatro. O Alexandre escreveu, por exemplo, a dramaturgia
de O filho, do Teatro da Vertigem; e de Nada aconteceu, tudo
acontece, tudo está acontecendo,uma adaptação do Nelson Rodrigues,
do Grupo XIX de Teatro.
Sobre o Pornoteobrasil, que é a peça que a gente vai discutir hoje, ela integra
a trajetória do Tablado de Arruar, um grupo criado em 2001, o Clayton é um dos
fundadores, com um espetáculo chamado A farsa do monumento. O grupo surge
com um ideário de teatro de rua que se configura na abordagem de questões urbanas,
ou seja, questões que afligem os cidadãos em articulação com o uso da cidade.
Apresentado em praças, A farsa do monumento inspirou-se na história real
de um monumento inaugurado no Rio de Janeiro, como parte das comemorações dos
400 anos do descobrimento do Brasil, uma escultura do Pedro Álvares Cabral, se
não me engano. Ocorre que, no momento da inauguração, não conseguiram tirar o
pano que cobria o monumento e foi preciso um curioso que estava lá acompanhando
subir para conseguir tirar. Assim, o Tablado surge criticando um traço da
cultura brasileira, que é esse misto de ufanismo e precariedade. Nota-se nessa
gênese alguma filiação com a Companhia do Latão e o Grupo Folias, coletivos de alta
voltagem política.
Vou dar um salto. Em 2009, o Tablado entra na sala de teatro pela primeira vez com
a peça Quem vem lá. Lembro que na época eu, atuando como repórter no jornal
Estadão, escrevi sobre esse espetáculo que o bom filho à casa torna. Mas,
pensando sobre isso hoje, que “casa” seria essa? Será que o teatro tem casa
específica? Quem vem lá era uma adaptação de Hamlet, com
provocações ao longo do processo feitas por Reinaldo Maia, ator e dramaturgo que
era do Folias.
Vou dar outro salto para um espetáculo de 2012 que teve forte repercussão: Mateus, 10, sobre um pastor obcecado por esse versículo do evangelho segundo Mateus. Nessa montagem, o grupo aborda um aspecto importante na cultura brasileira que é o elemento religioso, que também está em Pornoteobrasil. O ponto de vista é o da religião fundada na ideia de um salvador, de um Messias, e misturada à política. Sobre esse aspecto é algo que gostaria que vocês falassem, sobre como essa questão é trabalhada na trajetória do grupo, porque, me parece, a religião sempre está presente e imbricada com a política. Está desde Mateus, 10 e, acho, cada vez mais na dramaturgia até Pornoteobrasil.
Quando a gente escolhe um espetáculo para ser discutido aqui, não é para dizer se é bom ou ruim, não é nesse tipo de valoração, é um espetáculo que a gente entende que vale uma discussão. Acho importante lembrar que em 2016 já tínhamos convidado o Tablado de Arruar para discutir a Trilogia abnegação, mas o Alexandre não pôde porque o Encontro com Espectadores, à época, era na última segunda-feira do mês, no Ágora Teatro, e Alexandre não poderia estar presente na data da ação.
Pornoteobrasil, assim, já é um segundo convite. Penso que esses três trabalhos são importantes na trajetória do grupo, A farsa do monumento, na fundação do Tablado de Arruar, depois Mateus, 10 pela repercussão e, mais tarde, a Trilogia abnegação. Sobre a trilogia, eu escrevi sobre a primeira peça, mais tarde o Valmir escreveu e Maria Eugênia também [da equipe do site]. Não é acaso. A trilogia mobilizou muitos olhares críticos e o que chama atenção, vou usar uma imagem que costumo usar, é o modo como as três peças têm como matéria de trabalho uma realidade que é quase como magma, matéria incandescente, difícil de moldar, porque pede tempo e resfriamento.
Uma das possíveis definições de arte poderia ser: inquietação moldada pela sensibilidade e imaginação em obra compartilhável. Quem a recebe faz as conexões com seu tempo a partir de suas próprias inquietações. Pois parece que na Trilogia abnegação e em Pornoteobrasil se escolhe moldar uma matéria colada ao aqui e agora. A necessidade de distanciamento é ideia associada à arte, ou seja, arte e crítica pedem distanciamento. Brecht cria fábulas; Shakespeare, ao abordar as disputas de poder do tempo dele, também se afastava para épocas outras, ia para a Roma do Júlio César. Pois na trilogia o Tablado de Arruar parece fazer o movimento oposto, ele se cola no aqui e agora.
Fiz observação similar ao escrever sobre o livro Manual de destruição. O personagem central vai até a periferia e fica descrevendo uma pessoa sem dentes comendo e é quase como se o autor nos pusesse colados naquela boca, na pele do outro. É desse modo que fala sobre a pobreza, colado em boca e a saliva, uma descrição que provoca asco e leva o leitor a querer fazer o movimento de afastamento, ou seja, a visão panorâmica é forçada na recepção justamente pela proximidade excessiva. Alexandre conduz o leitor a grudar naquela realidade de tal forma que o obriga a fazer um movimento para desgrudar e, assim, conseguir entender do que se fala exatamente. É quase como se ele falasse: “Eu não me afasto para provocar você a se afastar”. Parece-me que essa também é uma característica da dramaturgia de vocês, e gostaria que comentassem esse ponto de vista.
Na primeira peça da Trilogia Abnegação é inevitável tentar associar a trama ao Partido dos Trabalhadores (PT) à época: Abnegação I é um espetáculo de 2014 [Lula esteve na presidência de 2003 até 2011 e Dilma Rousseff de 2011 a 2016]. A dramaturgia é cheia de elipses, de silêncios, tudo é velado, as figuras em cena parecem se entender na troca de olhares, mas sonegam o teor dessa comunicação ao espectador. Ainda assim, é possível entender que a peça flagra um grupo de políticos investindo em algo que, para eles, possui uma gravidade. E tudo indica terem deixado um cadáver no meio do caminho para chegar àquela ação. Há uma remissão à Macbeth e esse cadáver pode aparecer em algum momento.
No programa da peça há citação ao artigo Elogio da profanação, do filósofo italiano Giorgio Agamben que define profanação como o deslocamento de um objeto do plano do sagrado para o plano do cotidiano mais prosaico. Então, a peça carrega essa ideia de retirar algo de uma dada dimensão, de rebaixar, daí é como se o rito da política como construção do bem comum tivesse sido profanado. Porém, percebe-se nas entrelinhas, nas atitudes, que essa profanação incomoda as pessoas que procederam para que acontecesse. E tal incômodo, me parece, é central em Abnegação, espetáculo cheio de aberturas para o espectador criar a sua narrativa nos silêncios, nas pausas, no que não é dito. A porosidade reforça a ideia de que algo está sendo ocultado.
Mais adiante, ao analisar Abnegação III – Restos, a Maria Eugênia vai dizer que havia algo de premonitório nessa trilogia. Interessante notar que se em Abnegação I há essas elipses; em Abnegação II – O começo do fim, que estreia em 2015, não há mais silêncios, não há muito espaço para a imaginação do espectador. São duas formas de criação. Na primeira abrem-se esses vazios para sugerir que algo está oculto. Já em Abnegação II acabam as elipses e, de novo, é aquele movimento de colar na boca, na violência do corpo, tudo explícito, todos falam muito e o tempo todo. É como se, para os personagens, tivesse acabado o incômodo com aquele limite ultrapassado. É como se o espetáculo dissesse: “O pudor ficou para trás”. Temos de fazer algo, não tem jeito de ser diferente, é assim e vamos até o fim.
Mais adiante, em Abnegação III – Restos, que estreia em 2016, o grupo parece buscar um equilíbrio. Voltam as elipses, mas de outra ordem. Nessa montagem, atores e atrizes sentam-se no palco diante do público, um ao lado do outro, e não há diálogo entre eles. Cabe ao espectador fazer as conexões. É o tratamento do trauma de uma história que já aconteceu e na qual público e privado se misturam e nem é mais possível saber exatamente onde ficava aquela fronteira um dia ultrapassada. Nessa peça, também os personagens não sabem como preencher esses silêncios. É como se a busca fosse por tentar lembrar do que aconteceu e, dessa vez, eles fazem pausas porque não sabem o que falar. A Maria Eugênia escreve que a matéria de Abnegação III são pedaços, vestígios de alguma coisa que ficou lá atrás e se perdeu. Nesses fragmentos, há momentos que remetem ao ativismo político de outros tempos, mas é tudo muito opaco, como se o mote fosse a perda da capacidade de fazer conexão.
