Entrevista
A rigor, desde a quinta série a poeta e ensaísta Leda Maria Martins aprendeu como a força bruta também se impõe por meio de ações, gestos, imagens, silenciamentos e outras formas pensantes. Alguns de seus professores foram “desaparecendo” da sala de aula à medida que expressavam consciência crítica sob o tacão da ditadura civil-militar. Como contraponto a essa e a outras opressões, combatidas vida adentro, a estudante de escola pública nascida no Rio de Janeiro e crescida em Belo Horizonte teve sua formação humanística forjada nas culturas do samba carioca e do reinado/congado mineiro, fontes primárias benzidas pela mãe, Alzira Germana Martins, coroada Rainha de Nossa Senhora das Mercês por iniciativa dos membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá.
Nesse reinado que frequenta há pelo menos meio século, Leda foi princesa por uma década, até abdicar da coroa sem jamais desligar-se da irmandade. Anos depois, aceitou receber a mesma distinção sagrada conferida à mãe, que morreu em 1995. No livro Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá (editoras Mazza e Perspectiva, 1997), ela dimensiona essas danças, cantorias e rituais da tradição afro-brasileira. “Ainda que sejam tomados um pelo outro, os termos Congado e Reinado mantêm diferenças. Ternos ou guardas de Congo podem existir individualmente, ligados a santos de devoção em comunidades onde não existia o Reinado. Os Reinados, entretanto, são definidos por uma estrutura simbólica complexa e por ritos que incluem não apenas a presença das guardas, mas a instauração de um Império, cuja concepção inclui variados elementos, atos litúrgicos e cerimoniais e narrativas que, na performance mitopoética, reinterpretam as travessias dos negros da África às Américas”, escreve.
Saberes e práticas que contrastam com informações sobre monarquias europeias que crianças e adolescentes brasileiros recebem desde os bancos escolares, mas nunca ou raramente ouvem falar acerca da história da escravidão que registra líderes africanos chefes no continente de origem. Uma vez nas Américas, com a diáspora, continuaram a exercer sua liderança à frente de comunidades insurgentes ou de grupos de trabalhadores, como anota o escritor e compositor Nei Lopes no verbete “reis e rainhas negros”, do Dicionários escolar afro-brasileiro (Selo Negro, 2015). O Ministério da Educação faz ouvidos moucos à lei de 17 anos atrás que obriga a abordagem étnico-racial nos planos pedagógicos.
Nunca senti a necessidade de performar, vamos dizer assim: aqui é a cientista e aqui é a poética. Não. Na verdade, as coisas se imbricam. O poético está no meu fazer, está na produção de poesia e está na produção ensaística. No meu modo de construir a escrita, a escritura. Recentemente, uma profissional de São Paulo estava me dizendo o quanto esses conceitos são difíceis. Realmente, tanto os conceitos de encruzilhada, de teatro negro, de ‘oralitura‘ e de tempo espiralar, eles não são assim motes, palavras ao vento. Eles demandam do receptor, do leitor, uma certa imersão no modo em que se constituem essas noções e o que de fato ali se expressa
Em entrevista ao Teatrojornal, a pesquisadora lembra como Alzira fez o artista multimídia Arthur Omar conhecer outros modos de se exercer a majestade no documentário A coroação de uma rainha (1993), centrado nos preparativos para a cerimônia e na capacidade dela performar e extasiar junto ao festejo que acontece desde o final do século XIX. Enquanto a mãe plasma ancestralidade, a partir de suas vivências, a filha pontua sobre o mito fundador, as fabulações, as ritualidades e os fundamentos.
Com o canto, a dança e a performance entranhados n’alma desde que se entende por gente, Leda Maria Martins tornou-se, ao longo do tempo, intelectual incontornável para o pensamento em arte dedicado a discutir gênero, raça, classe e colonialismo a partir da cena, da esfera da linguagem.
Em 1991, portanto há 40 anos, defendeu o doutorado em letras, na área de literatura comparada, pela Universidade Federal de Minas Gerais, fruto de bolsas de estudo obtidas para pesquisar o teatro negro estadunidense, o Black Experimental Theatre, que eclodiu nos anos 1960, e cotejá-lo à luz do movimento do Teatro Experimental do Negro, o TEN, transcorrido cerca de duas décadas antes, a partir de meados dos anos 1940.A cena em sombras (Editora Perspectiva, 1995) foi o livro que abrigou essa pesquisa e trazia o seguinte comentário da autora nos agradecimentos: “A publicação de textos é, ainda, de difícil realização no Brasil, especialmente em se tratando de certos temas e discursos, como, por exemplo, os discursos do negro e sobre o negro, que nem sempre encontram uma desejável receptividade por parte dos editores”.
A professora associada da UFMG narra como encontrou um exemplar de Drama para negros e prólogos para brancos numa biblioteca universitária, coletânea de nove textos montados pelo TEN, que a editou e foi organizada pelo cofundador, ator, diretor, dramaturgo e ativista Abdias do Nascimento (1914-2011). Inclusive, lamenta não ter dado mais espaço ao pensamento crítico da então companheira dele, Maria de Lurdes Vale Nascimento, igualmente ativista dos direitos civis e humanos das populações negras, assistente social, jornalista, professora e cofundadora do TEN.
Curiosamente, foi também nos Estados Unidos que Leda leu, pela primeira vez, estimulada por um professor de literatura brasileira lá radicado, textos de Qorpo-Santo, nome artístico do dramaturgo gaúcho Joaquim de Campos Leão (1829-1883). Ela mudou o tema da dissertação, o teatro do absurdo, para analisar a obra dele no mestrado em artes, pela Indiana University (1978-1981), convertido no livro O moderno teatro de Qorpo -Santo (UFOP, 1991).
