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Artigo

Amizade e luta contra o vírus da ignorância

21.7.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Carlos Menandro

A primeira vez que conversaram foi por escrito. Em carta de 4 de fevereiro de 1942, o estudante de ciências sociais Florestan Fernandes pediu desculpas pela “intrometida intimidade” e discorreu sobre a qualidade dos artigos que o assistente da cadeira de sociologia, Antonio Candido, publicava no jornal Folha da Manhã. Dias depois, conheceram-se presencialmente, nos corredores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a antiga FFCL, no prédio da rua Maria Antônia, região central de São Paulo. Na ocasião, Fernandes lia um livro sobre Buda e não se conteve: deu “uma aula” a propósito do príncipe nepalês cujo nome significa aquele que despertou do sono da ignorância.

Candido notou que a fala aguçada batia com a percepção que teve do missivista. Fernandes contava 21 anos, Candido 23. Suas origens sociais eram antípodas, aquele filho único de mãe solteira, trabalhadora doméstica em casa de família aristocrática; este, filho de médico e de mãe que o educou nos primeiros anos do primário porque mudavam-se constantemente de cidade e emendaram uma viagem à Europa por motivo de trabalho do pai. Nos mais de 50 anos seguintes, contudo, fizeram da amizade teoricamente improvável e das convicção socialista o pilar de seus atos e pensamentos. Produziram sociologia crítica e estudos literários, respectivamente, a partir das realidades brasileiras apreendidas em sua historicidade, ou seja, considerando as consequências do colonialismo e da escravidão somados às predações do capitalismo.

Que seja extinta a ‘cultura da ignorância’, que diz que o povo não precisa nada disso para ser feliz. A nossa resposta é que o povo precisa não só de alimentos, de habitação, de assistência médica. Precisa de cultura e de consciência crítica, para ser capaz de universalizar a cidadania e contribuir para o crescimento da civilização moderna. Espírito crítico para combater não só uma elite de espírito estreito, que tornou miserável um país rico. Mas para combater esse pensamento que instrumentaliza a tecnologia e se deixa escravizar por ela, esse pensamento que leva países como o nosso a abandonar a pesquisa básica, construída pela imaginação científica, filosófica e artística

Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo

“O importante naquela primeira carta era o pedido de amizade que o Florestan fazia ao Candido, esse era o assunto principal. Falava de como o Candido era um intelectual brilhante. Dizia que estava para sua geração como Mário de Andrade para a geração dele”, afirma o dramaturgo Oswaldo Mendes, que retraça esse percurso intelectual e fraterno em Vicente e Antonio – A história de uma amizade: Florestan Fernandes e Antonio Candido, peça que ganhou leitura dramática gravada e editada para transmissão online na quarta-feira, dia 22, às 19h30, no portal UOL, em parceria com a Casa do Saber, o Sesc SP, o Grupo Tapa e a SBPC. É a mesma data do centenário de nascimento de Florestan Fernandes.

Também ator, diretor e jornalista, biógrafo de Plínio Marcos e Ademar Guerra, autor de uma peça sobre Getúlio Vargas, Mendes, de 73 anos, parte da correspondência de Florestan Fernandes (1920-1995) com Antonio Candido (1918-2017). Eles se escreveram desde a mocidade, décadas adentro, mesmo quando viviam na mesma São Paulo.

A ideia de adaptar o conteúdo das cartas foi instigada pelo também jornalista Florestan Fernandes Júnior, em conversa testemunhada por um terceiro jornalista, Mario Vítor Santos, diretor-executivo da Casa do Saber. Mendes consentiu, mas ponderou. “Primeiro, não busque ver o seu pai na peça. Esse só você conheceu, pertence à esfera privada das relações familiares. Guarde-o para si. A peça não vai olhar pelo buraco da fechadura da casa de ninguém. O Florestan Fernandes que interessa ao teatro é o personagem público, que se revela nas histórias, cartas e ideias trocadas com Antonio Candido. Interessa o seu legado. Segundo, o teatro não é um tratado sociológico, histórico, genealógico, nem biográfico, no sentido documental. O teatro, e espero que a peça reflita isso, trata de gente, seres humanos em suas circunstâncias, com as alegrias, inquietações, conquistas, angústias e superações de cada um”.