Ao fim da trilogia, eles criam Refúgio [produção paralela ao grupo] e, agora, Pornoteobrasil, espetáculo sobre o qual Valmir publicou hoje um texto no Teatrojornal que também traz uma síntese de trajetória do Tablado de Arruar e comenta sobre o modo como o grupo aborda a questão religiosa, o mercado da fé, em Mateus 10.
Pornoteobrasil tem três movimentos. No primeiro deles, há uma abordagem messiânica da figura de Lula, uma remissão ao passado recente da política brasileira. O segundo movimento se dá como tentativa de fazer conexão entre memória e realidade, passado e presente, e aí a dificuldade é ainda maior do que em Abnegação III, é como se ninguém mais conseguisse fazer qualquer leitura do que está acontecendo.
Curiosamente, em Abnegação I, embora os personagens não revelassem sobre o que estavam falando, tínhamos a certeza de que eles sabiam exatamente o que estavam fazendo, de onde vieram, o que queriam e qual era o objetivo que justificava o cadáver oculto. Já em Abnegação II a narrativa parecia colada demais na onda antipetista daquele momento e abordava explicitamente a morte de Celso Daniel [ex-prefeito de Santo André assassinado em 2002]. Discuti sobre isso com o Alexandre à época e, de minha parte, foi a peça rejeitada da trilogia. Em Abnegação III, a provocação é pensar sobre onde e quando nos perdemos no caminho, ali não sabemos mais como chegamos e nem onde chegamos.
Agora, em Pornoteobrasil, é como se estivessem presentes vários elementos trabalhados pelo grupo anteriormente: a religião imbricada à política; a impossibilidade de conectar passado e presente; e, ainda, o movimento de se colar à realidade, ao nosso tempo de cacofonia nas redes, quando todos falam, poucos escutam, e ninguém parece ter muita clareza sobre nada.
Faço uma especulação: como são aspectos já presentes em outros trabalhos, de certa forma, Pornoteobrasil talvez também desvele uma faceta do processo criativo do grupo que é a de não ter conseguido ir para outro lugar neste momento. Por outro lado, talvez não seja exatamente um problema, mas sim novamente uma relação com o tempo, que é mesmo esse de estar andando em círculos no mesmo buraco e, no caso da arte, talvez em mostrar isso esteja a potência para provocar outros movimentos.
Pornoteobrasil soa em alguns momentos como desistência de tentar realizar conexões. O fracasso do fracasso em forma cênica. Tem uma pergunta do Flávio Desgranges [professor da UDESC e pesquisador da recepção teatral] muito interessante que é: como distinguir a forma que incomoda porque não trabalha com procedimentos já aceitos, e por isso causa estranhamento, porque o espectador não tem instrumentos para lidar com ela, daquela outra forma que incomoda pela precariedade, ou seja, é matéria que não chegou a ganhar forma expressiva, ficou no meio do caminho entre inquietação e o modo arte? Como fazer essa distinção?
Eu acho que, em certos casos, é impossível responder, talvez só com o
tempo. Quanta forma nova os críticos trataram como precariedade? E quanta
criação opaca a gente chamou de forma inovadora e talvez não fosse? Não sei,
acho que não é muito fácil distinguir e talvez nem seja importante, mas se estou
falando sobre isso é porque talvez Pornoteobrasil provoque tal dúvida. E
talvez seja importante vocês comentarem sobre isso, afinal, é uma criação
diferente da Trilogia abnegação.
Ambos podem falar sobre tudo, mas para você, Clayton, pergunto o que é
trabalhar a direção em parceria, você que é ator e sendo Alexandre o autor e
codiretor, e ambos trabalhando com atores que estão juntos há muito tempo e, certamente,
são também coautores, gostaria que falasse desse processo de criação coletivo.
Clayton Mariano
Queria agradecer ao convite. Realmente, houve um convite anterior, mas a gente não pôde, tinha uma viagem do grupo, acho que não era só do Alexandre. A gente não pôde da última vez e ficou super mal, porque desde 2016 o Encontro com Espectadores já parecia um projeto muito importante, e com o tempo provou ser mesmo, então a gente ficou feliz de conseguir agora participar.
A forma como a gente se organiza dentro do Tablado é muito voltada para o texto, a gente é textocêntrico e somos conscientes disso já há alguns anos. Ao contrário de uma galera mais nova, a gente é meio velho nesse sentido, a gente gosta de texto de teatro. Então tudo surge muito a partir do texto, é quando a gente começa a nossa criação, e isso começa a partir do trabalho do Alexandre, sempre
Cleyton Mariano, ator e codiretor
Acho que têm algumas coisas que dá para pontuar. É possível olhar só para o Pornoteobrasil de maneira isolada, mas eu acho interessante pensar que ele não surge do nada, tem uma trilogia, que também não surge do nada. Você tem um grupo que vem construindo essa história e, isso é muito louco, a gente não tem um consenso sobre a história do grupo. Cada um faz a sua narrativa, mas se eu analiso os momentos significativos, acho que começa com a rua. Havia muitas vontades, uma ideia precisa do que estava fazendo e o contato com a rua foi alimentando a gente.
Mesmo já tendo aspirações políticas, a gente se politizou muito nesse contato, e não só nesse contato com a rua, mas também com o país, quando surge a Lei do Fomento [Lei 13.279 de 8 de janeiro de 2002, que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo]. Um ano ou dois depois que a gente montou A farsa do monumento [2001] surgiu a lei, então tinha um movimento da cultura acontecendo e que a gente acabou se engajando, já vinha antes com o Arte contra a barbárie [movimento de grupos teatrais paulistanos por políticas públicas para as artes cujo primeiro manifesto é de 1999], que a gente já conhecia.
Então teve esse primeiro momento que eu poderia chamar de momento de politização, de entender o que significava trazer o tema da cidade para dentro do grupo. E houve uma ruptura importante quando a gente decide fazer uma peça de sala. O Alexandre já tinha entrado no grupo e o fato dele assumir a dramaturgia é importante, mas acho que isso vai ficar mais evidente depois que a gente faz a primeira peça de sala em 2009. Começamos em 2006 ou 2007 a fazer essa peça de sala, que é o Quem vem lá, e nesse momento algumas pessoas saem do grupo, há uma renovação.
Depois desse espetáculo, o Alexandre meio que fica, continua uma pesquisa dele como dramaturgo e escritor, e a gente volta para a rua. Fora do grupo a gente também monta uma outra peça de sala, eu, ele e a Lígia, que era o Petróleo, e desde então a gente tem uma trajetória paralela. Não só eu e os outros atores, mas ele também vai construindo uma linha paralela e a partir do Helena pede perdão e é esbofeteada, que é uma volta que a gente faz para a rua. Na peça seguinte, Mateus, 10, a sensação que eu tenho é de que a gente tem essa função do dramaturgo já com uma certa tarimba, já tinha escrito algumas peças.
Esse momento é importante, não só porque na sequência vem o Mateus, 10, uma peça em que a gente se encontra com algumas questões, ainda que não sejam muito evidentes à época, mas pela aproximação com um certo realismo enquanto linguagem. Ainda que seja um realismo quase que usado como um artifício e não como defesa ideológica de um realismo que a gente estava acreditando que voltaríamos a fazer, era quase um artifício e isso vai ficar evidente, pelo menos na peça posterior, Abnegação. Ali, ele volta enquanto linguagem e é bem usado como artifício da linguagem.