Essas publicações, e outras que vieram, evidenciaram uma constelação de noções e conceitos fundamentados poética e teoricamente pela autora, a começar pela sua concepção de teatro negro: encruzilhada, oralitura, tempo espiralar e corpo tela, dentre outras ideias que certamente irão atravessar os dez encontros do curso Fragmentos e Intensidades no Teatro Brasileiro: Experimentações e Poéticas, que Leda ministra no Centro de Pesquisa Teatral, do Sesc São Paulo, de 23 de fevereiro a 25 de março, e cujas inscrições estão abertas.
No diálogo abaixo, ela detalha como será a jornada pela dramaturgia brasileira, um sortido de criadores como Álvares de Azevedo, Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade, Denise Stoklos, Grace Passô, Dione Carlos, Yara de Novaes e Marcio Abreu.
Quando conversou por meio de videoconferência, no sábado de Carnaval, a poeta se debruçava virtualmente, com profissionais da revisão, sobre duas reedições em preparação: Afrografias da memória, a sair pelas editoras originais, Perspectiva e Mazza, e Performances do tempo espiralar, a cargo da Cobogó, artigo originalmente publicado no volume Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais, organizado por Graciela Ravetti e Márcia Arbex, editado pela UFMG em 2002. Em tempo: a veia poeta veio à luz em Cantigas de amares (1983) e Os dias anônimos (1999).
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Leda Maria Martins – Todos os meus livros estão esgotados. Esses dois saem neste ano. A Perspectiva me disse que quer reimprimir A cena em sombras. Também tenho convite para publicar as poesias completas. Mesmo com a pandemia, desde o ano passado eu tenho produzido bastante, o que é bom. Toda semana recebo e-mail de gente pedindo Afrografias e A cena em sombras. Mas autor não tem livro, não é querido? Eu sou feliz com a generosidade dos leitores, sou agradecida. Porque são leituras que perduram há muito tempo. A recepção de qualquer obra é como o tempo espiralar, vai e volta. A demanda tem sido grande. Portanto, sou agradecida e fico feliz ao saber que a produção da gente, que é feita de tanto labor e dedicação, encontra ouvidos dispostos a conversar conosco.
Pergunta – Isso reflete que conceitos elaborados por você décadas atrás permanecem possíveis de serem operados, seja no universo das artes da cena, da literatura e de outros campos das artes. Isso reafirma a solidez da pesquisa continuada.
Quando ofereço humildemente alguma reflexão, meu pensamento, como de todo artista, é de que seja algo que atravesse o tempo. De fato, todas as noções e conceitos que tenho proposto operam em tempos muito diferenciados e vão se expandindo. Os próprios leitores vão se encarregando de expandir. Seja o conceito de encruzilhada, há quase 30 anos; o de oralitura, há quase 30 ano ou mais; o de tempo espiralado, já faz 20 anos; e o de corpo tela, que é mais recente, tem uns três anos que venho falando dele, todos eles encontram não só essa operacionalização em ambientes e áreas as mais diversas. O alcance dessas noções, operadoras, vem mesmo do modo de contribuir para a reflexão e para a criação a um só tempo artística e estética. Eu quero sempre oferecer uma dádiva, mas eu que recebo as dádivas.
Seus atos de escrita guardam sempre uma instância poética. Temos a sensação de que reverberam seu jeito de relacionar-se, de viver, de falar em público, sem soarem reducionistas. Ao contrário, divisamos o rigor da pesquisadora na elaboração conceitual, teórica, numa deriva que também parece biográfica.
Costumo dizer que sou principalmente duas coisas: sou poeta e congadeira. Cresci num ambiente artístico, poético, sempre cercada de música, de cantos, danças, contações de história, de oralidade, e também escrevendo poesia. Eu sempre me vi assim. A minha pesquisa é de um labor extraordinário. A própria revisora de Afrografias está impressionada com a quantidade imensa de fontes orais escritas. É um livro que demorei mais de quatro anos na pesquisa. Assim também ocorre com todos os meus livros. A cena em sombras, que foi meu doutorado, levei anos e anos de pesquisa. Idem para O moderno teatro de Qorpo-Santo e o Performance do tempo espiralar. Eu não vejo uma cisão entre a mais rigorosa pesquisa e o modo de escriturá-la, de transformá-la em escritura, ou de transformá-la em uma fala. Nunca senti a necessidade de performar, vamos dizer assim: aqui é a cientista e aqui é a poética. Não. Na verdade, as coisas se imbricam.
O poético está no meu fazer, está na produção de poesia e está na produção ensaística. No meu modo de construir a escrita, a escritura. Recentemente, uma profissional de São Paulo estava me dizendo o quanto são esses conceitos são difíceis. Realmente, tanto os conceitos de encruzilhada, de teatro negro, de oralitura e de tempo espiralar, eles não são assim motes, palavras ao vento. Eles demandam do receptor, do leitor, uma certa imersão no modo em que se constituem essas noções e o que de fato ali se expressa. Ao mesmo tempo, o modo de expressá-las, em termos de escrita ou de fala, quando faço alguma palestra, não precisa ser hard, duro, ao contrário, pode ser o mais prazeroso possível. Eu trabalho muito na construção de metáforas, de analogias. Figuras de linguagens são figuras poéticas. A poesia não tem nada de fácil. A poesia não tem nada de menos. Para mim o gênero mais difícil para escrever é a poesia.