Outra experiência que contribuiu para a vontade de Fernandes Júnior de ver essa amizade retratada no palco foi sua participação, em setembro de 2019, no debate acerca de Murro em ponta de faca, texto de Augusto Boal escrito em 1974, em plena ditadura militar portuguesa, e que versa sobre o exílio, por isso abordado no projeto Liberdade em Cena, do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP e do Observatório de Comunicação e Expressão e Censura, da Escola de Comunicações e Artes da USP. Na ocasião, compartilhou que o pai fora aposentado compulsoriamente, leia-se caçado, após o Ato Institucional número 5, o AI-5, decretado em dezembro de 1969. Partiu para o exílio, no Canadá, onde deu aula na Universidade de Toronto (aliás, dois de seus assistentes também deixam o Brasil, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso). Sincronicamente, Mendes estava presente à referida leitura. Talvez inconscientemente, encaminhava-se para investigar o acervo epistolar dos sociólogos dentre expoentes da produção intelectual brasileira da segunda metade do século XX.

Só não imaginava que o processo de criação se daria no enfrentamento do novo coronavírus e da suspensão social. Em cerca de quatro meses de prospecção das missivas e de sua escrita – a última versão é de maio –, Mendes concebeu um encontro de quatro atores em tempo de pandemia. São dois jovens e dois sujeitos na maturidade. Eles conversam sobre a amizade exemplar dos intelectuais cujas vidas, ideias e histórias são trazidas à lembrança. “Simples assim. A esperança é que, ao final dessa conversa, quem a assiste ou lê possa saber um pouco dos dois personagens e, como os quatro amigos atores, divertir-se, comover-se e estimular a própria imaginação, sensibilidade e pensamento”, ambiciona o autor. As cenas, de uma estrutura convencional de dramaturgia, segundo afirma, são pontuadas por movimentos numerados, cortes, rupturas narrativas, eventualmente sublinhadas por intervenções musicais, indicando transições temporais e espaciais como a provocada pelos personagens e seus respectivos duplos.

Arquivo Florestan Fernandes Florestan Fernandes (ao fundo) e Antonio Candido contavam 21 e 23 anos, respectivamente, quando se conheceram em 1942 e iniciaram correspondência

Na leitura dirigida por Eduardo Tolentino de Araújo, Walter Breda interpreta Florestan; José Augusto Zacchi, Florestan Moço; o próprio Mendes, Antonio; e Caetano O’Maihlan, Antonio Moço. Artistas participantes de outros espetáculos do Grupo Tapa, do qual Tolentino é cofundador. Há participação especial do cantor e violonista Zé Luiz Mazziotti. Composições de Ismael Silva, Mário de Andrade, Belchior e Bob Dylan entremeiam as ações. O registro audiovisual aconteceu em um sábado, dia 11, no palco do Teatro Sesc Anchieta, e foi dirigido e editado por Lilian Bento. A produção, encabeça por Fernandes Júnior, informa que o trabalho seguiu os protocolos de segurança da Organização Mundial da Saúde (OMS), como distanciamento entre atores e uso de álcool em gel, entre outras medidas junto à equipe que envolveu ainda cinegrafistas e técnicos de som e de luz. Curiosamente, o enredo é atravessado por outras formas de distâncias, as de classe social, que por sua vez evidenciam a concentração de renda e as desigualdades de acesso a direitos sociais e humanos.

Por que Vicente e Antonio no título, em vez de Florestan e Candido, como eram chamados por seus contemporâneos? Mendes se pergunta e responde: “Exatamente para que esse estranhamento lembre que não importam os seus nomes e sim os personagens que construíram e o que deixaram para até quando ninguém mais se lembrar quem foram eles. Sem falar no nó teatral que é alguém não ser tratado pelo próprio nome, da infância à idade adulta. A tenacidade de Vicente em ser Florestan é a síntese da sua trajetória, embora dissesse em momento de crise que ‘ninguém escolhe a própria história e sequer faz a própria biografia’. Engano. Vicente e Antonio nos ensinam que é possível viver fiel a si mesmo e a uma amizade”, argumenta.