Depois a gente vai ficar batendo nesse realismo, mas foi importante trazer e sinto que tanto eu quanto o Alexandre gostamos um pouco disso que você tinha falado, de uma aproximação quase cruel mesmo ao real. São momentos importantes para o grupo, o do Mateus, 10 e o da maturidade do Alexandre. O que acontece com Helena pede perdão, e isso me pega até hoje, sinto que foi a abordagem de um assunto que perpassa nossas peças até hoje. Na verdade, ele não está no Helena, ele está no projeto que deu origem ao Helena, porque um dos nossos procedimentos de trabalho é quando a gente faz projetos e levanta muitos temas.
É inegável a forma de produção que o Fomento e os editais, de maneira geral, geraram na gente. O edital nos configurou também. Então, a gente estuda na época em que está escrevendo projetos. Foram alguns assuntos estudados e, dentre eles, aquele que, na verdade, não era bem um assunto, porque foi uma palestra do Paulo Arantes, se não me engano aqui no Itaú Cultural, em que ele falava que a dramaturgia de esquerda paulistana ficava muito centrada na figura da vítima. Isso mexeu muito com a gente porque uma das ideias e uma das perguntas que ele colocava e que a gente se colocou era como fugir dessa dramaturgia da vítima. Pois era a partir da dramaturgia da vítima que a gente encontrava o melodrama, vem a partir daí.
O melodrama é essa forma organizada por meio de vítima e algoz, esse maniqueísmo. A gente começa a perceber que esse tipo de melodrama estrutura inúmeras narrativas, não só da ficção, mas do jornalismo, do telejornalismo, está em todo lugar. E na época a gente se colocou essa questão, e ainda fico me colocando, no sentido de que esse papel de vítima foi muito comprado pela esquerda e era isso que me incomodava, nos incomodava e ainda incomoda.
Nós, enquanto artistas alinhados à esquerda, de certa forma aderimos muito a esse papel e sinto que vem muito daí algumas confusões a pessoas e coisas de nosso campo que se colocam do outro lado, como se virassem o Roberto Alvim [diretor teatral com discurso de extrema-direita] do dia para a noite. O fato de a gente fazer autocrítica com essa figura parecia um absurdo, porque parecia não existir esse lugar da esquerda como vítima, afinal existem outros nomes como “oprimidos”, isso de ficar falando sobre as opressões. Daí, se você critica isso, você não é de esquerda, você não está do lado certo da História, você está do lado errado da História.
Sinto que isso voltou em várias peças de forma mais ou menos
consciente e por diferentes caminhos. Tanto eu quanto o Alexandre decidimos quase
como programa de trabalho abordar facetas disso; percebo que esse assunto da
vitimização da figura da esquerda, desse lugar de tentar fazer uma obra
autocrítica, ou seja, uma obra negativa nesse sentido, tem sido uma constante.
Tem uma tradição muito grande na literatura brasileira a respeito, se você for
pensar. Esse viés negativo fica reaparecendo e eu sinto muitas vezes que a
gente não é politicamente aceito por conta de se colocar nesse papel, nesse
lugar.
Beth
Talvez porque quem faz a leitura não escape da mesma formação, da mesma relação
algoz e vítima – e estou me incluindo. Assim, se você não coloca a esquerda do
lado do oprimido é como se automaticamente colocasse no outro lado, ou seja,
como algoz. A gente acaba não escampando da lógica, a gente só muda de lugar na
mesma lógica, ao menos esse é o risco.
Clayton
E a despeito de eu achar que a esquerda é mesmo algoz e achar que o PT errou
muito… Na época do Abnegação II a gente sabia o que estava falando, a
gente não é ingênuo. Sinto que a nossa posição muitas vezes ficou na corda
bamba e, por outro lado, isso passou a ser significativo porque causava
irritações interessantes na plateia, as peças começaram a provocar.
A gente tinha consciência de quem era nosso público, não estava fazendo telenovela da Globo, não estou atingindo a grande massa da população brasileira. Temos um público quase que especializado ou quase que especialistas assistindo às nossas peças. Então, o diálogo ficava interessante quando a gente colocava uma peça como o Abnegação II, que era superprovocativa para esse público, e isso sem falar de outras que a gente fez. Acho que esse, de certa forma, e identifico olhando hoje, com certa distância, foi um dos pontos que perpassaram várias de nossas dramaturgias.
O outro ponto, que está lá desde A rua é um rio, uma peça de 2005, peça de rua, sempre é o problema de como colocar a elite em cena. Já havia uma certa forma do que a gente entendia da autocrítica, mas tinha uma dificuldade muito grande de falar desse outro, dessa elite, de quem de fato está por trás desses mecanismos políticos que nos interessam falar.
A história do Pornoteobrasil é quase que a história de um fracasso, de tentativas e erros. Acho que o Alexandre pode falar mais depois, mas foram escritas umas cinco peças antes dessa, textos inteiros, completos, com começo, meio e fim. Passava um mês e a gente via que não dava mais para falar isso. Uma das últimas versões, antes dessa que ficou, era toda uma história em cima da semana do vira voto porque estávamos querendo fazer algo que não era muito a nossa cara [o vira voto foi um movimento que tomou as ruas em outubro de 2018, às vésperas da eleição presidencial, no qual pessoas se ofereciam para dar informações sobre a trajetória dos dois candidatos do segundo, Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) e, assim, convencer os eleitores do último a mudar de voto a partir de conhecimento de fatos, atitudes, trajetória e ideias de cada um].
Foi um momento positivo [o do vira voto], da esquerda esperançosa, quando aconteceu um movimento muito positivo no país e a gente achava que não podia esquecer daquilo, porque também tínhamos sentido isso à época. Mas a gente percebeu, quando estava escrevendo, que no período da estreia, lá adiante, não ia dar gás, porque seria difícil lembrar com o que estávamos lidando. E tinha outra versão inteira só com a cena da mesa [uma das passagens mais viscerais de Pornoteobrasil que se dá em torno de uma mesa]. Enfim, a gente foi colhendo as tentativas. Creio que a peça nasce com uma forma de fracasso, no bom sentido. A gente percebe que talvez nenhuma forma combine melhor com o momento político e com a nossa dificuldade de lidar com ele.
E, do mesmo modo, logo após a estreia a gente viu que a peça pediria uma continuidade, porque o assunto não se esgotou. Ele mal começou, na verdade. A peça estreou em fevereiro na Oswald [Oficina Cultural Oswald de Andrade]. Dramaturgia e montagem vieram de um projeto chamado “Pornografia, Pornochanchada, Brasil”, por meio do qual já queríamos falar de alguns aspectos que identificávamos como pornográficos na política do país e em um sentido mais metafórico, mais amplo, consequência de um estudo da obra do crítico de cinema Paulo Emílio [Salles Gomes] sobre pornochanchada.
Eu gostei dessa ideia de magma porque, no fundo, eu sempre gostei de tentar tratar de coisas que eu mesmo não sei nomear. Então sou adepto de uma dramaturgia mais do inconsciente; você não controla totalmente onde chega ou onde quer chegar com aquilo. Até encontra algumas escoras, mas tem esse magma, você pode tentar tocar nele, mas não controla de onde ele vem e porque ele está lá. Essas forças que estão nessas peças, que estão na ‘Trilogia abnegação’, estão em ‘Branco’, em ‘O filho’, tem algo ali a ver com coisas muito desagradáveis
Alexandre Dal Farra, dramaturgo e codiretor
A gente queria falar um pouco desse aspecto, mas, no meio disso, fomos atropelos pela certeza que ninguém tinha, até então, de que Bolsonaro seria presidente. Essa foi a história dessa peça. A gente não sabia, porque ninguém da esquerda previu ou tinha muita clareza de que isso pudesse acontecer. De repente começamos o processo e vimos que isso ia acontecer.
O Alexandre tem toda uma dramaturgia para além do Tablado, mas a gente acaba quase que sempre reservando para o grupo esse lugar da política, esse é o nosso tema: falar da política de forma mais direta e forte que dá para falar. Então, a eleição do Bolsonaro atropelou o nosso processo e os rumos que estávamos tomando, mas sobraram resquício. Por exemplo, a pornografia está lá naquela cena da mesa, ela vem dali.