Aliás, consta que o concretista Haroldo de Campos fez a mediação para A cena em sombras ser publicado via Editora Perspectiva.
Haroldo foi mais que um mediador, foi um grande amigo. Eu tenho uma admiração pelo Haroldo. Tínhamos uma amizade impressionante, que se frutificou a partir de 1987, quando nos conhecemos pessoalmente. Daí em diante desenvolvemos uma relação afetiva de amizade profunda e de muito aprendizado. Eu me lembro, por exemplo, de quando o Haroldo escrevia o texto do Gênesis [transcriação presente no livro Bere’shith, a cena da origem: (e outros estudos de poética bíblica), de 1983] e certa vez ele me ligou e leu para mim. Meu filhinho que estava com 3 anos ficou ouvindo encantado.
Ele apresentou A cena em sombras à Perspectiva sem que eu soubesse. Tinha me feito prometer que assim que defendesse a tese enviaria a cópia para ele. Passaram-se alguns meses, eu trabalhando, atrasei esse envio. Um amigo comum, o Harry Crowl, músico, compositor e maestro maravilhoso [atualmente professor aposentado da Escola de Música e Belas Artes do Paraná e diretor artístico da Orquestra Filarmônica da UFPR], foi perguntado por Haroldo sobre como eu estava [Harry é mineiro]. “Ela anda muito ocupada, defendeu a tese”, respondeu. E Haroldo: “Mas ela defendeu a tese e não me mandou? Eu quero”. Pois solicitou ao Harry que a enviasse, o que fez sem que eu soubesse. Daí, um belo dia recebo uma carta da Perspectiva dizendo que o conselho havia indicado o livro para publicação e me chamando para uma reunião em São Paulo. Foi quando eu conheci Jacó Guinsburg [1921-2018] e dona Gita [coeditores da Perspectiva]. A empatia foi mútua. Antes de me despedir, eu perguntei a ele quem enviou o livro, estava curiosa. “Foi o Haroldo de Campos”, disse Jacó. Fiquei, assim, estarrecida. Eu disse que não estava sabendo disso. Perguntei se houve alguma interferência do Haroldo, ele disse que não, apenas encaminhou ao conselho editorial. Todo mês o Haroldo me ligava e perguntava assim: “O conselho já leu?” [Risos].
Os encontros com o Haroldo eram sempre maravilhosos. Lembro, por exemplo, que a primeira vez que fui a Congonhas, foi o Haroldo que me impulsionou. Eu estava em Ouro Preto [lecionava na UFOP] e o havia chamado para conversar com os alunos acerca de sua obra. Era para durar dois dias, mas ele permaneceu uma semana, os alunos ficaram encantados. Um dia, o Haroldo começou a falar de Congonhas e eu disse que não podia comentar muito porque ainda não conhecia a cidade. “Como você não conhece Congonhas?”, disse ele. Enfim, conseguimos arrumar uma colega que nos levou até lá e conheci Congonhas subindo aquelas ladeiras com o Haroldo descrevendo e poetando sobre Aleijadinho, você imagina o que foi… Uma coisa impressionante.
No final de 1991, estreei uma peça que havia concebido, Linguagem das Américas, que aconteceu em Mariana, no interior de uma capela. Uma mixórdia com música ao vivo, dança e outras expressões para abordar os processos de colonização nas Américas e trazê-los até o presente. Na época, nem se falavam nas teorias de hoje. Pois o Haroldo foi assistir. Ficou deslumbrado. Ele disse: “Isso é uma ópera neobarroca”. Sempre o admirei muito, bem antes de conhecê-lo. Sua poesia, a teoria da tradução, seu pensamento. Era uma das pessoas mais eruditas e mais belas que tive a honra de conhecer e tê-la como amiga.
Quando ele morreu, eu estava no exterior. Havíamos combinado que dali a duas semanas ele viria conversar com minha turma e com quem mais tivesse interessado, na UFMG, a respeito de sua poesia e da sua teoria da tradução. Já estava um tanto adoentado, mas sempre ficava muito feliz, dizia que o encontro com os jovens o alimentava muito. Tive compromissos de palestras na França e na Inglaterra e ele morreu justamente naquele semana em que ele estava fora. Quando voltei, no primeiro dia de aula, comentei com os alunos se eles estavam entusiasmados com a vinda do Haroldo. Foi aquele silêncio. Um aluno disse: “Professora, você não sabe?”. E me disse que o Haroldo havia morrido. Eu engasguei, comecei a chorar. De qualquer modo, eu o tenho até hoje, para mim é uma presença viva. É um dos meus ancestrais, como a gente sempre diz.
Se fosse por ele, nunca me falaria que levou A cena em sombras para a Perspectiva, era encantado por esse estudo. Ele me colocou em contato com o [poeta e ensaísta] Antonio Risério, cuja obra muito admirava. Eu só tenho belíssimas lembranças do afeto, do amigo, do pensador.
Em seu mestrado, você visitou Qorpo-Santo lá no século XIX. Nele, as noções de experimentação e de fragmentação já eram objetivas, latentes. Como surgiu o interesse em prospectar essa obra, que faísca foi aquela?
