Crítica
Retinas saturadas pela exposição diante das telas de celular e computador desde meados de 2020, quando artistas cênicos do mundo todo passaram a transmitir seus trabalhos dentro das possibilidades da internet, espectadores chegam ao Teatro Aliança Francesa (SP) como que tateando as poltronas vermelhas, atravessando fileiras em busca do assento indicado no ingresso digital acessado através do smartphone. Os lugares estão espaçados. A luz de plateia é baixa, contrasta a penumbra espessa no palco a ser habitado daqui a pouco pelos atores. Há um pacto não declarado de reeducação do olhar e do sentir, de disponibilidade à experiência que virá. E quis o destino que a primeira montagem presencial do Grupo Tapa, no 18º mês da pandemia, com público reduzido a 52 pessoas, 22% da capacidade da sala, imbricasse arte e realidade com perícia. O espetáculo Um Picasso, direção de Eduardo Tolentino de Araujo para o texto do estadunidense Jeffrey Hatcher, de 2003, cita diversas obras do pintor sem exibi-las, tampouco projetá-las, num claro elogio à força fabular da descrição. Ao passo que também descostura os mecanismos estatais de ocultação e censura à expressão criativa sob regimes totalitários. Daí para a tropa política medieval que está no poder no país e menospreza a cultura, sempre sob a conveniente indiferença do mercado que assiste de camarote ao desastre social, não precisa muito esforço de associação.
Como na fase cubista de Pablo Picasso (1881-1973), Hatcher promove distorções geométricas em aproximações biográficas, históricas e geopolíticas. Sob o salvo-conduto da ficção, o dramaturgo perfila as idiossincrasias do gênio da pintura e as ambiguidades da agente do Estado alemão que tanto reproduz o discurso nazifascista de supremacia sobre demais grupos e indivíduos como expressa consciência da produção de sentidos que a arte é capaz de gerar. O paroxismos funciona como um espasmo em muitos instantes.
Através desses transbordamentos, temos um vasto painel com atuações consistentes na comunicação da narrativa. Não bastasse o fundamento da palavra, traço de excelência em 42 anos de Tapa, Mastropasqua e Carvalho movimentam-se numa dança sutil. Quando postados de costas, vez ou outra, são como quadros virados para a parede, instaurando mais curiosidade e estranhamento a quem observa. Um estímulo a processar as naturezas verbais, visuais e sensoriais desse projeto sempre em perspectiva. Um exercício conciso de razão e beleza em tempos de horror
A despeito da atmosfera pesada – o interrogatório secreto do artista espanhol pela funcionária do Ministério da Propaganda da Alemanha incumbida de queimar alguns de seus desenhos interpretados moralmente como “arte degenerada” –, estamos diante da sofisticação de ideias e do ato de dissuadir. Vale lembrar que, caso não colabore, Picasso será despachado para a sanha sanguinária do general Franco, o mesmo que mandou fuzilar o dramaturgo Federico García Lorca (1898-1936). A ação se passa em 1941, no porão de um edifício na Paris ocupada durante a Segunda Guerra Mundial, local que funciona como um depósito para obras de arte e local de tortura. A peça estabelece um microcosmo a partir das linhas de força das duas personagens, permitindo a quem acompanha fazer correlações temporais e factuais. Um Picasso é obra de 2003 e chega ao público brasileiro – aliás, primeiro texto de Hatcher encenado entre nós – quando ressuscitada a censura às manifestações artísticas, como na ditadura civil-militar (1965-1985).
O procedimento da ausência de luz em arte, sabemos, é distinto do estado de obscuridade em democracias sob ameaça ou já arruinadas. Na abertura e na reta final do espetáculo, o alinhamento de pontos luminosos soa como lampejo, um efeito pictórico. A iluminação de Nicolas Caratori traz tonalidades sombrias, no limite da claustrofobia. Sensação oposta à generosa espacialidade da área de representação, cuja cenografia enxuta corresponde a mesa, cadeiras e armário no centro do palco – essa concepção não é creditada na ficha técnica.
E porque as tramas ficcionais ou da realidade são mais complexas do que aparentam, nem tudo que se diz é o que se pensa. Idem para o que se escreve. Quando fica clara a operação oficial de se obter a autenticação do pintor sobre suas obras confiscadas, o impasse ganha outros contornos. Em 2021, um atalho possível vai para o fenômeno das falsas notícias. Picasso e a antagonista Fraulein Fischer logo baixam as guardas ideológicas e travam excitante jogo de visões a respeito da função da arte, seus paradigmas de relevância formal e temática, e em que medida incide sobre a sociedade. É aqui que as gradações de temperamento e de caráter se revelam mais conflitivas, reivindicando dos atores as nuances do ardil.
Sergio Mastropasqua e Clara Carvalho dão a ver as vozes do mito e do regime, do artista e da crítica, do homem e da mulher desejantes. Esses binarismos estão longe de refletir a dimensão dos assuntos e emoções percorridos. Os atores compõem seus papeis com as oscilações que o texto pede: momentos de tensão e de eloquência presentes na respiração, gesto e olhar. São mútuas as interpelações, as intervenções e as seduções, estas denotadas pela intimidade na troca de cigarros, no uso recíproco do chapéu dele e no clássico pedido para a musa posar para um retrato.
Como substrato, dois exemplos bem-acabados dessa dramaturgia que convida leitores/espectadores a irem além das primeiras pinceladas: a questão do significado político de Guernica (1937), abordagem da qual o pintor se esquiva quando se trata de uma das criações mais emblemáticas do século XX, mural concebido sob o dramático impacto do bombardeiro alemão sobre a cidade espanhola de mesmo nome, matando 1.654 moradores; e a análise crítica nada pernóstica que um e outro se provocam a propósito dos desenhos sob o crivo da incineração, com ele chegando mesmo a cobrir os olhos com venda – “O significado está no olhar do crítico”, diz ela, sentença que pode ser escutada, também, como uma delegação relativa. Lá pelas tantas, o próprio Picasso posa de iconoclasta, humor corrosivo, ao elencar rivalidades no circuito das artes plásticas, na esteira do modernismo, e a desdenhar dos maus bocados vividos pelo poeta e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880-1918), que se debruçou conceitualmente sobre sua produção artística – mais que como amigo de longa data, como seu alter ego. Uma reação típica de personalidade autocentrada.
Através desses transbordamentos, temos um vasto painel com atuações consistentes na comunicação da narrativa. Não bastasse o fundamento da palavra, traço de excelência em 42 anos de Tapa, Mastropasqua e Carvalho movimentam-se numa dança sutil. Quando postados de costas, vez ou outra, são como quadros virados para a parede, instaurando mais curiosidade e estranhamento a quem observa. Um estímulo a processar as naturezas verbais, visuais e sensoriais desse projeto sempre em perspectiva. Um exercício conciso de razão e beleza em tempos de horror.
Com a crise sanitária em curso, a equipe carrega a memória da impossibilidade do teatro com a presença de público, parcialmente permitida na fase atual do estado. Durante um ano, de abril de 2020 a abril de 2021, Eduardo Tolentino de Araujo enunciou, através das redes sociais de seu grupo, a série de postagens “Tapa indica”, elencando espetáculos, coreografias e filmes exibidos nas programações online de companhias ou instituições, em sua maioria europeias. Uma curadoria diária, feita com determinação pelo diretor e convidados como a atriz e bailarina Mariana Muniz e o tradutor e diretor Alexandre Tenório. O próprio núcleo teatral em tela enveredou pelo território virtual. Portanto, essa travessia contamina o reencontro vivo com artistas a elucubrarem acerca dos poderes da arte, do pensamento, da política e da condição humana.
.:. Tolentino teve seu primeiro contato com o texto de Hatcher ao dirigir uma montagem com a Companhia de Teatro de Braga no ano de 2014, em Portugal, e dirigiria nova versão no primeiro semestre de 2020 pelo Tapa, porém o projeto foi interrompido com a pandemia. A encenação portuguesa pode ser vista na íntegra aqui, com interpretações de Solange de Sá (Fraulein Fischer) e Rui Madeira (Pablo Picasso). Em 2017, a produção participou do Festival Yeso-Luso – Mostra de Teatro em Língua Portuguesa com duas sessões no Sesc Ipiranga (SP).
Serviço:
Um Picasso
Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 11 3572-2379)
Quinta a sábado, 20h, e domingo, 17h. Até 26 de setembro.
R$ 40 e R$ 20, quinta e sexta; R$60 e R$30, sábado e domingo. Ingressos vendidos exclusivamente pela internet: https://grupotapa.com.br
80 minutos
14 anos
52 lugares + 4 para pessoas com necessidades especiais
Ar-condicionado
Estacionamento conveniado à rua Rego Freitas, 285.
Mais informações: https://grupotapa.com.br
Protocolos de segurança:
Abertura da plateia meia hora antes do espetáculo;
É imprescindível o uso de máscara no teatro antes, durante e após o espetáculo;
Monitoramento do uso de máscaras através das câmeras de segurança;
Álcool em gel estará disponível para o público;
Equipe do espetáculo (inclusive elenco) não receberão o público no saguão antes ou depois do espetáculo.
Quem for pedir carros de aplicativos/táxi, poderá esperar na plateia para não aglomerar em frente ao teatro.
Ficha técnica:
Texto: Jeffrey Hatcher
Direção: Eduardo Tolentino de Araujo
Com: Sergio Mastropasqua e Clara Carvalho
Assistente de direção: Ariel Cannal
Iluminação: Nicolas Caratori
Redes sociais: Bianca Nóbrega
Design gráfico: Mau Machado
Costureira: Judite Lima
Alfaiate: Miguel Arrua
Adereços: Jorge Luiz Alves
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes
Assistente de produção: Rafaelly Vianna
Direção de produção: Ariel Cannal
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.