O heterônimo decorre de razões nada poéticas. A mãe de Fernandes, Maria, analfabeta, descendente de camponeses que emigraram de Portugal, trabalhava na casa da família Bresser de Lima, na região do Brás. Quando o menino nasceu, em 20 de julho de 1920 (Candido é de 24 de julho de 1918), ela o batizou com o nome de um motorista de táxi do bairro, que sempre a ajudava quando necessitava. O pai não assumiu a criança, foi embora. Pressionada, Maria não abortou. A patroa, por seu turno, queria adotar. “Filho não se dá. O que se dá é cachorro”, diz Florestan Moço, recordando a fala da mãe. Dona Hermínia Bresser resistia a chamar o afilhado pelo nome da certidão, como se demasiado nobre para o primogênito de uma trabalhadora doméstica, e passou a tratá-lo por Vicente, alcunha que impregnou por anos, até que reconstituísse conscientemente sua identidade, numa intermitente reconstrução de si. “Quando nasci eu não estava sozinho. Havia minha mãe. Porém, a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela tempestade da vida e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem”, afirma o personagem Florestan no texto. “Orgulho selvagem e tenacidade”, completa Antonio Moço.

As implicações no jogo com o nome de Vicente permitem vislumbrar conexão com a dramaturgia de Jorge Andrade, autor paulista familiar ao repertório do Tapa. É a mesma denominação do personagem, espécie de alter ego, que aparece nas histórias de A escada, O sumidouro e Rasto atrás, esta encenada por Tolentino e seu grupo em 1995 e na qual  Vicente é dramaturgo e surge representado em quatro fases da vida. Memória revolvida como aquela que Mendes experimenta agora.

Entre outras passagens emblemáticas de Vicente e Antonio – A história de uma amizade… consta a prisão de Fernandes em setembro de 1964. O professor progressista e alguns dos seus pares viraram alvo de inquérito policial militar instaurado pelo então reitor da USP na esteira do golpe militar, o jurista Luís Antônio da Gama e Filho. Após três dias de detenção, sua liberdade foi festejada por alunos e professores no prédio da rua Maria Antônia, entre eles Candido, que, ao final do ato, beijou seu rosto. O gesto fez com que um jornalista indagasse o crítico literário se eram parentes. “Se fosse o senhor eu ficaria preocupado. Só faz esta pergunta quem não tem um amigo pra beijar”, devolveu Candido ao incauto.

Divulgação A partir da esquerda, José Augusto Zacchi (Florestan Moço), Walter Breda (Florestan) Oswaldo Mendes (Antonio Candido) e Caetano O’Maihlan (Antonio Candido Moço)

Em abril de 1976, Fernandes encontrou por acaso com Candido e a mulher, a filósofa e professora Gilda de Mello e Souza, em um aeroporto de Nova York. Eles se olharam através de uma parede de vidro. Tentaram se “tocar”. Fernandes chegava para lecionar na Universidade Yale. O casal, retornava ao Brasil. Na peça, Candido comenta como o achou triste. A imagem dessa separação transparente pode ser associada, nos dias de hoje, ao abraço através da cortina de plástico, a possibilidade de contato entre familiares e pacientes internados por causa da Covd-19 ao redor do mundo.

Outro momento delicado envolve uma gravata comprada por Fernandes, em meados da década de 90, para presentear o amigo no aniversário dos 77 anos. Nesse caso, convém preservar o desfecho para a fruição do público na internet ou na futura montagem presencial. De modo que instâncias da solidão, da fagulha de herói romântico e da condição de preso e perseguido político são algumas das variações inerentes ao educador e sociólogo.

Como homem de teatro, Oswaldo Mendes não perde a chance de exercer metalinguagens e tampouco a piada a propósito dos recursos do pós-dramático, em que “fábula, personagens, ação, conflito, tudo isso é coisa do passado”. A ponto de Fernandes cobrar Candido, ou ao menos injetar-lhe peso em sua consciência, por passar ao largo da dramaturgia nacional em sua obra referencial, Formação da literatura brasileira, “uma dívida nunca paga”, reconhece.Com isso, até hoje a literatura brasileira ignora o teatro. Pense na literatura inglesa sem Shakespeare. Na francesa sem Molière. Na alemã sem Goethe e Brecht. Na russa sem Tchékhov. Mas na literatura brasileira não há lugar para Anchieta, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos…”, provoca o personagem Florestan Moço.