Você usou a palavra certíssima. Faísca. Eu estava fazendo mestrado nos Estados Unidos, como bolsista convidada pela universidade de lá. Eu estava elaborando sobre um outro tema, quando um dos professores, o Heitor Martins, que dava aula de literatura brasileira na cidade de Bloomington, na Indiana University, sabendo do meu interesse em teatro, em performance, perguntou se eu conhecia esse autor. Eu não conhecia. Então eu li, nos Estados Unidos, as peças de Qorpo-Santos. Fiquei tão encantada que abandonei a ideia da dissertação anterior… Não lembro agora qual era. Entrei em contato com o [historiador e crítico] Guilhermino César, que tinha de fato trazido esse escritor à tona, publicando a primeira antologia. Escrevi a pesquisa e publiquei o livro. Isso foi em 1981, há quarenta anos. Eu era muito jovem. E eu arrisquei porque, na verdade, eu já era alguém… Ah, lembrei o tema anterior do mestrado: era sobre o teatro do absurdo. Então, na verdade, ali eu via, vamos dizer assim, faíscas experimentais, proposições conscientes ou não. Se havia alguma coisa que Qorpo-Santo tentava buscar em relação às poéticas da época, por outro lado o que escapava era extremamente poderoso, inusitado e precursor.
O Qorpo-Santo tem ciclos de interesse no Brasil. Logo depois que voltei, durante alguns anos muita gente queria saber sobre a obra dele, outras publicações surgiram. Ele desperta diversos tipos de interesse, mas não é contínuo. Houve quem quisesse que a gente falasse sobre ele a partir da “loucura”, por exemplo. Há momentos em que Qorpo-Santo está em evidência e depois entra de novo numa espécie de ostracismo. Anos atrás, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, fez uma entrevista comigo a respeito dele. Apesar de não estar trabalhando especificamente com a obra no momento, fui revisitá-lo e falei que mais do que antecipar o teatro do absurdo e várias poéticas do século XX, ele antecipa poéticas de fim de século XX e início de século XXI, é impressionante.
No curso que vou ministrar para o Sesc, eu trago o Qorpo-Santo. E no momento em que ele está meio nas sombras. É uma fruição intelectual impressionante. O teatro de Qorpo-Santo continua a propor desafios. E não são tantos aqueles que querem de fato encarar esses desafios.
Você afirma que o Qorpo-Santo, em termos de formalização, pede uma teatralidade à altura. Ou seja, há margens para uma concepção performativa nos dias de hoje.É isso, a atualidade dele. Inclusive com os bonecos do Grupo Giramundo [As relações naturais, de 1983, a partir da peça homônima]. No livro O moderno teatro de Qorpo Santo [1991], as fotos são todas desse espetáculo. O Álvaro Apocalypse [diretor fundador do grupo, 1937-2003] me solicitou que fizesse uma exposição sobre ele, ao que atendi com muito carinho. Vi várias montagens de peças do Qorpo-Santo, inclusive dança baseada em texto dele. Ele oferece possibilidades cenográficas e performáticas sensacionais. Tudo que já vi até hoje sobre Qorpo-Santo eu gostei muito. Houve época em que Belo Horizonte teve três criações simultâneas inspiradas nesse autor. Portanto, estou feliz de poder trazê-lo à tona no curso. Quando reflito, ele me instiga muito em termos teóricos e performáticos.
Gosto muito de Qorpo-Santo, assim como vou trabalhar no curso com Flávio de Carvalho [artista expoente da geração modernista em São Paulo, 1899-1973], para o qual os participantes serão convidados a lançar um olhar a partir dos estudos da performance, seja performance art ou performance em geral, para revisitá-lo. Vou trabalhar sobre teorias literárias alemãs a respeito da fragmentação para conversarmos a partir de Macário [de Álvares de Azevedo, 1831-1852], não sob a ótica do romantismo sentimentalista, mas do romantismo sentimental, que é um conceito teórico e não tem a ver com sentimentalismo.
Vamos trabalhar com Nelson Rodrigues, lidar um pouquinho com esse dramaturgo. O Nelson é difícil. Tanta gente já trabalhou com ele, e maravilhosamente bem. Mas vou tentar revisitá-lo chamando a atenção para a construção muito avançada sobre memórias e temporalidades que ele faz. Vamos trabalhar com Grace Passô, com Dione Carlos. Vamos trabalhar com uma peça-jogo da Yara de Novaes [(Des)memória], que está na internet, um formato novo. Vamos trabalhar com o Galpão, com Nós e Outros, e nesse dia contaremos com a presença do Marcio Abreu [diretor], assim como a Yara estará com a gente no dia em que discutirmos a criação dela. Da Denise Stoklos, vamos trabalhar com o texto Desmedeia. Enfim, eu escolhi textos, dramaturgos e performers que amo, de modo que para mim será prazeroso e espero que também seja para as pessoas que estarão conosco. Tive o prazer de conhecer a Denise em 1999, nos Estados Unidos, quando ela era artista residente da Universidade de Nova York (NYU) e eu estava fazendo pós-doutorado. Eu me tornei uma grande admiradora do trabalho dela, que vim a conhecer com mais profundidade.
Enfim, esse é o perfil do curso. Vamos trabalhar com fragmentos, com intensidades, com experimentações. Não é o curso que tende a lidar com uma perspectiva diacrônica, historiográfica. É à la Haroldo de Campos mesmo, lidar com algumas sincronias, algumas intensidades.
É curioso que os impulsos que determinaram o eixo tanto do mestrado como do doutorado se deram quando você estava estudando no exterior. Foi assim que você descobriu e pesquisou Qorpo-Santo e, anos depois, entrou em contato com a coletânea de peças montadas no âmbito do Teatro Experimental do Negro e organizada por Abdias do Nascimento [Drama para negros e prólogos para brancos, disponibilizado no acervo digital do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros, Ipeafro]. Como foram esses deslocamentos, literalmente fora do país, de encontro com realidades ficcionais e brutais a respeito de assuntos de seu país e que a mobilizaram e ainda a mobilizam?
