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Crítica

Assentamento de corpos, ideias e ritos

4.6.2022  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Weslei Barba

Quando a dona de casa Romana fica sabendo da prisão de seu companheiro em Eles não usam black-tie (1958), ela não tem dúvidas. Tira o avental e ruma para a delegacia a fim de libertar Otávio, uma das lideranças na greve dos trabalhadores de uma fábrica carioca nos anos 1950. “Eu sô mulher dele, num sô? Eu vou lá! Meu marido preso, quem é que cuida disso aqui? Eu vou já!”, afirma a moradora de uma favela no morro. Em seguida, a namorada de seu caçula, Terezinha, irrompe dizendo que a molecada da rua pisou e sujou toda a roupa estendida. “Se eu pego um desses moleques eu torço o pescoço. Terezinha, meu anjo, vem cá! Tu dá um jeito na roupa pra mim, dá uma enxaguada. Depois, tu põe o feijão no fogo mais o arroz, tá bom? Eu vou até a polícia”. E vai para uma unidade do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, órgão do Estado que praticava repressão e tortura a movimentos sociais e militantes políticos. “Vamo depressa se não ele entra na pancada! Cuida do feijão, Terezinha, fogo baixo!”, continua. Num exercício de imaginação, Romana seria mais uma Maria entre Maria Das Dores e Maria Dos Prazeres, as irmãs gêmeas de CÁRCERE ou Porque as mulheres viram búfalos, espetáculo mais recente da Companhia de Teatro Heliópolis, a CTH.

A ponte entre as duas peças decorre das personagens Romana (atuada por Lélia Abramo no Arena e por Fernanda Montenegro no filme de Leon Hirszman) e Maria Dos Prazeres (por Dalma Régia). As mulheres separam feijões sobre uma mesa, a primeira numa cozinha e a segunda, em espaço indefinido, porém propício ao mesmo cômodo dada a natureza da tarefa. Em Romana, trata-se da cena final, olhos marejados em meio à cata, um silêncio rumoroso e indignado pela morte de Bráulio, militante negro assassinado durante uma manifestação de operários, papel interpretado no longa-metragem por Milton Gonçalves, morto no último 30 de maio. Em Maria dos Prazeres, o gesto doméstico – que não está no texto original, mas brotou como dramaturgia de cena, por assim dizer – ratifica ainda mais o pessoal e o político à medida que a personagem-tia-artista-negra-Régia transforma os próprios pensamentos em explosão física ante as violações de direito que enfrenta desde que se conhece por gente, cidadã faxineira e manicure confrontada a todo tipo de preconceitos por cor de pele, classe social e condição de mulher. Sua fala culmina num arrebatado manifesto que entrecorta versos de Navio negreiro (1870), poema do antiescravagista Castro Alves.

As capacidades de tensionar parte do imaginário de quem vive na favela de Heliópolis, zona sudeste da capital paulista, diuturnamente submetido a múltiplas formas de violência; de visibilizar e problematizar a entrega incondicional de mães, irmãs, namoradas, noivas, companheiras e toda sorte de laços femininos para com homens apinhados no sistema prisional e que cruzaram ou se tornaram extensões dos caminhos delas; e de relacionar a concretude dessas forças humanas femininas incomensuráveis à simbologia das tradições afro-brasileiras, tornam essa experiência um conjunto de proporções artísticas radicais diante de situações tão abismais quanto seculares

Uma das proezas do trabalho de Dione Carlos, dramaturga convidada, está em colocar-se no mesmo ritmo dos passos do grupo nos campos estético, social, histórico e político. A parceria inédita, contudo, parece não se traduzir em ausência de fricções. Do contrário, não chegaria aos três planos da narrativa disposta em fragmentos. Composição que gera certo estranhamento de partida e, não demora, determina fluxo próprio à altura da ambição do projeto.

Na casa de alvenaria na favela, em traços realistas, Maria dos Prazeres, Maria das Dores (Jucimara Canteiro) e a afilhada da primeira, Mocinha (por Priscila Modesto), tecem desejos, sinas e outras consciências do passado, do presente e do destino que reivindicam para si. A injustiça que mais as mobilizam no momento é a prisão de Gabriel (por Danyel Freitas), filho de Das Dores, estudante de desenho acusado de crime que não cometeu. Voltava da escola quando foi abordado pela polícia sob alegação de roubo de celular e reconhecido por uma vítima através de sua foto em rede social.