Por falar em Anton Tchékhov, formado em medicina, a pesquisadora Sophia Angelides informa que, para o crítico literário M.P. Alekséiev, as cartas constituíam, muitas vezes, uma espécie de campo para o exercício da linguagem viva e sonora, por julgar que, vindas de um escritor, “podem ser objeto de fruição estética, embora de caráter bastante peculiar, em que o literário e o extraliterário se alternam”, assim citado pela autora em Carta e literatura: correspondência entre Tchékhov e Górki (Edusp, 2001). “Embora numa carta a descrição de uma paisagem, o relato de um acontecimento, de uma vivência, a expressão de um sentimento tenham o cunho da veracidade, da não-ficção, porque seu sujeito-de-enunciação é histórico, o material linguístico é submetido ao crivo altamente seletivo do escritor, que recria a sua experiência pessoal. A este propósito, [o linguista Roman] Jakobson lembra, oportunamente, que o ator, ao retirar a máscara, mostra sua maquilagem”.

Sociedade civil

O modo como essa homenagem está sendo organizada, à maneira de mutirão, no contexto do vírus SARS-CoV-2 e sob governo civil-militar resulta, de largada, contraponto à ascensão do autoritarismo de maneira ostensiva desde a redemocratização do país. Estão envolvidas instituições e personalidades dos campos da educação, da cultura, da ciência e da comunicação: Casa do Saber, Grupo Tapa, Sesc SP, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e portal UOL. Em paralelo, durante este julho acontece o ciclo de seminários Florestan 100 Anos, transmitido pelo canal do YouTube da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, na grafia atualizada da FFLHC da Universidade de São Paulo em parceria com a editora Contracorrente, a Sociedade Brasileira de Sociologia, o Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), a Articulação Discente pela Difusão do Pensamento Brasileiro e a Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS).

No início do mês, a SBPC publicou o livro Ciência para o Brasil – 70 anos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), efeméride transcorrida em 2018, no qual se lê que embora mantinha-se distante de envolvimentos político-partidários, de acordo com preceito estatutário, a entidade “aderiu firmemente ao grande movimento nacional da Campanha Diretas Já, por considerá-lo como o meio mais eficaz e rápido de se encontrarem soluções para os mais graves problemas nas áreas de educação, ciência e tecnologia, além de outras”. O pensamento crítico é um dos estamentos, para usar uma expressão afeita a Florestan, às transversais da arte e da cultura nas filosofias de trabalho do Sesc SP (seu diretor regional, Danilo Santos de Miranda, é formado em ciências sociais) e da Casa do Saber.

Arquivo Florestan Fernandes Última imagem com a família, em 22 de julho de 1995, aniversário de 75 anos de Florestan Fernandes; leitura da peça é dirigida por Eduardo Tolentino de Araújo

Já o Grupo Tapa foi fundado em 1979, no Rio de Janeiro, ano de promulgação da polêmica Lei da Anistia, concedida “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, estabelece o primeiro artigo. “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”, situa o primeiro parágrafo. Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em que pede o reconhecimento de que a anistia concedida pela lei aos crimes políticos ou conexos “não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar”. Após dois anos, o STF rejeitou a ação da OAB por 7 votos a 2. Ao contrário de vizinhos sul-americanos, no Brasil a tortura de Estado não foi julgada. Instalada com atraso, em 2012, a Comissão Nacional da Verdade divulgou seu relatório em 2014.

No making-of da leitura, veiculado no YouTube da editora Contracorrente (veja ao final do artigo), Tolentino comenta o quanto aquela “grande esperança de um país” foi esmaecida. “De alguma maneira a gente viu isso escapar da nossa mão. Ver o pensamento desses dois [Fernandes e Candido] me trouxe uma ideia de Brasil que talvez a minha geração tenha sonhado”, afirma o diretor, primo de Candido, radicado com o Tapa em São Paulo desde 1986.

Segundo a historiadora Virgínia Fontes, em verbete para o Dicionário da educação profissional em saúde, abrigado no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, localizada no Rio de Janeiro, a categoria de sociedade civil nasce com o mundo burguês, vinculado ao conceito de Estado e submetido a intensa crítica pelos alemães Kark Marx e Friedrich Engels, destacados teóricos do século XIX nos âmbitos da filosofia e da sociologia. No século seguinte, o italiano Antonio Gramsci, igualmente filósofo e crítico literário amplifica o conceito, em consonância com esses autores, e o refunda.