Olha, foi na mesma época em que eu fazia o mestrado. Como disse, eu já tinha abandonado um tema, que era o teatro do absurdo mais amplamente teórico, para trabalhar com Qorpo-Santo. E aí, quando fui visitar a parte de literatura brasileira na biblioteca da universidade, para ver se achava alguma coisa a respeito desse escritor, eu me deparo com um exemplar de Drama para negros e prólogos para brancos.
Sincronia ou coincidência?
Na perspectiva africana não existe coincidência, acaso. Lembro-me que não achei nada sobre Qorpo-Santo, mas achei aquela antologia. Levei para casa. Pensei: “Bom, não vou trocar meu objeto agora, mas meu doutorado será sobre o Teatro Experimental do Negro”. Na época, eu já estava tendo o privilégio de ler alguma coisa sobre o teatro negro nos Estados Unidos. Terminei o mestrado e comecei a fazer o doutorado. A ideia já era comprar o TEN, especificamente, com o teatro negro dos Estados Unidos nos anos 1960. E permaneci com essa ideia.
Uma das coisas que me encantaram nos Estados Unidos foram as bibliotecas. Os arquivos são fascinantes. Tem muita coisa das artes e da história brasileira que você não encontra aqui, e encontra lá. Por exemplo, eu não consegui aqui, depois, comprar um exemplar de Drama para negros e prólogos para brancos. Quem me deu o livro de presente foi um grande diretor de teatro de Belo Horizonte, o Ítalo Mudado [1931-2011], era o exemplar dele. Recentemente, ouvi dizer que estão para reeditar várias obras do Abdias do Nascimento, inclusive essa antologia. Ela tem Nelson Rodrigues [1912-1980], o próprio Abdias, Lúcio Cardoso [1912-1968] e Agostinho Olavo, autor da peça que mais amo nessa publicação, Além do rio (Medea), sempre tive vontade de encená-la. E seria muito interessante se isso acontecesse, para a gente ver qual será a reação das pessoas 60 anos depois. Há textos ali que a gente não encontra em lugar nenhum, com exceção de O anjo negro, do Nelson, uma peça também pouco acessada, pouco montada. Eu montei esse texto em 1988. Parece que as pessoas têm medo de O anjo negro.
Toca em feridas.
Ela toca. Seria muito interessante, inclusive, ver a recepção a textos como esse, a Sortilégio [de Abdias], a Além do rio e a vários dos nove textos que estão lá. Então, a minha descoberta foi também no exterior, em contato com documentos. Depois eu fiz uma longa e laboriosa busca de material sobre o TEN na Funarte, na Biblioteca Nacional. Encontrei caixas de fotos cheia de traças, jogadas pelo canto. Então, teve um árduo trabalho de pesquisa, porque não havia nada explícito para a gente. As fontes eram muito difíceis, o que não acontece hoje, há mais facilidade em acessá-las. Tanto que surgiram vários trabalhos sobre o Teatro Experimental do Negro, sobre o Abdias. Eu estive com ele várias vezes, o entrevistei antes de defender a tese, mandei o livro. Quando o encontrava, ele costumava dizer que, segundo ele, era a melhor leitura que já se tinha feito a respeito do TEN em termos teatrais. Muita gente aborda o TEN em termos histórico, o que é válido e necessário, mas em termos estéticos, aquilo que está ali, que o TEN representou e propôs, é muito rico, o que muitas vezes, vamos dizer, a análise histórica ou sociológica encobre. Por isso ele admirava a pesquisa desenvolvida em A cena em sombras, assim como a Elisa [a viúva Elisa Larkin Nascimento]
E você coloca o trabalho dele em perspectiva com o movimento do teatro negro estadunidense, como no caso da dramaturgia de Adrienne Kennedy [nascida em 1931], você pisa o espaço da criação mesma, lá e cá.
Tem esse mérito também, eu acho, desculpe-me a falta de modéstia, de trazer para o leitor brasileiro autores que não eram lidos por aqui. O Ângelo [Flávio Zuhalê], por exemplo, dirigiu um texto de Adrienne Kennedy em Salvador [A casa dos espectros, em 2006, do original Funnyhouse of a negro, que discute as consequências trágicas do racismo na mente humana]. O LeRoi Jones, o [de nome artístico] Amiri Baraka [1934-2014], ele é um pensador, um dramaturgo, um poeta fantástico. E vários outros. Tive o privilégio de ver várias montagens desses textos. Conheci o Amiri Baraka, a Adrienne Kennedy. Fiz entrevista com ela quando estava como professora visitante da Universidade Stanford. Das peças que falo eu as vi todas, com exceção de Slave chip [de Baraka].
O que me espantou nessa pesquisa é que não há uma sincronia temporal. Estou falando do TEN nos anos 1940, 1950, e estou falando dos Estados Unidos nos anos 1960. Há uma antecipação do TEN em relação a algumas proposições do teatro negro nos Estados Unidos. De certo modo, ainda que os movimentos teatrais negros sejam muito mais longevos aqui no Brasil, nós temos aí a ideia do teatro negro nos Estados Unidos desde o século XIX, mas em termos, vamos dizer assim, de ênfases, as proposições do TEN, na verdade você só pode comprar, naquele momento, ao teatro dos anos 1960 nos Estados Unidos. Olha que interessante, até na nomeação: Teatro Experimental do Negro aqui, nos anos 1960, e Black Experimental Theatre, dos anos 1960, nos Estados Unidos. E quando Abdias vai para os Estados Unidos [exilado de 1968 a 1981], ele é abraçado por esses artistas e teatrólogos todos, ele encontra conversa, diálogo.