Essa tentativa malsucedida de juntar acabou sendo, para mim, hoje, um
dos assuntos da peça. O gesto daquelas figuras em cena perguntando, tentando
entender e tentando fazer conexão com o passado delas é um pouco, para mim, o
gesto da peça como um todo. No fundo, é como a gente chegou nisso. A peça tem
esse gesto que está na pergunta de como a gente chegou nisso e, pensando no
país, seria a mesma pergunta.
Alexandre Dal Farra
Obrigado pelo convite, é muito bom estar aqui. Foi uma pena que na época
não deu certo, a gente estava no ápice do Abnegação III, no meio da
temporada. Curiosamente, a última apresentação do Abnegação III aconteceu
no dia do impeachment da Dilma [31 de agosto de 2016], então a coisa estava
indo, passo a passo, e de alguma forma a gente estava acompanhando por vias que
nem a gente controlava direito as coisas que estavam acontecendo.
É muito bom ouvir tudo isso que o Clayton colocou e me lembrar também das
peças. Acho o seu ponto de vista bem interessante de como essa trilogia se
estrutura. Gosto muito dessa ideia que a Beth falou do magma, como se fosse uma
dramaturgia que escorre e que está de alguma forma criando ou dando espaço para
isso aparecer, algo meio disforme e que essa espécie de energia aparece de
diversas formas e acho que grudada em diversas coisas. Quando você fala do
livro, tem isso lá, tem isso no Abnegação I e no Abnegação II, e
ainda em Bruto, uma peça que escrevi fora do grupo e que estava
revendo esses dias.
Vou dar um ponto de vista pessoal porque estou dentro do grupo, mas também
estou fora, e acabo pensando do ponto de vista da escrita porque o que Beth
falou me trouxe aspectos relacionados à dramaturgia. Teve uma peça, no meio
disso tudo, chamada Branco, essa peça existiu, eu escrevi essa peça. O Branco
não era do grupo, o grupo não tem nada a ver com isso, a culpa é minha, mas
essa peça estava no meio, veio após a Trilogia abnegação e acho que ela
também tem coisas em comum com a trilogia e com tudo isso que eu estou falando,
e com a questão desse magma.
Eu gostei dessa ideia de magma porque, no fundo, eu sempre gostei de tentar tratar de coisas que eu mesmo não sei nomear. Então sou adepto de uma dramaturgia mais do inconsciente; você não controla totalmente onde chega ou onde quer chegar com aquilo. Até encontra algumas escoras, mas tem esse magma, você pode tentar tocar nele, mas não controla de onde ele vem e porque ele está lá. Essas forças que estão nessas peças, que estão na Trilogia abnegação, estão em Branco, em O filho, tem algo ali a ver com coisas muito desagradáveis.
Então, eu me senti por muito tempo, e acho que todos nós do Tablado, como se a gente fosse portador de uma má notícia. O Abnegação II, particularmente, teve muito isso e depois esse caráter que a Maria Eugênia falou, de premonição. E agora, após ver o espetáculo Bruto, outras pessoas vieram falar que era muito premonitório. Isso é até simples, de certa forma, estava lá para quem quisesse ver, tinha algo muito ruim em algum lugar, nas relações, e eu não sei dizer onde, mas era uma questão de você se abrir para isso.
O Manual da destruição é um livro um pouco sobre isso, sobre todo mundo que tenta se estruturar para não ver que tem algo de muito ruim atrás disso tudo. E esse narrador, na verdade, fica o tempo inteiro dizendo como que vocês não estão vendo que está tudo muito estranho. A trilogia vem um pouco dentro disso e tem essa diferença entre as peças que você comentou [Beth], e eu concordo, de que o II é explícito, o I é implícito e que o III é uma espécie de olhar mais amplo, mas que também tem algo por trás, algo está estranho, que vai dar merda.
Então, essa sensação de estar portando uma má notícia, e que no Branco também me parece que foi isso. O Branco é complexo, tem mil coisas, mas uma parte do desagrado que causou dividiu muito e o Abnegação II foi a mesma coisa, não foi a peça mais rejeitada, talvez tenha sido a mais criticada. São duas peças que dividem a plateia, algumas pessoas falavam que o Abnegação II era incrível e outras falavam que era um absurdo, perguntavam se a gente tinha virado jornalista da Veja. Branco a mesma coisa, uma divisão total da plateia, era 50% mesmo de gente que achava genial e a outra parte que achava nazista. Esse é um risco que acho que o Abnegação II correu, o Branco correu e que O filho poderia ter corrido, e correu em certa medida, só não teve porque ela não se colava em nada, em um assunto específico, e se tivesse se colado, teria tomado porrada igual, era uma peça um pouco mais independente.
Certa vez eu dei uma aula na SP Escola de Teatro sobre O filho e eu passei a aula inteira me justificando e sendo metralhado porque a peça foi lida como uma coisa horrivelmente fascista. Então é isso, você vem com a má notícia e toma porrada porque as pessoas batem no mensageiro. Eu sinto um pouco isso em tudo que aconteceu e foi muita porrada, não foi simples estar nesse lugar, foi difícil, principalmente no Branco, foi difícil me colocar depois disso, eu fiquei um pouco desnorteado.
Penso que uma parte da má notícia que a gente estava portando se gruda em diversos lugares e por isso é um magma, ela não tem a forma tão clara, ela não é tão consciente, não está dita em palavras, está dita como quem percebe alguma coisa, está entre uma coisa e outra. Isso é bem estranho, tomou forma e virou Bolsonaro. Então, de certa forma, acho que a gente estava dizendo lá atrás que tinha um Bolsonaro em algum lugar e que precisávamos ficar atentos. Por isso hoje em dia fica com uma cara de premonitório, mas não era, aquilo já estava lá, só que ele ainda não tinha cara.
Se a gente tivesse dito que seria o Bolsonaro, aí realmente a gente tinha de ganhar um título, mas não era isso que estávamos fazendo, a gente dizia: “Tem algo aqui”. Isso estava lá, isso dava para perceber, era só ter a sensibilidade para tanto ou a possibilidade de se igualar um pouco com isso porque essa é a grande questão que tem a ver com o distanciamento: é um lugar da aproximação com o horror, de que eu preciso perceber esse terror que me forma, porque estou nessa sociedade e não posso achar que não faço parte disso.
Meu tio era coronel, dois tios, e mesmo que não fossem, eu estou convivendo com isso, com esse terror. Isso me forma, então não dá para achar que eu saí limpinho dessa, que não tenho nada a ver com isso. Se você abre o olhar para esse lado da coisa, isso já estava lá, mas você precisa ter uma certa irresponsabilidade ou coragem, e essas coisas se tocam um pouco, de aceitar se sujar um pouco nesse magma, nessa lama, e então você sai do lugar do consciente, você tem que desligar um pouco alguns interruptores que nos fazem falar. Tem certas coisas que a gente não fala, que é obsceno falar, então você tem de tirar um pouco esse filtro da obscenidade para tocar nesse tipo de coisa. Era isso que essas peças faziam. Acho que o Abnegação II fazia isso muito, o Branco, O filho, por colar às vezes em assuntos emergenciais, assuntos doloridos. Isso é tenso, mas ao mesmo tempo gera efeito, gera movimento, e era o intuito.
Para mim, mistura algo meio pessoal com algo meio político porque depois
do Branco, que foi uma experiência meio traumática num certo sentido,
uma coisa totalmente minha mesma, do meu jeito de ser, eu fiquei confuso com
aquilo tudo que aconteceu. Depois disso, o que e como eu ia falar, que fala é
essa, e como eu consigo de novo retomar essa voz que é minha, inconsciente, que
é perigosa num momento em que o risco que eu corro é real, não é físico, mas é
moral, é um risco de ataque, e é realmente perigoso tocar nesse tipo de coisa.
Então, eu fiquei um pouco desnorteado.
