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Artigo

Eva Wilma ousou ‘Godot’ só com elas em cena

16.5.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ruth Amorim Toledo/Arquivo Multimeios CCSP

Entre os feitos de Eva Wilma no teatro, está o de ter produzido uma montagem de Esperando Godot com elenco formado só por mulheres, contrariando o autor, Samuel Beckett, que preconizava a atuação masculina para a sua obra-prima. A atriz morreu às 22h08 de ontem, aos 87 anos, “em função de um câncer de ovário disseminado, levando a insuficiência respiratória”, segundo informou o Hospital Israelita Einstein, em São Paulo, onde estava internada havia um mês.

Antunes Filho foi convidado a assinar a direção cerca de um ano e meio antes de fazer de Macunaíma (1978) um marco histórico, espetáculo surgido na esteira de sua inclinação ao teatro de pesquisa, encerrando o ciclo de trabalhos empresariais que conheceu de perto junto à geração do Teatro Brasileiro de Comédia influenciada por diretores estrangeiros, sobretudo vindos da Itália.

Filho delineou a estética clownesca nas atuações e usou discursos nazistas na sonoplastia como contraponto ao absurdo da realidade brasileira sob ditadura civil-militar. Convicção que também mobilizava algumas das artistas em cena envolvidas em manifestações de resistência ao regime dos generais: Wilma e Lilian Lemmertz,  como Vladimir e Estragon, além de Lélia Abramo e Maria Yuma, respectivamente o senhor Pozzo e o servo Lucky, cabendo o papel de Menino a Vera Lyma.

Minha parceria com Lilian, ela no Estragon e eu no Vladimir, foi muito intensa e afetiva. Era interessante o fato de que a relação dos personagens, Vladimir sempre instigando Estragon para persistir na espera de Godot, que um dia ele viria, tinha certa semelhança com nossas personalidades. Lilian era mais cética do que eu. Eu provocava Lilian e tentava fazê-la acreditar que a felicidade era possível. Oito anos depois que nossos caminhos se separaram, quando ela morreu, fiquei com a sensação de não ter conseguido convencê-la

Eva Wilma (1933-2021)

A produção da Companhia Carlos Zara – Ednei Giovenazzi estreou em Brasília, no Teatro da Escola Parque, em março de 1977, e circulou por outras 17 unidades federativas.

O texto a seguir, intitulado A angústia da espera, foi publicado por este jornalista no livro Teatro FAAP: a história em cena (Fundação Armando Álvares Penteado, 2010). A produção de Godot cumpriu temporada de seis meses naquele palco paulistano inaugurado no ano anterior, 1976.

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Vladimir e Estragon querem ir, mas algo os impede. Esvaziados de ação, os clowns e vagabundos de Samuel Beckett (1906-1989), postados à beira de uma estrada, assentaram como luva à aridez do cenário da sociedade brasileira naquele 13º ano sob ditadura militar. Em outubro de 1977, semanas após completar um ano de idade, o Teatro FAAP recebeu Esperando Godot, um espetáculo com a assinatura de Antunes Filho. Foi a primeira e única vez, até o momento, em que as obras desses artistas tocaram-se em cena: o dramaturgo irlandês, Prêmio Nobel de Literatura em 1969, e o diretor capital na história dessa arte entre nós desde a fase moderna no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, nas décadas de 1940 e 1950.

“Samuel Beckett dá um basta aos falsos grandes ideais, às magníficas e mentirosas boas intenções, ao traiçoeiro liberalismo dos poderosos, às justificativas do militarismo – sustentáculo primeiro dessas sociedades apodrecidas”, dizia Antunes no programa da peça, imprimindo palavras duras endereçadas aos generais. O governo ainda estava a oito anos de ser ocupado por civis.

A montagem subverteu o gênero dos papéis masculinos optando por cinco atrizes. Eva Wilma e Lilian Lemmertz viveram, respectivamente, Vladimir e Estragon. Lélia Abramo e Maria Yuma eram o senhor Pozzo e o servo Lucky. E Vera Lyma interpretou o mensageiro que, tanto no primeiro como no segundo ato, surgia para dizer que Godot não viria naquela tarde, mas prometia sua chegada para a manhã seguinte. Assim, sucessivamente, dá a entender a espiral do texto.

O Teatro FAAP foi o penúltimo palco na carreira do espetáculo, uma temporada de seis meses que encerrou uma turnê por 17 capitais. Porém, em abril de 1978, ocorreu ainda um final de semana a preços populares no Teatro Municipal de São Paulo, onde o pano caiu de vez para aquela produção conjunta da Companhia Carlos Zara – Edney Giovenazzi, com Eva Wilma, Lilian Lemmertz e Marcos Franco agregados. Observando a linha do tempo, instiga saber que o diretor mal saiu do universo da farsa metafísica e trágica de Beckett e, em setembro de 1978, já trouxe à luz o espetáculo divisor de águas em sua trajetória: o mítico Macunaíma, sua adaptação teatral para o romance homônimo de Mário de Andrade, a saga do herói sem nenhum caráter.

Segundo o pesquisador e biógrafo Sebastião Milaré, o Godot de Antunes “espelhava o momento sociopolítico brasileiro. Referia-se aos discursos oficiais por uma sonoplastia composta por trechos de comícios dos nazistas alemães; a tática corrente da repressão policialesca estava representada por sirenes. Pesava sobre as criaturas beckettianas uma atmosfera hostil e familiar à plateia. Esses dados da violência oficial se contrapunham à busca de outra realidade, que implicava libertação”, apontou em Antunes Filho e a dimensão utópica [Editora Perspectiva, 1994]. A atriz Eva Wilma confirmou esse pendor cívico assumido desde a estreia, em março de 1977, justo em Brasília, no Teatro da Escola Parque. De acordo com ela, a concepção de Antunes associou a espera de Godot à potência de vontade pela volta da democracia. Na biografia de Edla van Steen [Eva Wilma: arte e vida, Imprensa Oficial, 2006), Eva Wilma rememorou: “Minha parceria com Lilian, ela no Estragon e eu no Vladimir, foi muito intensa e afetiva. Era interessante o fato de que a relação dos personagens, Vladimir sempre instigando Estragon para persistir na espera de Godot, que um dia ele viria, tinha certa semelhança com nossas personalidades. Lilian era mais cética do que eu. Eu provocava Lilian e tentava fazê-la acreditar que a felicidade era possível. Oito anos depois que nossos caminhos se separaram, quando ela morreu, fiquei com a sensação de não ter conseguido convencê-la.”

Ruth Amorim Toledo/Arquivo Multimeios CCSP A partir da esquerda Eva Wilma, Lélia Abramo e Lilian Lemmertz em ‘Esperando Godot’, montagem de 1977, dirigida por Antunes Filho, em que todos os papeis foram interpretados por mulheres e confrontava o regime ditatorial no país

Um traço distinto era o da máscara maquiada nos rostos de Eva, Lilian, Lélia, Maria e Vera, a evidenciar a verve clownesca dos personagens – essa perspectiva artesã foi desenhada por Naum Alves de Souza, responsável pelo Curso Livre de Teatro para Crianças e Adolescentes na FAAP e precursor do Grupo Pod Minoga.

A montagem de Antunes rendeu a Lélia Abramo o Prêmio Governador do Estado de melhor atriz coadjuvante. Dona de profundas convicções políticas, ela declarou entusiasmo quando o diretor a convidou a integrar o elenco da peça cujos sentidos filosóficos atinaram com a realidade que o Brasil vivia. Porém, nem as motivações ideológicas diminuíram em Lélia certo pavor diante do desafio de encarar o papel, conforme relata na autobiografia Vida e arte: memórias de Lélia Abramo [Fundação Perseu Abramo/Unicamp, 1994]: “Antunes sugeriu uma inspirada interpretação para Pozzo, conjugando uma forma clownesca com a brutalidade de um ditador e a fraqueza de um vencido, mas no estilo e na forma de como o faria um velho ator do século passado. […] Antunes dirigiu de forma minuciosa, discutindo frase por frase todas as falas do texto. Foi um trabalho exaustivo, mas criador, e resultou em um espetáculo de grande sucesso”.

E como o espectador recebeu a peça em dias de ditadura e tortura? Uma peça que fazia da angústia da espera a sua arte? O crítico Jairo Arco e Flexa, da revista Veja, percebeu assim a tônica existencialista: “Capaz de intercalar suas especulações filosóficas com desconcertantes efeitos de humor terra a terra, Beckett não deixa o texto cair na monotonia. […] Antunes pretende evidenciar que os tormentos das personagens não decorrem de uma ‘condição humana’ entendida como algo abstrato, mas são o resultado do enraizamento do indivíduo em determinadas circunstâncias sociais”.

Impossível sair indiferente de um encontro com Beckett, como leitor ou como espectador. Um dos seus temas recorrentes era e é o fracasso. Esperando Godot foi escrita após a Segunda Guerra e demorou anos para vencer a resistência da crítica, que ainda não tinha antena para a estrutura fora das convenções do drama. Na convergência dos talentos de Antunes e das atrizes, o projeto artístico mostrou o que o ser humano era capaz de fazer, no afã de iludir o outro de que vive. Ou, virando a página, a visão da irrealidade cotidiana que um governo autoritário impôs a um povo.

.:. SANTOS, Valmir. A angústia da espera. In. MATTAR, Denise (org.). Teatro FAAP: a história em cena. São Paulo: Fundação Armando Álvares Penteado, 2010, p. 48-55.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Azul resplendor (2013), em que Eva Wilma contracenou com Pedro Paulo Rangel, Dalton Vigh, Luciana Borghi, Lu Brites, Paula Picarelli e Felipe Guerra. Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas encenaram o texto do peruano Eduardo Adrianzén.

Joao Caldas Fº A atriz paulista Eva Wilma em cena de ‘Azul resplendor’ (2013), projeto que envolveu atores testemunhos do teatro nacional em suas fases moderna e contemporânea, principalmente no trânsito do final da década de 1950 aos anos 1970. Renato Borghi coproduziu e codirigiu Eva Wilma e Pedro Paulo Rangel, dentre outras pessoas no elenco

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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