Hoje, todos esses autores são fáceis de serem acessados, inclusive o TEN, se bem que ainda há muita coisa a ser escrita sobre. Por exemplo, eu tenho muito interesse de pesquisar mais a participação da dona Maria Nascimento, que foi esposa do Abdias [Maria de Lurdes Vale Nascimento, ativista, assistente social, jornalista, professora, cofundadora do TEN e à frente do jornal do movimento Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro]. Foi uma das pessoas mais importantes na gestação do TEN. Ela teve ações incríveis e ficou, de certo modo, esquecida. Há cerca de três anos, lendo um fac-símile do Quilombo, que ganhei, e ali se percebe a dimensão dessa mulher. Acho que falta isso no livro A cena em sombras, de dar um destaque maior à presença das mulheres. Não só como personagens, que mereciam também, porém não tive fôlego na época. Vamos lembrar que foi uma tese de doutorado que tem tempo para começar e para terminar. Mas está aí, são ótimos temas para pesquisa, para as pessoas que se interessam pelo teatro brasileiro. Maria era de uma visão extraordinária.
No livro, você pondera sobre a descontinuidade do TEN, se comparado ao fenômeno do teatro negro nos Estados Unidos. Isso lembra uma característica da cultura brasileira em vários setores, de interrupção, prevalecendo ciclos menores de fases tão inventivas. Você observa ainda que o sociólogo Florestan Fernandes apontou que um dos dilemas e desafios do TEN estava na questão da formação e da efetiva participação do público negro. Acredita que as gerações atuais do teatro negro estão conseguindo cumprir e responder àquilo que Florestan disse? Creio que as pessoas negras estão mais presentes nas plateias e em cena, apesar da realidade ainda muito distante do ideal em termos de políticas públicas para a arte e a cultura no país. Assim como os experimentos poéticos do teatro negro avançaram bastante, e com eles a voltagem política, o que pode ser atribuído a iniciativas pioneiras como a sua pesquisa em A cena em sombras. Como você pensa esse arco que desenhei?
É um arco muito interessante, porque nos coloca historicamente. A ideia do Abdias e de todos os seus colaboradores era de uma expansão. E eles fizeram isso, levaram para São Paulo, houve também um teatro inspirado no TEN em Salvador, de uma atriz e diretora sensacional [o Teatro Negro da Bahia, Tenha, criado em 1969 pela também dramaturga Lúcia de Sanctis]. Quanto à descontinuidade, existiam vários fatores, alguns muito parecidos com os de hoje: falta de patrocínio, a reação do racismo estrutural contra o negro no Brasil, todos esses tipos de dificuldades, inclusive condições para construir, como o Florestan detectou muito bem, uma plateia negra. Majoritariamente, a plateia do TEN era formada por brancos. Mas tem outro fator que a gente não pode esquecer: a ditadura civil-militar, que impôs uma barreira. Nos anos da ditadura você não podia falar que havia racismo. Não podia pensar num teatro negro, não podia pensar questão de gênero. A questão era: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Tivemos um cerceamento não apenas do TEN, mas de várias áreas artísticas no país. O próprio Abdias se autoexilou nos Estados Unidos. Quando ele volta, com a abertura no início dos anos 1980, e inclusive vai ser suplente do Darcy Ribeiro [pensador e escritor, 1922-1997], no Senado, tudo o que estava confinado, explode. Lá no final dos anos 1980, nos anos 1990. Eu sempre falava que era necessário estabelecer redes para a construção não apenas de plateias – o que hoje é uma realidade –, mas também redes de comunicação entre os variados grupos e movimentos. O que também se dá hoje de forma extraordinária.
O Abdias costumava dizer que o TEN continua vivo, continua como ideia, claro, mas é interessante também como grupos, movimentos e atores vão revisitar o TEN não apenas como referência, mas criticamente, com reflexão. O TEN não é para você ir lá e copiar. Que tipo de ideias e de concepção que estão ali lançadas? Nos vários âmbitos em que o TEN buscava atacar, como a questão da cota racial, a questão de gênero, a questão do financiamento, tudo isso aparece ali. A questão de buscarmos matrizes negras não apenas do conhecimento em geral, mas particularmente matrizes performáticas, por exemplo, o que Solano Trindade vai fazer. Solano participa do TEN e vai buscar isso no teatro dele, esses celeiros e repertórios de matrizes performáticas do Brasil, o que coaduna muito com o pensamento de [Ariano] Suassuna [1927-2014], mestre em falar e escreve sobre isso. Havia ainda o Haroldo Costa com a companhia Brasiliana. E hoje podemos caminhar para trás e saber mais.
Na verdade, o TEN não inaugura. Em 1926 estreia a Companhia Negra de Teatro de Revistas, do De Chocolat [João Cândido Ferreira, cantor, ator e dançarino, 1887-1956], com uma peça chamada Tudo preto [de sua autoria]. Quando você lê Tudo preto hoje, o texto é de uma atualidade, ele usa muito a ironia, a crítica sarcástica. Ou seja, isso nos instiga a ir não apenas na direção para a frente, mas para trás. Trazer das sombras essas manifestações teatrais negras que em geral as histórias do teatro brasileiro não lidavam com ela. Se você pega as histórias do teatro brasileiro antigas, elas não dão a mínima. Há uma ignorância, há uma desqualificação.