E tem ainda o Refúgio no meio do caminho, que inclusive estará em cartaz
aqui no Itaú, em outubro, que não é uma
peça do Tablado mas que, para mim, é uma espécie de formalização dessa
impossibilidade de falar, de tocar nos reais assuntos, de entrar em contato com
esse magma. É como se esse magma não pudesse mais ser tocado, não dá mais para
tocar nas coisas, a linguagem começa a se desfazer e o Refúgio é uma
formatação disso, a peça estrutura isso enquanto linguagem. A fábula da peça coloca
em cena essa impossibilidade de falar, essa voz que fica sem lugar. É
literalmente isso. No fim da peça os personagens começam a falar um monte de
palavras meio aleatórias e tem algo nisso que é: não dá mais para falar, tem
algo meio triste, meio deprimente, e não no sentido da depressão, mas de não
conseguir tocar mais em nada.
E acredito que o Pornoteobrasil também está dentro disso, ele ainda é um tatear num ambiente onde tudo ficou perigoso. Somado a isso tem uma coisa aí política, onde tinha todo um território de linguagem, de ideologia, um aparato ideológico do PT no governo contra o qual a gente se atirava. No Abnegação II claramente era isso, havia o pressuposto de um público que estava junto com a gente, não estava fazendo essa peça para Bolsominion que nem existia, eu estava ali fazendo para colocar em xeque essas pessoas que estavam ali junto comigo e me colocar em xeque junto.
Então tinha um aparato ideológico por trás, que era o aparato ideológico lulopetista, que tem a ver com uma certa defesa de diversas coisas e de outras tantas que não se podiam dizer, que não cabiam dentro do discurso. Você não sofria repressão, para deixar bem claro, mas havia coisas que não cabiam no discurso, que simplesmente eram silenciadas. A gente não sofreu nenhuma violência, nunca, nem próximo disso com o Abnegação II, mesmo o espetáculo sendo muito violento, mas isso não podia ser dito, era uma coisa que não cabia e era meio silenciado.
Isso que não era dito, me parece, e acho que até hoje de certa forma a gente ainda não está dizendo totalmente, vem a ser esse magma que depois se tornou o Bolsonaro, que ganhou a cara do Bolsonaro, a gente não aceita totalmente que isso existe, eu acho. De alguma forma a gente ainda lida como se isso, no fundo, não existisse, como se não fossem pessoas. Esse lugar político de uma desestruturação radical de um ambiente ideológico, de um ambiente político, de um ambiente econômico que em poucos anos se desfaz completamente, isso também contribui para que o Pornoteobrasil se torne essa espécie de susto.
Eu acho que a peça é um susto, é a formalização de um susto. Chegamos aqui, é isso mesmo? Eu acho que isso cabe, mas, a meu ver, é algo de transição num certo sentido caso eu encontre de novo uma forma desse magma reaparecer. A minha busca pessoal é essa, onde está isso, eu me perdi em algum lugar no meio do caminho e eu preciso desligar de novo esses interruptores conscientes para conseguir tocar de novo em algumas coisas que eu acho que ainda estão lá de outra forma. A questão do díptico tem a ver com isso.
Tem um projeto que a gente está chamando agora de Reconciliação e a ideia veio por causa da Patrícia Portela, que é uma amiga minha portuguesa que trouxe para essa dramaturgia que estamos escrevendo juntos acerca dessa figura do Xanana Gusmão, um líder guerrilheiro do Timor-Leste, responsável pela criação do Estado-nação [país do sudeste asiático colonizado primeiro por Portugal, do qual se torou independente em 1975, e depois pela Indonésia, em 2002]. Ele defende muito a ideia de reconciliação. Em determinado momento o Timor-Leste estava sendo invadido, ele seria trucidado, as pessoas estavam sendo mortas na década de 1990. Era de um jeito tão terrível que, se estava enterrando alguém no cemitério, vinha uns caras e metralhavam toda a família no local, umas coisas assim arrasadoras.
Quando o Timor-Leste está sob esse ataque, o Xanana Gusmão vai defender que os guerrilheiros não entrem em disputa para que o massacre não seja tão grande que a ONU intervenha. A partir daí ele vai criar o Estado-nação baseado nessa ideia de reconciliação. Só estou contanto isso porque a reconciliação ali é muito concreta, você precisa conviver com uma pessoa que matou o seu filho e ele é seu vizinho porque o país é uma ilha desse tamanho [gesto de pequeno; o país tem menos de 15 mil quilômetros quadrados de território, menor do que o estado do Sergipe]. O Xanana tem uma frase em que diz: “A reconciliação não é com o outro, a reconciliação é com os fatos”.
É a aceitação de que as coisas aconteceram e para mim esse projeto tem a ver com a necessidade de olhar, de novo, para essas pessoas e falar que esses caras existem, eles estão aí. Sim, eles agora estão aí, mas a gente continua não falando com eles, a gente não os coloca no lugar do inimigo, a gente não aceita esse lugar, a gente simplesmente fala que eles são ninguém. Então é essa a questão, e tem a ver com como lidar com o inimigo, como olhar para o inimigo.
Há outra peça, que não é do Tablado, mas que eu estou começando a
criar chamada Floresta [esteada em janeiro de 2020] e lá a questão é
essa: como lidar com o inimigo. E o que você faz quando é colocado nesse posto?
Simplesmente se colocar de maneira altiva e superior não está mais dando e, de
certa forma, mesmo que você vá para a porrada com esse cara você está levando em
consideração, está sabendo que ele existe e aceitando a existência desse cara.
Clayton
Só para complementar o que o Alexandre falou e está nesse novo projeto Reconciliação. A Comissão Nacional da Verdade [2014], de certa forma, criou toda uma sensação de que nós estávamos efetivamente passando o passado da ditadura a limpo, como se aquilo de certa forma resolvesse. Muita gente acreditou que o fato de o governo Lula ter conseguido instaurar [na verdade foi pelo governo Dilma, sendo instalada em 2012 e encerrada em 2014] poderia chegar a resolver algum assunto. Mesmo durante os anos anteriores e posteriores à Comissão da Verdade a gente quase que conscientemente, ou inconscientemente, mas com uma participação muito ativa de todos nós, fizemos questão de limar da nossa existência essas figuras que participaram da ditadura militar, que têm relação explícita com a milícia e que têm relação explícita com o atual presidente.
Uma boa parte das milícias cariocas, e isso a gente trouxe em estudos, principalmente aquela pesada de Rio das Pedras, é formada por agentes que participaram ativamente e concretamente nos porões da ditadura militar. E tem uma outra faceta da Reconciliação: o Exército tinha virado a cara para eles porque depois da Anistia [lei de 1979] eles não tinham mais função, afinal os caras eram especialistas em fazer tortura, serviço de inteligência daquele tipo, então eles ficaram meio ao deus-dará e, de certa forma, com a eleição do Bolsonaro, como o próprio Paulo Arantes diz, o Exército e o porão da ditadura se reconciliam.
E a esquerda passou todo esse tempo, de certa forma, negando a
existência dessas figuras e negando o fato de que nós tivemos uma Anistia e
aceitamos que esses caras continuassem ganhando salários do governo. A gente
finge que não, mas aceitou. A gente instala uma falsa Comissão da Verdade,
porque ela não tem poder de nada, que nos dá uma leve sensação de que a gente
julga, mas o fato é que a gente não julgou ninguém, nenhum dos nossos
torturadores da ditadura. Mas a comissão deu a crença louca de que conseguimos
passar a História a limpo porque, lá atrás, a gente não admitiu que perdemos
para a ditadura e aceitamos a Constituição e a Anistia da forma como eles
colocaram [apesar de a Constituinte de 1988 ter se dado sob período da chamada
redemocratização, muitos de seus artigos mantiveram privilégios da caserna]. Esse
movimento acaba gerando depois esses fantasmas.
Beth
Acho que o tempo todo nós ficamos de olhos fechados para uma tortura que
foi constante, permanente e que existe nas delegacias, nos presídios dos pretos
e pobres. E pobres são torturados o tempo todo, torturados na frente da mãe,
com ferro elétrico, dentro de casa, quando a polícia invade o barraco. Isso é
uma constante, está no jornal, está nas notícias, e quem tortura é a PM, enfim,
as coisas tiveram uma continuidade que a gente achou que tinha parado aqui e
começado outra coisa.