Vem do presídio masculino, portanto, o segundo plano discursivo e pleno de coralidade, massa corporal formalizada em imagens que expressam a lei não escrita da palavra, capaz de decepar a cabeça de inimigo de facção, interditar a vida das mulheres que lhes conferem amor incondicional ou ainda se revelar um carrasco ao servi-la como “moeda de troca” num ignóbil estupro coletivo. Por entre celas e ferrolhos de portas trancadas atrás de si, detentos e funcionários como enfermeiro e carcereiro compartilham o cotidiano em que a função ressocializadora é perpetuamente sabotada, num jogo de faz de conta das atribuições dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

A contrabalancear ou, melhor, a interpor resistência a esse estado de coisas, o terceiro plano, mas não menos importante, deriva dos antepassados, das forças sábias e iniciáticas evocadas de práticas culturais dos povos de terreiro ligados a comunidades religiosas de matrizes africanas, a exemplo do candomblé e da umbanda.

Weslei Barba A atuante Dalma Régia na cena de ‘CÁRCERE ou Porque as mulheres viram búfalos’, sob direção de Miguel Rocha e dramaturgia de Dione Carlos, artistas convidada: lembrança da cena de catar feijão em ‘Eles não usam black-tie’ (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, levada ao teatro e ao cinema

Sob a perspectiva ampliada das ancestralidades, os percursos de Dione Carlos e da CTH mostram-se afluentes. Nos últimos anos, suas criações diagnosticaram realidades brutais zelando pelo lugar de pertença, de representatividade, de autoestima pelo que se é, por onde se vive ou de onde se vem. E assim abriram-se a territorialidades poéticas outras, como num processo de desinterdição do banzo, de expurgo da inação.

Neste sentido, as figuras do orixá feminino Iansã/Oyá, pela criança Isabelle Rocha e, em sua transformação como mulher búfalo, de atribuição divina, por Régia, potencializam um já é/vir a ser mitológico vinculado à África e não ao chamado berço da Grécia Antiga, como reza a tradição dos palcos ocidentais, conquanto as bases trágicas se aproximem (a lembrar que na etimologia de tragédia está “o canto do bode”). Na definição do Bando, no prólogo: “Dizem que Ela é capaz de se transformar em búfalo. Dizem que Ela entrega os chifres do animal nas mãos de suas filhas para que elas batam um chifre contra o outro. Esse é o sinal de que estão em perigo. É quando Ela vem em socorro. Dizem que Ela é capaz de se transformar em borboleta”. Essa dimensão sagrada é chamada a intervir pelas mulheres da peça. Eurípides dotou a feiticeira Medeia de forças ocultas e astúcia para encarar Jasão e a opressão da monarquia. Shakespeare escalou três bruxas para guiar o futuro de Macbeth. CÁRCERE circunscreve um chão afro-latino-americano de aflições comuns nas geopolíticas dessas regiões da periferia do capitalismo – também.

As capacidades de tensionar parte do imaginário de quem vive na favela de Heliópolis, zona sudeste da capital paulista, diuturnamente submetido a múltiplas formas de violência; de visibilizar e problematizar a entrega incondicional de mães, irmãs, namoradas, noivas, companheiras e toda sorte de laços femininos para com homens apinhados no sistema prisional e que cruzaram ou se tornaram extensões dos caminhos delas; e de relacionar a concretude dessas forças humanas femininas incomensuráveis à simbologia das tradições afro-brasileiras, tornam essa experiência um conjunto de proporções artísticas radicais diante de situações tão abismais quanto seculares.

O sincronismo em fazer a narrativa trilhar vias míticas e realistas, em tese diametralmente opostas, resulta em polifonia crítica. E autocrítica. O texto questiona o lugar do pai, invariavelmente ausente; a superproteção da mãe, não só aquela que pariu. “Quem são essas mulheres que estão nos fóruns implorando por ajuda? Quem são essas mulheres invisíveis que ficam na porta das cadeias? Quem são as mulheres que estão nas cadeias públicas? Onde estão os filhos e filhas das mulheres encarceradas? Quem cuida dos filhos e das filhas das mulheres que cuidam dos filhos e das filhas da elite brasileira ou dos profissionais liberais? Quem cuida de quem cuida?”, indaga a Voz de Mulher.

A temporada coincidiu com o lançamento do livro Giras épico-poéticas nas obras-quilombola, em processos de empoderamento – e não apenas – negro, da Companhia de Teatro Heliópolis: 20 anos de belezas e/em lutas (Scarlet Editora, 2022), do professor e pesquisador Alexandre Mate (Unesp). Sua leitura permite multiplicar as percepções do espetáculo, as ideias inexoráveis às biografias nele implicadas. “A Companhia de Teatro de Heliópolis é/foi formada por gente dos Nordestes brasileiros; por gente que, sem-lugar, fosse por necessidade, solidariedade ou afetividades, teve de construir algo assemelhado à moradia para sobreviver; gente que de restos de materiais e muito sacrifício, aos poucos foi erigindo obras que desafiavam e desafiam a gravidade e as leis/normas arquitetônicas; gente que vive em território paralelo com leis próprias; gente que tem formado uma comunidade construída a tapas e, quase sempre, por meio de mutirões…”, anotou Mate, para quem as obras do grupo, “ao aquilombarem-se esteticamente, têm invadido – e não apenas de beleza estética – a existência histórica de quem sabe que não é possível haver democracia sem a construção inquieta e permanente contra os esquecimentos.”

Weslei Barba Jefferson Matias, à esquerda, e Davi Guimarães numa das cenas no plano do presídio

Um dos colaboradores da CTA, o dramaturgo e pesquisador Evill Rebouças, autor de Sutil violento (2017) e (In)justiça (2019), sempre concebidos em colaboração com pares da cena, assim compreende o pedaço da gente que conheceu e onde pisou em ruas, becos e vielas. “Bairro educador. Microviolências naturalizadas. Justiça legal e paralela. Esses temas pulsam em Heliópolis e na Heliópolis, por isso foram eleitos como disparadores principais para a criação dos espetáculos em que assinei a dramaturgia. Não se trata de esculpir uma peça de teatro, mas de catalisar as vozes e corpos que ecoam em Heliópolis, e dada a aproximação com a comunidade, é possível ouvi-las, senti-las e impregná-las às dramaturgias da cena”.

Por falar em (In)justiça, o personagem oculto da história, Cerol, rapaz negro submetido a julgamento por crime involuntário, respinga no também fictício caso de Gabriel da Silva de Jesus em CÁRCERE, cujo nome puxa da memória o cacique da tribo Pataxó Hã-hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos, queimado por cinco rapazes enquanto dormia numa parada de ônibus de Brasília, em 1997. Os assassinos queriam “brincar”. Ou, ainda agora, Genivaldo de Jesus Santos, assassinado com gás de pimenta e gás lacrimogêneo no porta-malas de uma viatura das forças da Polícia Rodoviária Federal, em Sergipe, no mês passado.

A obra anterior foi regida pelo arquétipo de Xangô, como que complementar a Iansã na peça seguinte. “Nossos corpos são assentamentos”, celebra/resiste o Bando logo na abertura de CÁRECERE, feito uma senha.

.:. Leia a crítica da jornalista e pesquisadora Mariana Queen Nwabasili para a mesma obra, Ritos de prisão e feminina proteção

Serviço:

CÁRCERE ou Porque as mulheres viram búfalos

Casa de Teatro Mariajosé de Carvalho, sede da Companhia de Teatro Heliópolis (Rua Silva Bueno, 1.533, Ipiranga, tel. 11 2060-0318)

Sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. De 12 de março a 5 de junho de 2022

Ingressos: Pague quanto puder (público em geral) e grátis (estudantes e professores de escolas públicas).

Weslei Barba Atores e atrizes criadores da Companhia de Teatro Heliópolis

Ficha técnica:

Encenação: Miguel Rocha

Assistência de direção: Davi Guimarães

Texto: Dione Carlos

Elenco: Antônio Valdevino, Dalma Régia, Danyel Freitas, Davi Guimarães, Isabelle Rocha, Jefferson Matias, Jucimara Canteiro, Priscila Modesto e Walmir Bess

Direção musical: Renato Navarro

Assistência de direção musical: César Martini

Musicistas: Alisson Amador (percussão), Amanda Abá (violoncelo), Denise Oliveira (violino) e Jennifer Cardoso (viola)

Cenografia: Eliseu Weide

Iluminação: Miguel Rocha e Toninho Rodrigues

Figurino: Samara Costa

Assistência de figurino: Clara Njambela

Costureira: Yaisa Bispo

Operação de som: Jéssica Melo

Operação de luz: Viviane Santos

Cenotecnia: Leandro Henrique

Provocação vocal, arranjos e composição da música do ‘manifesto das mulheres’: Bel Borges

Provocação vocal, orientação em atuação-musicalidade e arranjos – percussão ‘chamado de Iansã’ e poema ‘Quero ser tambor’: Luciano Mendes de Jesus

Estudo da prática corporal e direção de movimento: Érika Moura

Provocação teórico-cênica: Maria Fernanda Vomero

Provocações: Bernadeth Alves

Comentadores: Bruno Paes Manso e Salloma Salomão

Provocação de performatividade: Carminda Mendes André

Mesas de debates: Juliana Borges, Preta Ferreira, Roberto da Silva e Salloma Salomão

Orientação de dança afro: Janete Santiago

Designer gráfica: Camila Teixeira

Fotos: Weslei Barba

Assessoria de imprensa: Eliane Verbena

Direção de produção: Dalma Régia

Produção executiva: Davi Guimarães, Miguel Rocha e Leidiane Araújo Idealização e produção: Companhia de Teatro Heliópolis

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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