Damos uma importância a todos os movimentos dos anos 1960, o Arena, o Oficina, o Opinião, não é mesmo? Mas lá em 1944 tinha o Teatro Experimental do Negro, que foi também um movimento. Ele não é algo que se dirige especificamente ao teatro, se propõe a um grande movimento. Mas não aparece nas histórias do teatro brasileiro. Quando a Perspectiva lança a História do Teatro Brasileiro [volume I, em 2012, e volume II, em 2013], eu escrevi o verbete sobre o teatro negro. Na historiografia, houve poucas reflexões sobre o TEN, o Décio [de Almeida Prado, crítico, 1917-2000] e o Florestan escreveram um pouco, mas em geral as reações ao TEN foram muito desfavoráveis à época por parte da crítica teatral brasileira.
Nos anos 1990, a editora foi extremamente ousada em publicar A cena em sombras, e isso é uma ação extraordinária. Quem publicaria naquela época? Hoje não, as editoras estão à caça de autores. Eu me lembro de uma grande teórica brasileira que tentou publicar um livro sobre os negros, baseado em um belíssimo seminário que ela fez, e não encontrou nenhuma editora. E as que encontrou, exigiam que se tirasse a palavra “negro”. Então ela nunca publicou o livro. Quando saiu A cena em sombras, pouco se falava do TEN.
Uma crítica de formação eurocêntrica.
Pois é, você sabe que na própria universidade brasileira as referências, em sua grande parte, são eurocêntricas. Uma das nossas lutas tem sido não apenas para a inclusão do negro na universidade, mas também para a construção bibliográfica, curricular. Eu sempre digo o seguinte: o cânone tem que estar sempre expandido. Não para a exclusão, mas para a expansão. Para que os alunos façam história, façam letras, façam teatro, façam antropologia, façam arquitetura. Recentemente, uma arquiteta me assistiu falando em uma livre e me ligou admirada por eu ter tocado brevemente na questão da arquitetura, o que era raro, segundo ela. Porque, em geral, não há nenhuma referência à arquitetura de matriz africana nos cursos de arquitetura, e ela é riquíssima. Todas as áreas do conhecimento expressam um saber que precisa estar incluído como parte dos saberes sobre a humanidade em sua diversidade. A arte, de certo modo, tem um papel muito relevante nisso.
A cena em sombras ainda é atual porque muitas das perspectivas que o TEN nos traz e que o teatro dos anos 1960 nos traz são atualíssimas em relação às proposições estéticas negras e à situação do negro na sociedade atual. A plateia, isso é um dos ganhos maravilhosos. Eu dizia isso numa live nesta semana, com Márcio Meirelles, que dirigiu o Bando de Teatro Olodum por 30 anos [diálogo “O teatro negro e identidades”, ao lado de Hilton Cobra, Valdinéia Soriano]. Se você retroage 30, 20, dez anos atrás, nós não tínhamos todo esse público que temos. Hoje você vai ao teatro e ainda vê peças com a maioria de espectadores branca, mas havia época em que você não via um negro na plateia. Hoje não. E tem mais: é uma recepção ativa. Ela prestigia o artista negro, prestigia o pensador negro, isso é muito importante, porque a quem você interessa acertar? No caso, acredito que tanto a população branca quanto a população negra. Interessa acertar a diversidade, porque é disso que se trata. Da diversidade, da alteridade em todos os sentidos. Isso é uma felicidade. Agora, isso é uma construção, não caiu do céu. Devemos muito, no pós-ditadura, à atuação desses movimentos, desses grupos que vêm, com dificuldade, mas com muita reflexão, com proposta estética, criando também uma audiência crítica. O que é importante. Uma audiência crítica. Isso está lá sim.
Qual sua percepção de performance hoje, tendo você se envolvido com ela nas últimas décadas, tanto na teoria como na prática artística?
Performance é um termo muito inclusivo, o [Richard] Schechner diz isso, a Diana [Taylor] diz isso, todo mundo que trabalha com performance diz isso. É um termo muitíssimo inclusivo. Não se confunde com performance art, ele a abriga. Então, performance art seria um modo de se pensar também as performances ligadas a vários movimentos do século XX. Mas os estudos da performance são mais amplos, se expandem para além da performance art. A performance é um termo que nos permite trabalhar com ele no teatro, na dança, no rito, nas performances do cotidiano. E o uso dele, não vejo muita diferença hoje… Talvez ele seja mais acessado, com as várias possibilidades de sentidos que abriga.
Agora, no âmbito dos estudos da performance, uma das coisas que se faz, a Diana faz isso e o Schechner também, é distinguir a performance como coisa em si, que denominamos de performance ou que o performer denomina de performance, da performance como quadro teórico, como metodologia, como área de conhecimento disciplinar no âmbito não só da universidade, mas das reflexões sobre performance. Essa distinção é boa porque nos dá margem para ver como operar com esse conceito, que é muito amplo. Na verdade, ele não é um conceito, ele não é um “é”, ele abriga uma ampla possibilidades de objetos e também de olhares sobre.