A geração de vocês que cresceu sob o governo o PT, eu entendo isso, tem o PT como alvo da crítica, mas para a minha geração, que viu uma outra coisa acontecer, os dez anos de petismo eram tão melhores do que veio antes, tão melhores no sentido de querer distribuir renda e de fazer alguma coisa pela desigualdade que, bem, o pensamento era esse mesmo, vamos deixar um possível negativo de lado porque está acontecendo alguma uma coisa boa. Bem, vamos abrir para as perguntas, agora?
Abre para a participação do público
Gustavo – estudante da SP Escola de Teatro
Eu vi Bruto essa semana e assisti ao Pornoteobrasil no Cacilda Becker, achei aquela cena muito boa em que eles começam a falar e falar e perdem a memória. Na minha experiência pessoal, fui a todos os atos do MPL [Movimento Passe Livre], estava sempre lá, sempre tomando bomba, vivendo coisas horríveis que nem foram para a mídia, como meu amigo que tomou bala de borracha na cara. E quando eu ia para os atos tinha uma coisa muito esperançosa de ver a molecada lá, a galera que estava lutando por algo, mesmo que fosse pela passagem [contra o reajuste do preço do transporte público], mas que no fundo era por algo maior. Eu queria saber se o Alexandre Dal Farra estava nos atos. Lembro que a gente foi ao gabinete da prefeitura [o prédio-sede], paramos, fizemos um comício e tinha uma galera fazendo uma fila para falar. Em determinado momento uma menina queria falar e não deixaram, foi uma coisa ridícula, falaram que tinha mais gente na frente dela e que ela não ia falar. Essa moça era da USP e eu não sei se essa cena está retratada no Pornoteobrasil, mas eu vi uma cena bem parecida com essa. Queria saber qual é a sua relação direta com esses atos.
Alexandre
Eu fui em alguns, não fui a todos, mas estava lá
sentindo a coisa. Essa cena não era de lá, mas poderia ter sido. Na verdade, é
uma cena em que se narra uma situação de assembleia e uma pessoa passa na
frente duma fila porque ela sente uma necessidade de se colocar. Porém, tem sim
uma tentativa de trazer nessas memórias do Pornoteobrasil algumas que
ficaram meio jogadas, tem uma tentativa de traçar uma linha e, para mim, é uma
linha do que rolou numa certa esquerda, que eu conheço um pouco mais.
Eu estava no movimento estudantil em 2002, quando aconteceram umas greves grandes. O movimento estudantil ainda se organizava com os partidos, o DCE [Diretório Central dos Estudantes] era importante e a pauta era o mais importante de tudo. Você ia reivindicar de acordo com a pauta e quando não tinha mais chance de conseguir nada, você parava. E eu vi bem a mudança quando veio esse lugar da ação pela ação, no momento que se ocupa a reitoria [da USP] em 2007 e, ali, deixa de ter a predominância da organização política, da ordem das falas, e passa a surgir outra urgência, que tem muito a ver com o questionamento da organização em si.
Eu espero que a gente consiga realmente virar essa página. Lembro que ao longo das três peças da’ Trilogia abnegação’ a gente já entendia que fazê-la era, pelo menos para mim, um processo muito grande de luto mesmo, luto com o PT, com o petismo de maneira geral e que a esquerda precisava começar a pensar para além do lulopetismo. E isso sempre esteve por trás do processo da trilogia, que era velar os corpos todos, velar o Celso Daniel, velar o fantasma que fica voltando, e aqui [em ‘Pornoteobrasil’] já é um pós-luto, uma crítica ao fato de que a gente não consegue fazer o luto
Clayton Mariano, ator e codiretor
Começam, então, os questionamentos: “Por que eu vou falar antes de você? Por que não estamos sentados em roda se a gente tem de ser todo mundo igual?”. E isso, que agora virou quase que senso comum, em 2007 era uma novidade. O grande lance era o questionamento da organização em si e isso iria gerar consequências políticas para dentro do movimento. Então a gente ia aprender a ser diferente na ocupação com o valor dela em si, mesmo que não desse em nada, mas foi um ponto de virada e estavam ali em 2007 na reitoria muitas lideranças do MPL, que se constituíram a partir daquilo.
É uma ideologia que constrói o MBL [Movimento Brasil Livre] e vai dar em 2013 naquelas manifestações nas quais não tinha carro de som e ninguém sabia para onde ir. Também tem isso na peça. É uma manifestação com um objetivo ultrapreciso, mas ela não tem uma organização e não tem um ponto de chegada, estou falando fisicamente, e tem uma resistência a isso, tem uma vontade de que a auto-organização da manifestação se dê lá mesmo. Então, essa cena tem um pouco a ver com isso e, para mim, acho que 2013 teve totalmente a ver com isso também.
Depois de seis anos, está construída já uma cultura política baseada naquilo, nessa nova esquerda, e com a qual o PT também não soube lidar, ninguém sabia lidar. O Haddad fala até hoje de 2013 de uma forma um pouco unitária, o jeito que trata é meio assim ainda, como se aquilo fosse algo com uma tendência de direita. E me parece que não, tem um questionamento ali de base e era, sim, real e talvez tivesse um pouco a ver com esse magma que ainda não tinha tomado forma.
Beth
Hoje mesmo
tem uma manifestação na Avenida Paulista e eu passei por várias pessoas indo
para a manifestação e que estavam com a bandeira do Brasil enrolada no corpo,
com aquela camisa da seleção brasileira e, reconheço, eu olho para elas como um
inimigos absolutos e minha tendência é fazer cara de superior, de quem pensa: “Como
podem ainda estar apoiando fechamento de Congresso e STF? Como pode existir tal
grau de ignorância da História?”. É muito interessante quando você fala sobre o
que vem depois, sobre essa reconciliação no sentido de como é que agora a gente
vai conseguir juntar e dialogar de novo. E é tão importante. Uma plateia de
coxinhas, como é que você fala com essa plateia? A gente está precisando disso,
mas não de juntar no sentido do apagamento de novo, de fingir que nada aconteceu.
Mas como se juntar sem fingir que nada aconteceu? É uma grande interrogação,
magma quente, escorrendo e a gente vai ter mesmo de lidar com isso.
Alexandre
Sobre a reconciliação, uma coisa legal também de ressaltar é que, dentro
dessa concepção, ela é o extremo do desagradável, é você aceitar os seus
limites e, de certa forma, era essa má notícia que a gente trazia e que doía
muito escutar porque a gente estava vivendo um sonho feliz.
Emerson Rossini – ator e diretor
Eu queria saber como vocês separam o que é o repertório do grupo e o que é
trabalho paralelo? Porque no Refúgio e no Branco todo o elenco
estava lá e eu nunca tinha pensando que são trabalhos paralelos porque é uma
linha só.
Valmir Santos – Teatrojornal
Só para complementar porque era uma pergunta que eu também queria fazer. Não
haveria aí um erro de comunicação? Inclusive, escrevi a crítica intuindo que Refúgio
era do repertório, e não é.
Alexandre
Na verdade é simples: projetos do grupo são pensados
dentro do grupo, feitos em nome do grupo e pensados junto com todo mundo, já os
que não são pensados assim não são do grupo. O Refúgio foi uma ideia da
minha cabeça, eu chamei o Clayton, mostrei o texto para ele várias vezes,
mostrei para a Jana [a atriz Janaína Leite] na época, chamei uma galerinha e a
gente fez junto esse trabalho, se constituiu um pequeno grupo. Têm pessoas do
Tablado e de fora. É um grupo que faz e se desfaz um pouco ali na ocasião. Branco,
a mesma coisa. Foi um texto que eu mandei para o ProAc [Programa de Ação
Cultural do Estado de São Paulo] e não tinha nem elenco, mas chamei o Clayton, o
[André] Capuano e a Jana e isso se constituiu como uma espécie de grupo de
trabalho, mas não estava dentro dos projetos que o grupo pensou. O Petróleo foi
a mesma coisa, o Clayton falou para eu escrever um texto, então foi uma
encomenda dele.