“Para ele, o conceito de sociedade civil é inseparável da noção de totalidade, isto é, da luta entre as classes sociais, e integra sua mais densa reflexão sobre o Estado ampliado. Gramsci procurou compreender a organização das vontades coletivas e sua conversão em aceitação da dominação, por meio do Estado capitalista desenvolvido, em especial a partir do momento em que incorpora, de modo subordinado, conquistas de tipo democratizante resultantes das lutas populares. Assim, a sociedade civil é indissociável dos aparelhos privados de hegemonia – as formas concretas de organização de visões de mundo, da consciência social, de formas de ser, de sociabilidade e de cultura, adequadas aos interesses hegemônicos (burgueses). Assinala a ampliação dos espaços de luta de classes nas sociedades contemporâneas, em sua íntima vinculação com o Estado. Seu objetivo é contribuir para superar o terreno dos interesses (corporativo) e o de uma vontade plasmada pela vontade estatal, defendendo uma  sociedade igualitária”, anota Virgínia.

Não haveria oposição entre sociedade civil e Estado, em Gramsci, pois a sociedade civil é duplo espaço de luta de classes: expressa contradições e ajustes entre frações da classe dominante e, ao mesmo tempo, nela se organizam também as lutas entre as classes, sempre de acordo com o verbete. “Os aparelhos privados de hegemonia (ou de contra-hegemonia) são organizações nas quais se elaboram e moldam vontades, e com base nas quais as formas de dominação (ou de luta contra ela) se irradiam para dentro e para fora do Estado. Aí subjaz o convencimento não apenas de maneira estática, mas como processo.”

Ato relativo à morte de Carlos Marighella (1911-1969) na ABI-SP, em 1981: Carlos Augusto, Clara Charf, Fernandes, Aldo Lins e Silva, Candido, Lélia Abramo e Fernando Sant’Anna
Nair Benedit

Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em dezembro de 1994, Florestan Fernandes usou a expressão “sociedade civil” dez vezes. Entendia que “os grandes movimentos nascem na sociedade civil e não no Estado”. A oito meses de sua morte, havia expectativa em torno da posse de Fernando Henrique Cardoso, primeiro mandato do político que orientara o doutorado na sociologia da USP. Disse que “a história não é feita por um homem, nem por uma corte… Não é feita por uma Presidência. Ela é feita por um conjunto de elementos, nos quais nós temos de considerar a sociedade civil, as diferentes classes da sociedade civil e o mundo exterior”. Questionava como construir um Estado diferente se a sociedade civil de então não era capaz de criar um Estado diferente. “Nós precisamos de outra sociedade civil.” Indagado sobre a dificuldade de se fazer políticas compensatórias, a construção efetiva da cidadania que se espera de uma democracia, declarou: “Essas classes dominantes foram suficientemente hábeis para decapitar os setores da população negra, mestiça, do antigo homem pobre livre [contemporâneo do sistema escravista], dos sem-classe, dos trabalhadores, mantendo-os lá no fundo e, ao mesmo tempo, preservando para si as perspectivas de controle efetivo do Estado, da sociedade civil e da cultura da ignorância que é destinada aos setores pobres da população”. Por fim, convidado a responder se as transformações brasileiras viriam por meio do candidato vencedor ou do derrotado, Lula, sustentou: “Nenhum dos dois. É preciso… Não sei dizer, eu vou fazer uma pergunta: Por acaso leu Ideologia e utopia, de Marx e Engels? Acho que leu. Se leu, deve ter passado por um trecho muito denso e esclarecedor para a época, sobre a sociedade civil e [sobre] de onde vêm as grandes mudanças sociais. É claro que o Estado tem de se reformar, não é possível que a sociedade se transforme se os Estado não corresponder a essas transformações. E, também, de outro lado, se a sociedade civil se mantém rígida diante de um Estado que se transforma vigorosamente há o risco de uma revolução ou, então, de uma crise muito profunda.”

No plano da política, Florestan Fernandes dedicou parte da juventude à militância trotskista pelo Partido Socialista Revolucionário (PSR), nos últimos anos do Estado Novo (1937-1945) de Vargas. Por curiosidade, o intelectual assistiu a Um tiro no coração, peça de Mendes dirigida por Plínio Rigon, em 1984, e foi movido a escrever artigo para a Folha de S.Paulo intitulado A consciência difícil, também acolhido no livro Teatro e circunstância: três peças de Oswaldo Mendes (Editora Núcleo, 2005). Ao dizer que o autor livra-se da intenção “populista”, localizando-se “clara e corretamente” no debate público, o sociólogo sugere ponte com Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, por levar “o combate à ditadura ao plano mais cerrado da libertação do homem, da cultura e da sociedade, o qual exige a extirpação dos velhos e dos novos fantasmas colônias de nossas elites, que alimentam o medo à democracia”.

Fernandes foi eleito deputado constituinte em 1986, pelo Partido dos Trabalhadores, empenhado em colaborar com os debates que culminaram na Constituição Federal de 1988, a mais próxima de uma perspectiva cidadã. O lema de campanha era: “Contra as ideias da força, a força das ideias”. A certa altura da peça, o personagem Florestan admite: “Em Brasília, tive uma conversa cordial com o presidente do partido [Lula, à época]. E lhe disse: Tenho poucas qualificações. Não sou político profissional, mas me orgulho de participar desse processo do PT. Sou filho único de mãe solteira, analfabeta e empregada doméstica, fui engraxate e dei duro desde criança pra estudar e chegar até aqui. O trabalho é boa escola, mas é a Cultura que lhe dá sentido e eu precisei ir atrás. Portanto, em matéria de origem e vida difícil o páreo entre nós é duro”.

Na disputa pela reeleição, em 1989, teve êxito com a frase: “Sem medo de ser socialista”. Reflexo do homem tributário do adolescente que transitou à vida adulta trabalhando como garçom, entregando amostras de laboratórios ou vendendo e divulgando produtos farmacêuticos e odontológicos. Assim como saltou da vocação autodidata para a sistematização e “disciplina monástica” em tudo que exigia acurácia. Foi na fase do curso de Madureza, equivalente à modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), que conheceu Myriam Rodrigues Fernandes, com quem se casou, em 1944, e teve seis filhos: Heloisa, Noêmia, Beatriz, Silvia, Miriam Lúcia e Florestan Fernandes Júnior.

Os títulos de suas pesquisas acadêmicas dimensionam a capacidade de cultivar alteridade. Dissertação de mestrado obtida em 1946 em antropologia, pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo: A organização social dos tupinambá; tese de doutorado defendida em 1951 em sociologia, na FFCL da USP: A função social da guerra na sociedade tupinambá; Livre-docência para a cadeira de sociologia em 1953 na mesma faculdade: Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia; professor titular em 1964 na mesma instituição: A integração no negro na sociedade de classes. O estudante e docente tinha entre seus interlocutores Fernando de Azevedo e Roger Bastide, este no bojo da missão francesa que incluiu o trabalho de professores como Claude Lévi-Strauss. Como parlamentar, aliás, exerceu influência nas proposições da LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira.

Divulgação Artista do Núcleo Arte Ciência no Palco, Oswaldo Mendes mergulhou nas cartas dos amigos que enveredaram pelos caminhos da sociologia crítica e dos estudos literários

Quando da inauguração da biblioteca da atual FFLCH da USP, em 10 de agosto de 2005, atendida pelo nome de Florestan Fernandes, sua filha e socióloga, Heloisa, expressou como o pai “tornou-se um aliado do Vicente, dessa imensa maioria que não consegue romper o círculo de ferro, deixando-lhes uma advertência – cuidado, essa gente de cima tem medo de povo – e um conselho – estudar”. E continuou: “Nossos melhores filósofos pensaram que o amigo ‘é um outro nós mesmos’, pois ‘quando queremos conhecer-nos a nós mesmos, conhecemo-nos vendo-nos em um amigo’. Antonio Candido e Florestan passaram muito tempo convivendo, conversando, vendo-se, construindo-se. Tiveram tempo até mesmo para escrever um sobre o outro . Nisso que escreveram encontramos o espelho onde se construíram; com afetos (os textos de um sobre o outro falam de amor, solidariedade, compaixão, generosidade), com disposições morais (falam de integridade, dignidade, retidão moral, senso do dever, ética profissional), como sujeitos (cada um reconhece no outro o lutador, o militante socialista, o professor por vocação, o humanista visceral, o homem de luta e de ideal). Em suma, dois amigos que se reconhecem pelos valores que cultivaram: integridade, dignidade, liberdade, justiça. Vicente bem soube ter encontrado em Antonio Candido um espelho onde construiu seu Florestan; um Florestan que, acompanhado da sabedoria do amigo, foi perdendo o pânico da sua solidão do outro lado do círculo de ferro”.