Eu comecei a trabalhar com performance pela linha francesa, do Paul Zumthor [medievalista, romancista, estudioso das poéticas da voz, 1915-1995]. E que é muito rica. O pensamento dele é extraordinário. Isso foi nos anos 1980. Na década seguinte, mesmo antes de conhecer a Diana, eu começo a trabalhar com performance do ponto de vista mais dos estudos da performance, com a professora Sandra Richards, que integrava o departamento de performance da Northwestern University. Fiz o meu doutorado sanduíche na Universidade da Califórnia, em Berkeley, então desde os anos 1988, 1999, tinha esse contado com a Sandra e com outras perspectivas de estudos da performance. Principalmente da linhagem norte-americana, em particular daquela que vinha do departamento de estudos da performance na Universidade de Nova York. Posteriormente, conheci a Diana, mas já tinha um certo conhecimento e só me aprofundei mais nos estudos do Schechner e nos estudos da própria Diana, estabelecendo um diálogo muito fértil e muito rico que mantemos até hoje.
A minha contribuição é via matizar o termo oralitura, que muitas vezes se confunde com o termo performance. Na medida em que matizei esse termo, desde o começo dos anos 1990, fui, é claro, explorando mais a sua potencialidade e ele é particularmente isso, do âmbito da performance. Tenta dar conta de muita coisa que a performance também dá conta. Talvez não tenha a amplitude da performance, ainda que ele seja bastante amplo também. A oralitura conversa muito bem com os estudos da performance.
E a oralitura tem o seu elemento de corporeidade também.
Sim. Os estudos da performance, que pode abrigar teatro, dança, rito, performance do cotidiano e muitas outras práticas corporificadas, como afirmei, isso é muito importante: o papel da corporeidade e das práticas corporificadas. Nesse sentido, um termo vem ao encontro do outro. Eu já usava o termo performance antes de propor oralitura. Já estava, de certo modo, envolvida nessa grande área disciplinar, de conhecimento, que é uma área transversal por excelência.
Fale um pouco sobre sua mãe, ela te apresentou ao reinado, era congadeira…
Não daria para resumir a vida dela em algumas palavras, mas Alzira Germana Martins era uma pessoa extremamente altiva, doce, um sorriso encantador, um saber impressionante, muito generosa, muito carismática, muito forte. Ela tinha muitos saberes. Uma pessoa extraordinária para quem teve a graça de conhecê-la. O cineasta Arthur Omar fez um filme sobre a coroação dela, Coroação de uma rainha. Ela era fascinada por ele, e ele se apaixonou por ela, o tratava como a um filho. Num seminário sobre a obra dele, o Arthur reconheceu que aquele documentário saiu um pouco do perfil de seus trabalhos. Reconheceu que foi cativado, que foi “tomado por dona Alzira”. Nesse dia ele disse que tinha uma ideia da monarquia brasileira e isso mudou quando conheceu dona Alzira e passou a saber o que era majestade.
Uma melhor tradução de dona Alzira é que ela era uma extraordinária contadora de casos. E cantava lindamente, benzia, curava. O Arthur pega no filme dele um pouco dessa figura encantatória e encantadora que ela foi.
Minha mãe me trouxe do Rio para batizar em Belo Horizonte, e contava uma história maravilhosa a respeito disso. Um dia tomamos café e te conto… Só fui conhecer o reinado mesmo quando jovem. Eu e ela viemos do Rio e aqui ficamos. De início, era para eu cumprir uma promessa na Irmandade Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, e de lá para cá são mais de 50 anos no mesmo reinado. Fui princesa conga por dez anos, abdiquei da minha coroa, renunciei, mas continuei como parte da irmandade. Em 1992 a minha mãe foi coroada rainha de Nossa Senhora das Mercês. Com a morte dela, em 1995, os dirigentes do reinado, os capitães, me solicitaram que assumisse a coroa portada por minha mãe. Eu então assumi a coroa de Nossa Senhora das Mercês dentro do congado. Esse movimento faz parte.
Eu sempre digo que a minha constituição como pessoa se deve muito a essa vivência e pertencimento ao reinado. Para mim não é nada extraordinário. A minha família no Rio convivia muito na área do samba, das escolas de samba. Venho de uma família muito musical. Minha mãe é de uma família de congadeiros de Minas Gerais. Depois ela vai para o Rio e lá, com os outros parentes, se integram às grandes escolas de samba do Rio. Eu fui criada nesse ambiente musical. Minha mãe foi passista da Salgueiro e depois da Portela, a grande paixão dela. Ouvi muito minha mãe, ela era uma enciclopédia sobre as escolas de samba do Rio. Muito do que sei veio através dela, de ouvir histórias fascinantes. Todo ano a gente assistia aos desfiles pela televisão ou íamos ao Rio de Janeiro para ver de perto.
A paisagem do reinado é muito musical, com sons, cores, ritmos, dança, tudo isso é ancestralidade e se manifesta em várias performances, em várias situações. De maneira que o reinado está impregnado em mim ou eu estou impregnada no reinado.
Videocarta da dramaturga Dione Carlos a Leda Maria Martins que abriu ação do Centro Cultural São Paulo, em junho de 2020:
Curso:
Fragmentos e Intensidades no Teatro Brasileiro: Experimentações e Poéticas
Com: Leda Maria Martins
Quando; 23 de fevereiro a 25 de março; terças e quintas, das 19h às 21h
Inscrições: 16 de fevereiro a 19 de fevereiro, no site sescsp.org.br/cpt [Inscrições esgotadas]
Ingressos: R$ 24 (credencial plena/trabalhador no comércio e serviços matriculado no Sesc e dependentes), R$ 40 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino) e R$ 80 (inteira).
Na plataforma Zoom
Classificação indicativa: Não recomendado para menores de 16 anos.
Vagas limitadas
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.