Clayton
Para ser do
Tablado tem de ter todos os membros do grupo. O Abnegação I é do Tablado,
mas a Lígia estava afastada por questões pessoais, então ela não estreou. Mas
quando a peça é pensada com todos os membros do grupo é do Tablado e quando são
projetos de desejos mais individuais, que vêm de um e de outro, pode ter gente
do Tablado e de fora do Tablado. Esteticamente é muito difícil porque a forma
como a gente se organiza dentro do Tablado é muito voltada para o texto, a
gente é textocêntrico e somos conscientes disso já há alguns anos.
Ao contrário de uma galera mais nova, a
gente é meio velho nesse sentido, a gente gosta de texto de teatro. Então tudo
surge muito a partir do texto, é quando a gente começa a nossa criação, e isso
começa a partir do trabalho do Alexandre, sempre. Então esteticamente é a
demanda do texto que determina um pouco a peça. Acho que não tem nenhuma peça que
não desse para ser do Tablado, salvo algumas de outros grupos, como a adaptação
do Nelson Rodrigues, acho que esse não passaria [Nada Aconteceu, tudo
acontece, tudo está acontecendo, adaptação de Vestido de noiva para o Grupo
XIX de Teatro, 2013]. Mas outras poderiam ser, mesmo com outro elenco, como O
filho, que com toda certeza poderia ser.
Pedro Vieira – ator
Primeiro eu queria parabenizar os meninos porque acompanho o grupo desde o
primeiro espetáculo e vejo o quanto amadureceu artisticamente. Quando vocês
preparam a dramaturgia, os atores participam? Ou o texto já vem pronto e aí é
que entra o trabalho de criação?
Clayton
Quando a gente debate os temas dos projetos, a gente discute os assuntos e o que interessaria. Não é sempre igual, já teve peça que o texto veio pronto, sem eu saber de nada, mas de um tempo para cá a ideia é que a gente debata os assuntos e o Alexandre vai e escreve a peça, traz, a gente lê e começa a trabalhar. Já faz uns seis ou sete anos que vem sendo nesse formato.
Pedro
Eu pergunto sobre a participação dos atores no sentido de saber se eles têm liberdade de criar coisas em cena ou é só decorar o texto e levantar a cena?
Lígia Oliveira – atriz do Tablado de Arruar
Estou desde o início do Tablado, o grupo mudou muito desde a formação, mesmo, cada peça teve processos distintos. Eu concordo com o Clayton e com o Alexandre sobre a escolha de um dramaturgo ter feito muita diferença. A gente passou por um processo colaborativo, de criar as cenas, mas não funcionou, era sempre muito caótico, sempre muito difícil. Enquanto grupo a gente entendeu que não era bacana, mas estou falando da minha experiência e talvez se os outros atores estivessem aqui teriam um outro olhar.
A Gabriela Elias trabalhou com a gente agora e ela já substituiu muitas vezes, mas é a primeira vez que ela está num processo desde o início, então cada um tem mesmo uma experiência. Eu sinto que quando o Alexandre traz um texto, eu tenho liberdade total para falar, porque a minha relação com ele e com o Clayton é diferente, porque a gente está junto há muito tempo. Quando o texto dele chega, eu tenho certeza, é diferente para um ator de fora, que entende o texto de outra forma.
Eu já vi muitos textos do Alexandre e eu sei quando não está bom, por exemplo, nesse processo [de Pornoteobrasil] ele trouxe quatro textos e a gente sabia que aquele texto não ia rolar, e não só porque ele não estava conseguindo dar conta, mas porque enquanto grupo falamos que não dava para montar. Ele traz o texto e vamos montar, mas tem essa interação. Imagino que todos os textos que ele montou fora do grupo também tiveram essa interação. Mas essa longa parceria dá à gente a propriedade de saber onde está pisando, não que seja uma coisa fácil, tem várias coisas bem desagradáveis enquanto processo, mas é um desagradável que a gente quer fazer. O Petróleo foi claramente uma necessidade do Clayton de dirigir em outro contexto, mesmo que fosse um texto do Alexandre, e ver o Clayton dirigindo fora do grupo foi interessante para mim enquanto atriz.
Clayton
Nos projetos do Tablado, a gente tenta trabalhar um momento anterior ao texto, tenta ficar pronto para trabalhar com os temas, o que é um resquício desse processo colaborativo. Criamos uma forma para isso que chamamos de “oficina-estágio”, porque chamamos outras pessoas para experimentar cenas, improvisar a partir de assuntos e a gente volta para a rua. Então, o Pornoteobrasil foi criado em parte disso, de coisas que surgiram nesse processo, e o Mateus, 10 também.
Tem peças que a gente, nesse processo, sai
da sala e vai para a rua improvisar. Cada ator propõe uma coisa e às vezes de
lá sai uma centelha, uma personagem, um jeito, às vezes um ambiente, ou mesmo uma
sensação que uma cena improvisada traz, e isso tem desdobramento. A gente
conseguiu em quase todos os projetos, acho que um ou outro, mais atropelado,
não deu tempo de fazer esse processo. Isso tem a ver com a possibilidade que o [a
lei de] Fomento traz para gente, que é ter tempo de ficar oito meses elaborando,
a gente pode se dar ao luxo de ter esse tempo. Se não houvesse o Fomento, a
gente não conseguiria fazer isso, tanto que acontecem outras peças fora que
você pega o texto, lê e segue. Isso acontece em outros processos.
Alexandre
Eu lembro de uma provocação do Eduardo Climachauska, um artista que
participou bastante dos nossos processos, principalmente na Trilogia abnegação,
no Mateus, 10, em Petróleo e no Helena, que era no sentido
de que a coletividade tende a ser mais consciente, o que tem a ver com aquilo
que eu estava falando que, para tocar o magma, precisa estar sozinho. Você não
acessa esse lugar tão estranho e perigoso se está discutindo com todo mundo,
porque não vai chegar em um consenso. É o tal do processo colaborativo mais
tradicional, que a gente recebeu como herança e meio que negou.
Na criação do grupo, um dos caminhos que a gente encontrou foi pela dramaturgia. E tem um lugar para mim importante que é ter esse espaço individual, fora, onde você pode entrar numas coisas que são muito bizarramente suas. Ter esse espaço e só depois trocar isso com as pessoas, mas é diferente quando você já foi lá. Não é abre aqui e já começa a trabalhar, porque aí você está no território consciente total, então você precisa acessar uns negócios. Os processos do grupo são mais fáceis nesse sentido porque as pessoas já me conhecem. Eu sempre sou esse cara que fica mostrando o texto e querendo ouvir os atores, mesmo que eu não vá fazer o que o ator está falando, mas de alguma forma o que ele sentiu tem a ver com uma outra coisa e isso caminha, muitas versões são lidas e discutidas e voltam. O Branco teve tantas versões quanto o Pornoteobrasil, e não era um espetáculo do grupo.
Valmir
Queria fazer uma
pergunta para a Gabriela e para a Ligia, saber um pouco sobre o aspecto da
atuação no Tablado porque tem um elemento de performatividade e uma cultura
dentro do grupo. Na imagem do Capuano, do Vinicius [Meloni], da Alexandra [Tavares],
do Vitor [Vieira] e da Ligia, que são atores com atuação continuada, a gente
percebe uma inteligência de estar em cena para fazer esses projetos nem um
pouco fáceis. Então, se vocês puderem compartilhar um pouco sobre as especificidades
de atuação no Tablado.
Gabriela Elias – atriz
Eu não sou do
Tablado, sou atriz convidada. Eu flerto com o Tablado faz bastante tempo, tenho
várias experiências com eles de formas diferentes, trabalhando na assistência
de produção, substituindo e agora vivo essa experiência no Pornoteobrasil
como um todo, que foi a primeira vez atuando e eu amei, foi intenso. Também
estava lembrando de todas as experiências que a gente teve nas oficinas e nos workshops
e iam de certa forma nos aproximando de lugares e de estados, tateando os
lugares que interessavam. Depois esses lugares iriam para o texto e
experimentar tudo isso foi muito incrível.
No Pornoteobrasil, mesmo tendo
sido vários textos, ao mesmo tempo a hora que vai dar um start, parece
que a gente sabe exatamente os disparadores. Para mim foi novo e superdesafiador.