Em outro sinal de admiração, em dezembro de 2009, um grupo de intelectuais, professores, militantes e colaboradores criou a Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), situada na cidade de Guararema, na Grande São Paulo, vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.

Na reta final de Vicente e Antonio – A história de uma amizade…, abre-se uma janela no texto para um trecho do pronunciamento de Fernandes em ato em sua homenagem no mesmo endereço da Maria Antônia. A fala reverbera a definição de que a sociologia é a autoconsciência científica da sociedade, perfeita, segundo aponta José de Souza Martins, por circunscrever a missão social do sociólogo. No caso, ressalve-se, sociólogo socialista:

“Amo a Universidade de São Paulo e outras Universidades, pois elas podem nos levar além daquilo que possuímos. Que o futuro nos permita construir a Universidade que está nos nossos corações e mentes, e nas necessidades do povo brasileiro. Uma Universidade que abrigue todos os talentos, não só os das classes dominantes, mas também das classes de baixo, da classe média em proletarização, dos trabalhadores da cidade e dos campos, dos negros e todos os oprimidos. Que seja extinta a ‘cultura da ignorância’, que diz que o povo não precisa nada disso para ser feliz. A nossa resposta é que o povo precisa não só de alimentos, de habitação, de assistência médica. Precisa de cultura e de consciência crítica, para ser capaz de universalizar a cidadania e contribuir para o crescimento da civilização moderna. Espírito crítico para combater não só uma elite de espírito estreito, que tornou miserável um país rico. Mas para combater esse pensamento que instrumentaliza a tecnologia e se deixa escravizar por ela, esse pensamento que leva países como o nosso a abandonar a pesquisa básica, construída pela imaginação científica, filosófica e artística. Seremos capazes de construir uma Universidade nova como alicerce da renovação, da civilização, no sentido de eliminar a barbárie e criar uma sociedade verdadeiramente democrática, igualitária, na qual reine a felicidade humana? Esta é a pergunta que nos cabe responder. Quanto aos partidos, ou eles mudam seu modo de ser ou a sociedade civil passa por cima deles como um trator, esmagando-os. O tempo não oferece respiro ao rancor autodefensivo das classes dominantes. Ao contrário, ele põe as burguesias dos países-chave da periferia contra a parede. Ou elas buscam alternativas próprias e independentes, abertas à revolução democrática, ou elas irão pelos ares com sua ordem social pervertida de privilégios seculares.”

É assim que a peça de Oswaldo Mendes puxa da memória outros pensadores e criadores brasileiros subentendidos na narrativa: Caio Prado Junior, Paulo Freire, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, os irmãos Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Bôas, Milton Santos, Nise da Silveira, Abdias Nascimento, Lélia Abramo, Henfil, Elis Regina, Oduvaldo Vianna Filho, Mário Schemberg, Zé Celso, Paulo José…

Na sequência da transmissão da leitura, por volta de 21h, o jornalista Fábio Pannunzio, do canal TV Democracia, no YouTube, medeia uma roda de conversa virtual e ao vivo com o crítico literário Roberto Schwarz (do antológico ensaio Cultura e política, 1964-1969 – Alguns esquemas, publicado no exílio francês em 1970) e o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, autor de 16 livros e à frente do canal Falando Nisso, no YouTube. A proposta é partirem da recepção à peça para refletir acerca do legado de Fernandes, sua importância para o século XXI, as afinidades eletivas com Candido, o tensionamento das relações sociais e o momento conturbado do país.

Serviço:

Quando: quarta-feira, dia 22, às 19h30

Link: https://www.youtube.com/watch?v=8DeP2TJ3XXE

Roda de conversa: Logo após a exibição, diálogo do crítico literário Roberto Schwarz com o psicanalista Christian Dunker, sob mediação de jornalista Fábio Pannunzio

Equipe de criação:

Leitura dramática

Vicente e Antonio – A história de uma amizade: Florestan Fernandes e Antonio Candido

Texto: Oswaldo Mendes

Direção: Eduardo Tolentino de Araújo

Direção e montagem audiovisual: Lilian Bento

Com: Walter Breda, Oswaldo Mendes, José Augusto Zacchi e Caetano O’Maihlan

Participação especial: cantor e violonista Zé Luiz Mazziotti

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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