Essas especificidades do texto, da linguagem do Alexandre são desafiadoras, mas
de repente uma chavinha vira e as coisas começam a acontecer. Tem também esse
jogo já muito conhecido entre os integrantes e isso vai dando um chão, uma base
que te conforta nesse sentido.
Lígia
É difícil falar porque eu não acho que a gente tenha uma forma, acho que
dentro da experiência, juntos, da troca, talvez a gente tenha conquistado essa
facilidade em criar juntos, isso com certeza. Talvez isso faça tanta diferença
entre um texto do Alexandre montado pelo Tablado e um texto do Alexandre
montado por outros atores. E isso não tem a ver com a questão de se são bons
atores ou não, tem a ver com uma linguagem que você já acessa, já sabe e
entende. Para mim que sou só atriz e não tenho interesse nenhum em dirigir, tem
uma coisa muito interessante que é continuar nessa investigação. Então, ainda
me interessa estar nesse coletivo por essa investigação e, pensando como atriz,
acho que a gente desenvolveu muito esse trabalho de texto mesmo.
Beth
E essa diferenciação de figuras, porque não são exatamente personagens, não tem mais gênese no sentido do personagem psicológico, mas são pessoas diferentes. Como é que vocês trabalham essa criação? Como é que desenha essa figura no corpo para que eu espectadora possa acreditar que é um ser humano?
Lígia
Lá no Mateus, 10 a gente tinha o João Otávio, que era alguém que estava acompanhando e dirigiu junto com o Alexandre. Ele já tinha participado do Helena também, mas o Helena era na rua e tal. No Mateus, 10 nós atores criamos uma linguagem comum e que a gente já vinha fazendo desde lá com o João, um trabalho de corpo e acho que foi nesse momento que a gente encontrou um lugar de pesquisa da linguagem de atuação que funcionou e colou com o que o Alexandre estava pesquisando de dramaturgia, e por isso também acho que a peça deu um salto, a peça foi premiada.
Ali a gente teve um grande encontro entre atuação, o trabalho do ator e da linguagem que estava sendo construída pelo Alexandre. Quando a gente perdeu o João foi muito difícil reorganizar, ficamos mesmo sem chão porque tinha um trabalho que ele havia conquistado na direção de atores. A direção do Alexandre e o olhar de dramaturgia é muito legal, mas a gente se olhou e percebeu que já tinha muita conquista ali, e o Clayton tomou esse lugar.
Maria Eugênia – Teatrojornal
Queria um
comentário de vocês sobre uma cena específica. Quando tem um enterro e uma das
personagens chega propondo para a outra que ela vá para uma casa que tem uma
fonte que não foi ligada e ela então deixa o cadáver e vai para essa casa.
Alexandre
Essa cena estava numas pastas no meu computador. Menos de um mês antes da estreia eu vi que precisava de mais uma cena. Fui procurar e achei essa no meio dos entulhos, e tinha totalmente a ver. É tudo meio tateante nessa peça, mas faz parte do processo dela. A cena tem algo de interessante trazer porque lembra muito a casa de um desses publicitários da década de 1980, foi um negócio absurdo porque esses caras ficaram bilionários, e o lugar já não é mais o mesmo, caiu em desuso, então você tem um resto ali de uma época que tem a ver com a Nova República e com esse mundo.
O principal para mim era perceber que elas estão num enterro e que embora estejam velando aquele corpo, de repente, surge uma solução para não ficar lá todo o tempo até o momento de enterrar efetivamente o corpo. Solução que era tirar uma foto do defunto e ficar com a foto, e que me parece uma espécie de meia-fuga, como se fugissem mais ou menos do luto. Então está pressuposto na peça que estamos falando de um luto, do fim de algo, e a questão é a de como a gente lida com esse fim.
A vontade era de colocar essa cena, que acaba mais ou menos, quer dizer, que suspende o luto no meio e sugere: vamos ser mais práticos. O luto é isso, você elaborar o fato da morte com o tempo, ele se dá no tempo, você precisa de tempo para se acostumar. E, de certa maneira, o luto é um tipo de reconciliação, uma aceitação da realidade de que, de fato, aquilo acabou. É como se você tivesse o sonho de que dá para fazer isso de maneira mais prática e não ter que passar pelo tempo dele. É como se desse para abreviar essa dor ou desse para guardar ela numa foto, guardar de um jeito limpo e tranquilo.
Para mim, isso tem um pouco a ver com o nosso lugar, sobre o lugar da esquerda agora, às vezes me dá a impressão de que a gente está lidando com o nosso luto dessa forma ao seguir, por exemplo, o #LulaLivre, e eu nem sei se eu discordo dessa bandeira, politicamente e estrategicamente, mas talvez o resultado dela, num sentido mais psíquico, seja um pouco a não aceitação de que algo acabou, você meio que faz uma foto do defunto, finge que não, e segue em frente. Mesmo que tudo seja da melhor forma possível, algo acabou. Então, às vezes eu sinto que a gente está lidando com isso dessa forma.
É um final surpreendentemente consciente, um final que faz sentido, e normalmente eu não acho que as coisas que eu escrevo façam tanto sentido. E eu acho meio isso, de que a esquerda ainda está estruturada em torno do PT, e não digo que isso seja um problema necessariamente político, mas eu sinto que isso é um problema para a gente se reconstruir enquanto força.
Beth
Talvez a
incógnita da cena final seja que o luto não fica tão claro, até por isso, porque
as pessoas não conseguem fazer o luto, não conseguem estar no velório, não
conseguem ter memória do morto, não conseguem falar, é como se nada fizesse
sentido. Talvez por isso, como espectadora, acho difícil compreender que alguém
está abandonando o corpo por não querer sentir a dor. Como você disse, está tudo
meio tateante ali.
Talvez a gente espere mesmo o díptico para unir as peças. Que bom que você se colocou a missão de se queimar com o magma, porque eu acho que no momento que você se propõe a moldar a sua obra com esse magma quente, é preciso mesmo meter a mão nele. Eu acho legal a elipse, os buracos, o não dito, como em Abnegação I, porque é uma forma de trabalhar com essa matéria, os silêncios são uma espécie de luva que permite manusear o magma e conseguir dar alguma forma a ele. Essas elipses podem funcionar como luvas e, sem elas esse tatear fica mais difícil, e tudo resulte meio truncado.
Clayton
Eu espero que a gente consiga realmente virar essa página. Lembro que ao longo das três peças da trilogia a gente já entendia que fazê-la era, pelo menos para mim, um processo muito grande de luto mesmo, luto com o PT, com o petismo de maneira geral e que a esquerda precisava começar a pensar para além do lulopetismo. E isso sempre esteve por trás do processo da trilogia, que era velar os corpos todos, velar o Celso Daniel, velar o fantasma que fica voltando, e aqui [em Pornoteobrasil] já é um pós-luto, já é uma crítica ao fato de que a gente não consegue fazer o luto.
Sobre a última cena, tem um trechinho dela específico sobre o qual a gente teve até umas divergências. Lembro do Capuano falando que não gostava porque tinha uns trechos da cena que explicavam demais um pedaço da peça. Eu não achava isso e, no fim, a gente acabou deixando. Esse escracho, pornograficamente explícito, de certa forma, sintetiza esse momento. Ela está lá falando do golfinho e é tão desagradável, e ela não se detém num desagradável criticável, ela fica desdobrando esse desagradável. Então, não basta ser um golfinho que joga água, ele é amarelo e ele está numa piscina com uma faixa de azulejo amarelo, ou seja, é tudo excessivo e sintetiza a sensação do momento político nosso, dessa era Bolsonaro que estamos vivendo.
.:. Leia crítica de Valmir Santos a partir de Pornoteobrasil.
Equipe de criação:
Texto: Alexandre Dal Farra
Direção: Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra
Com: André Capuano, Alexandra Tavares, Clayton Mariano, Gabriela Elias, Ligia Oliveira e Vitor Vieira
Cenário e figurinos: Simone Mina
Música: Miguel Caldas
Direção de produção: Tablado de Arruar e Palipalan
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli