18.7.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 18 de julho de 1996. Caderno A – capa
Só uma atriz com a maturidade de Marília Pêra atinge a dimensão artística e humana da soprano Maria Callas em “Master Class”
VALMIR SANTOS
Um dos grandes desafios da interpretação teatral está nos personagens mitificados pelo tempo. Paulo Autran, por exemplo, esperou “amadurecer” para encarar Rei Lear. Dificilmente se encontraria no Brasil um atriz à altura de Marília Pêra para encarnar no palco a diva Maria Callas. Em “Master Class”, a magnitude da primeira e a ressonância histórica da Segunda acabam se harmonizando. O resultado é a dimensão artística elevada à sua condição maior.
Tudo está centralizado na palavra e no gesto da soprano. Mesmo para quem não conhece Maria Callas, seu lado pessoal e artístico chega, ao público de maneira envolvente, emocionante.
“Master Class”, ou “aula magna”, como queria a tradução de Millôr Fernandes para o texto do norte-americano Terrence McNally, reproduz as aulas ministradas por Callas entre 1971 e 1972, em Nova York. (leia texto abaixo)
Nesses encontros, “La Divina” transmitia uma síntese do seu trabalho, marcado pelo rigor absoluto. Desde a postura corporal até a “filosofia” da arte do canto, Callas era irretocável. Escolada pela vida amorosa emaranhada, ela dispensa o psicologismo gratuito.
Essências e perfeição eram metas perseguidas – e não raras vezes alcançadas.
A platéia era frequentada por nomes como Franco Zeffirelli e Plácido Domingo. Daí a peculiaridade do encontro, mais para um espetáculo. Irônica, sagaz, dona de personalidade marcante e condenada a fazer aflorar sentimentos entranhados, no palco e fora dele, a Maria Callas que Marília Pêra apresenta depõe a favor das fortes emoções.
Jorge Takla, o diretor, deixa a atriz com as “máscaras” e a “nudez” da soprano. Nas suas interfaces (a autoritária, a sentimental, a neurótica, enfim) fica difícil aplicar o rótulo. É a Callas humana, conduzida pelos deuses da cena, que nos chega. Tão frágil e forte, uma artista arrebatadora.
Em “Master Class”, por mais que o humor pontue as cenas, algumas deliberadamente abertas, é impossível dissociar a figura da mulher atrás da artista. É um libelo ao canto, ao mesmo tempo em que abraça o direito de levar a emoção às últimas conseqüências.
Bravo, Marília Callas!
Cecília Sofia Anna Maria Calogeropoulous, filha de imigrantes gregos, nasceu em Nova York em 2 de dezembro de 1923. O amor pela música surgiu cedo. Aos 4 anos, extasia-se ao som de uma pianola mecânica; aos 8 já interpreta melodias ao piano; e aos 10 canta árias de “Carmem”. Aos 15 anos faz sua estréia no papel de Santuzza de “cavalleria Rusticana”, em Atenas.
Sua grande oportunidade surge em 1942. Substitui uma soprano da Ópera Real, no papel de Tosca. Casa-se com o industrial Giovanni Battista Meneghini, rico e 30 anos mais velho.
No Scala, seu lar artístico por uma década, conhece Luchino Visconti, que a dirige em cinco óperas. Ela sempre declarou que Visconti lhe ensinou “a arte de representar”.
Em 1953, perde 35 quilos. Fica elegante, linda e atraente. Seis anos depois, separa-se de Manghini e torna-se pública a sua relação amorosa com o armador grego Aristóteles Onassis, um dos homens mais ricos do mundo. Totalmente apaixonada, Callas dedica grande parte do seu tempo à intensa vida social, festas, iates, afastando-se do canto, prejudicando sua carreira e voz.
Tempos depois, Onassis casa-se com Jacqueline, viúva de John Kennedy. Diante de tal rejeição, Callas volta ao palco em 1973. Não recupera a paixão de viver, lutar e criar. Isola-se em seu apartamento, em Paris, onde morre de parada cardíaca em 16 de setembro de 1977, pouco depois da morte de Onassis, grande amora e última esperança.
“Jennifer” reflete sobre criação do ator e violência
O processo de criação de um personagem demanda suor que o público, em sua maioria, não se dá conta. Proporcionar emoção todas as noites não é fácil. O grupo Proteu, de Londrina, está em cartaz na Capital com “Jennifer – O Amor É Mais Frio Que a Morte”, montagem na qual a metalinguagem, o teatro dentro do teatro, permite uma noção da vertigem do ator diante da criação.
Não bastasse a contundência do texto de Randy Buck e, claro, o espírito libertário do cinema alemão Rainer Werner Fassbinder (1955-1982), a peça brinda o espectador com os “laboratórios”, como são chamados os ensaios.
Roberto Lage, convidado pelo Proteu, converge com a proposta estética do grupo paranaense. A concepção de “Jennifer” prioriza a organicidade; a palavra como extensão da movimentação física. A violência causada pela superestrutura das sociedades é mimetizada por Buck em seus personagens. As relações são atritosas, mesmo quando justificadas pela bandeira amorosa. A temática, como se vê, é essencialmente fassbinderiana. Os 43 filmes do ceneasta deixam explícito sua intenção de jogar holofotes sobre o lado escuro do ser humano.
O choque diante da montagem não é gratuito. O palavrão, a lascívia, o beijo “que ousa dizer seu nome”, enfim, tudo conspira para a poesia nua e crua. O porão do Centro Universitário Maria Antonia e a iluminação, com um quê cinematográfico, acentuam o clima “bas-fond”, onde personagens transitam em meio a sacos de lixo.
“Isso aqui não é velório, é teatro”, brada Jennifer (Maria Fernanda Coelho) – no texto do autor norte-americano o protagonista é um homem, encarnado por uma atriz na versão brasileira.
É o tipo de diretor, de certa forma estereotipado pelo tempo, que quer distanciamento brechtiniano, psicologismo stanislavskiano e o escambau são desprezados em nome de uma “verdade interpretativa” que rompe o tênue fio que separa vida e palco.
Tal dualidade está representada nas figuras de Margot (Viviane Eloy) e da própria Jennifer. A primeira deixa o teatro amador (fez “Senhorita Júlia”) e mergulha no inferno pessoal se apaixonando pela diretora. Pura submissão. Fassbinder ofusca Strindberg.
Ao buscar o sentimento, nem que seja pela via da dor, o espetáculo instiga pela sinceridade e força com que é interpretado pelos jovens do Proteu.
Jennifer – O Amor é Mais Frio do que a Morte – De Randy Buck. Direção: Roberto Lage. Com grupo Proteu (Paulo Braz, Viviane Eloy, Regina Fonseca, Valéria Victório, Remir Trautwein, Cacá Scolari, Roni Lima e Maria Fernanda Coelho). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Centro Universitário Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, tel. 255-5538). R$ 12,00 e R$ 6,00 (estudantes). Até dia 28.
13.6.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 13 de junho de 1996. Caderno A – capa
VALMIR SANTOS
Em seu encerramento, no último fim de semana, o Festival Internacional de Londrina (Filo) registrou lotação em todas as apresentações do grupo argentino De La Guarda. Houve muita expectativa em torno do espetáculo “Período Villa Villa”, com acentuação nos números aéreos – atores suspensos entrecruzando o espaço do ginásio de esportes da cidade paranaense.
O trabalho do De La Guarda remete imediatamente ao do grupo catalão La Fura Del Bals (“Suz/o/Suz” e “M.T.M.”), caracterizado pela representação interativa com o público. Assistir a um espetáculo do La Fura é um convite ao experimento das sensações humanas em seus limites. Seus atores se utilizam, por exemplo, de situações de violência simulada, nas quais o espectador vê sua condição passiva diminuída diante da fúria sonora e visceral. Não raro, sai-se de uma apresentação ensopado d’água, com respiração ofegante e a sensação de que esteve no olho de um furacão.
Com os argentinos, a aventura não é menos empolgante. São atores, dançarinos, músicos, acrobatas e alpinistas. Transformam 75 minutos de descargo de adrenalina.
Quatrocentas pessoas se concentram em pé num espaço pequeno, corpo a corpo. Uma espécie de antecâmara, na qual são submetidas a paisagem visual no teto que lembra efeitos lisérgicos. De repente, o colorido se dissipa e surgem os homens dependurados em cordas.
As paredes de pano caem e o público se vê como que diante da placenta. Daí em diante, é emoção literalmente suspensa. Homens e mulheres, como ioiôs, se aproximam das cabeças abaixo e, em seguida, lançam-se para o alto. A ocupação também se dá no espaço do chão, com muita correria e música. A trilha é executada ao vivo, com tambores rítmicos pulsando do início ao fim. O grupo, claro, cuidou de vender seu CD na saída.
“Período Villa Villa” não quer testar o espectador. Seu laboratório, ao contrário, convida-o para a viagem coletiva, onde o medo e os impactos sensoriais também se convertem em prazer – estético até. Os diretores Diqui Jares e Pichon Baldinu, mais os seis atores-dançarinos e o diretor musical Gaby Kerpel revelam um entrosamento fora do comum (o risco da vida passa despercebido), apesar de apenas três anos de convivência.
Outro espetáculo acompanhado por O Diário foi “Carmem Fúnebre”, com o grupo de teatro de rua polonês Biuro Podrozy. Utilizando-se de pernas-de-pau, holofotes e fogo – a encenação acontece à noite -, trata-se de uma história tocante; um retrato do mundo contemporâneo onde conflitos esparsos configuram praticamente uma terceira guerra, e sem fim.
A guerra da Bósnia e outros enfrentamentos étnicos, mais a onda nacionalista e intolerante que vem pipocando na nova ordem mundial (vide o deputado ultradireitista Jirinovsky, na Rússia), são as principais abordagens do espetáculo.
Texto, figurino e a concepção geral de “Carmem Fúnebre” surgem dos próprios atores, dirigidos por Pawel Szotak, que fundou o grupo seis anos atrás. Atualmente, o Biuro é considerado um dos destaques do teatro alternativo na Polônia.
O enredo surgiu a partir de depoimentos de ex-refugiados. A encenação ritualística, com a presença da Morte, celebra a crueldade. A cena dos soldados mutilados, com os atores em pernas-de-pau, simulando muletas, cegos mendigando moedas, enfim, é um quadro aterrorizante. O silêncio, a frieza do cenário emaranhado de ferro, o vigor da interpretação do elenco jovem e totalmente entregue, fazem de “Carmem Fúnebre” um estado de luto anunciado com esperança na humanidade; pois paradoxismo tem sido seu principal movimento ao longo da história.
Na dança, o destaque foi a companhia do norte-americano David Dorfman. Há cerca de dois anos, o Movimento da Dança, projeto do Sesc em São Paulo, enfocou o dueto. O que se viu em Londrina foi uma exploração criativa e exaustiva dessa modalidade.
Em “approaching no calm couting laughter”, “Horn”, “Bull” e “Sky Down”, Dorfman trabalha complementariedade e oposição dos gestos e movimentos. Mais que isso, tenciona a relação palco-platéia com mira apontada para a sociedade, quando aborda o preconceito homossexual.
Dorfman costuma dizer que é um atleta que se transformou em dançarino. Isso fica patente em suas coreografias. Os corpos são bastante exigidos e a respiração é precisa. O casamento entre a fisicalidade e a leveza plástica fazem dos seus trabalhos um campo fértil para a arte da dança.
Ao todo, 17 grupos estrangeiros e quatro brasileiros participaram do 9° Festival Internacional de Londrina. Organizado por Nitis Jacon há 25 anos (teve sua edição nacional ampliada), o evento continua mantendo sua condição bienal de um dos principais painéis da cena internacional no Brasil.
6.6.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 06 de junho de 1996. Caderno A
Na 9ª edição, Festival Internacional de Teatro reúne 17 grupos estrangeiros na cidade paranaense, até o próximo domingo
VALMIR SANTOS
Apesar do recuo de última hora do seu principal patrocinador – o Bamerindus -, o Festival Internacional de Londrina (Filo) superou dificuldades e traz à tona a sua 9ª edição. Desde 28 de maio, até o próximo domingo, 17 grupos estrangeiros, além de quatro companhias brasileiras, estão se apresentando na cidade paranaense. São espetáculos de palco e de rua.
Para os últimos quatro dias do evento, estão programados os grupos Jácara (Espanha, com “El Aumento”; François Kahn (França/Itália), “La Veduta di Delt”; De La Guarda (Argentina), “Período Villa Villa”; Ilotopie (França), “La Gens de Couleurs”; Biuro Podrózy (Polônia), “Carmem Funebre”; David Dorfman Dance (EUA), com várias coreografias; Flash Marionettes (França), “La Cour de Tous les Miracles”; Camaleó (Espanha), “Medusa”; e a atriz brasileira Márcia Duarte, “Reta do Fim do Fim”. O Diário entrevistou algumas atrações, por escrito.
A companhia de David Dorfman chega com a bandeira da vanguarda norte-americana. Foi fundada há dez anos. O coreógrafo de define como um atleta transformado em dançarino. Combina “arriscados movimentos atléticos com um delicado vocabulário gestual”.
Dorfman não vê com tanta definição a divisão entre a dança e a prática esportiva. “Ambos têm seu objetivo”, acredita. O atleta quer vencer. No palco, o ator-bailarino quer comunicar-se. “Na tentativa de alcançar esses objetivos, são atraídos pelo movimento puro, honesto, econômico, detalhado, explosivo, passional e revelador”, enumera o coreógrafo. “Quando isso acontece com atletas ou atores dançarinos, é muito expressivo”. Traz cinco coreografias.
O grupo russo Derevo já foi rotulado pela crítica como trabalho de “butô”, “teatro silencioso”, “nova dança”, “teatro da crueldade”, entre outras definições. Segundo a produtora, Maria Zagar, é uma situação comum. Tudo começou em 1988, numa proposta que se opunha ao método stanislaviskiano. É um processo que tem muito a ver com a linguagem do clown, com a fisicalidade, a pantomima”, diz.
Seus atores só conheceram Kazuo Ohno, o criador do butô. Há cerca de dois anos. “Temos muito do cômico, absurdo, grotesco, com muita associação visual”, descreve. A miscelânea é um campo fértil para a criação, mas também constitui empecilho em se tratando de mercado. A não-especificidade nem sempre é bem aceita por causa do “cabresto” da expectativa de público. Em “The Rider”, o Derevo conta a história tragicômica de um velho palhaço, em suas últimas horas de vida.
Um dos destaques do Filo 96 é a trupe argentina De La Guarda, que faz do espaço cênico a sua principal razão de ser. Em “Período Villa Villa”, espetáculo que encena pela primeira vez no Brasil, utiliza vários recursos. O De La Guarda esteve no Brasil, no final de 1994, participando do projeto “Ópera Mundi – Um Sonho Bom”, encenado no Maracanã.
A recorrência mais imediata, em se tratando de proposta cênica, são as performances do grupo catalão La Fura Dels Baus, também conhecido do público brasileiro.
Gabriella Balberio, uma das atrizes do De La Guarda, afirma que as semelhanças entre seu grupo e o La Fura estacionam em alguns elementos em comum. Exemplo: o grupo argentino busca a ocupação total do espaço (não necessariamente teatro), enquanto o catalão se baseia principalmente no chão e no alto. “Compará-los é como comparar Shakespeare a Beckett”, ironiza Gabriella, referindo-se aos dramaturgos inglês (clássico) e irlandês (contemporâneo). Outro detalhe: ao contrário da La Fura, o De La Guarda não estiliza a violência na relação com o espectador.
Entre os eventos paralelos, acontecem os workshops com os próprios encenadores participantes, como o português João Fiadeiro, o americano David Dorfman e a brasileira Maura Baiocchi, especializada na dança butô.
O Filo 96 também abriga, neste fim de semana, reunião com o chamado Grupo dos 11. São personalidades do meio teatral brasileiro que vão discutir melhorias nas leis de incentivo à cultura.
30.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 30 de maio de 1996. Caderno A – capa
Em “A Arte Secreta do Ator”, Eugenio Barba e equipe realizam pesquisa sobre as bases da interpretação
VALMIR SANTOS
Um elemento tem passado incólume ao longo da história das artes cênicas: o ator. A humanidade assistiu à anulação do texto, da cenografia, da música, a “derrubada” da Quarta parede, enfim, às várias possibilidades antiteatrais que, ao cabo, têm lá sua essência. A presença física do ator, porém, sempre esteve arraigada no palco de todos os cantos do planeta. “A Arte Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral”, recém-lançado em conjunto pelas editoras Hucitec e Unicamp, surge como uma colaboração preciosa para o entendimento da evolução da interpretação.
Escrito pelo italiano Eugenio Barba, um dos proeminentes teóricos da atualidade – fundador do célebre grupo dinamarquês Odin Teatret (1954) e discípulo do polonês Jerzy Grotowski-, não se trata de obra com bula definitiva sobre como subir ao palco e fazer o teatro vir à baixo, como se diz dos talentos que arrebatam.
Ao contrário, “A Arte Secreta” do título o continuará sendo, porque a própria concepção do trabalho é a de que a margem para a criação teatral, no que ela tem de profundamente humana, é infinita. Daí, sua riqueza.
Barba, em conjunto com o também pesquisador Nicola Savarese, mais a equipe de pesquisadores ligados à Escola Internacional de Antropologia Teatral (Ista, sigla em inglês), fundada por ele na Dinamarca (1979), trazem à tona desde conceitos básicos sobre anatomia até os fundamentos de energia, por exemplo, quesito que envolve questões físicas, biológicas e espirituais.
Os russos Constantin Stanislaviski, o alemão Bertolt Brecht, o belga Vsevolod Meyerhold, os franceses Etiene Decroux e Antonin Artaud – todos mortos – ou a dançarina indiana Sanjuka Panigraghi, que há poucos anos participou do Festival Internacional de Londrina, são exemplos de nomes seminais do teatro e da dança mundial.
Aliás, uma observação reveladora: ao longo das 272 páginas, a expressão ator-bailarino aparece o tempo todo. A representação e o movimento estão umbilicados – um, invariavelmente, como extensão do outro.
O subtítulo, “Dicionário de Antropologia Teatral”, reflete o conteúdo. O livro traz uma introdução de Barba, como que costurando os assuntos a serem abordados. Em seguida, em ordem não necessariamente alfabética – cenografia, por exemplo, vem antes de técnica -, desponta um verdadeiro passeio-deleite pelo universo da interpretação.
São meandros normalmente restritos ao âmbito da pesquisa do ator, que o público em geral desconhece e pouco se dá conta do tamanho da empreitada.
Dilatação, dramaturgia, equilíbrio, equivalência, historiografia, mãos, montagem, nostalgia, olhos e rosto, omissão, oposição, pés, pré-expressividade, restauração do comportamento, ritmo, técnica, texto e palco, treinamento e visões constituem os demais tópicos abordados. Como se vê, são termos ora pinçados pela razão, ora organizados sob o plano da subjetividade, da intuição peculiar do ator-bailarino.
Com o amparo de belas ilustrações e fotos (algumas coloridas), preenchendo boa parte das páginas, e um texto pouco contaminado pelo hermetismo, o que se tem é uma bela e rara pesquisa.
A Arte Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral – De Eugenio Barba e Nicola Savarese. Tradução de Luis Otávio Burnier (supervisão), Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti, Hitoshi Nomura, Márcia Strazzacappa, Waleska Silverberg e André Telles. Lançamento conjunto das editoras Hucitec (telefones 543-0653 ou 530-9298, em São Paulo) e Unicamp. 272 páginas. R$ 75,00.
16.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 16 de maio de 1996. Caderno A – capa
Como em suas peças, ator emociona o público com o nacional e o popular no show “Na Pancada do Ganzá”
VALMIR SANTOS
Falar de Antonio Nóbrega é massagear o ego. Não dele, mas dos brasileiros. A desesperança que solapa a alma, a crua realidade das ruas, o sem-caso dos homens públicos, enfim, todo esse lodo cristaliza-se diante do gigante artístico que contamina a todos – crianças, velhos, adultos – com sua fé transformadora de cultura.
Não é conformação. É pura ação de espírito. Arregaçar as mangas, pau na máquina, ops, no corpo. A organicidade que dá voz às cantigas, modinhas, frevos, toadas e valsas.
Com a leveza do nome da rua onde ergue seu ninho – a Purpurina – e a transgressão e coragem da santa que batiza a vila paulistana – a Madalena –, Nóbrega impregna seu Espaço Brincante de uma brasilidade tocante.
A atual temporada do show musical “Na Pancada do ganzá” se reveste da mesma intensidade emocional que caracteriza suas peças teatrais. Resulta em mais um mergulho nas raízes do genuinamente popular brasileiro. Desta vez, o depuro artístico faz par com Mário de Andrade.
No final da década de 20, o escritor empreendeu uma viagem pelos cantões do Norte e Nordeste brasileiros, recolhendo fragmentos de manifestações musicais de domínio público. Mário de Andrade, certamente embalado pela Semana de Arte Moderna de 1922, como que já previa o processo de desmemorização que o País pagaria por conta do progresso – se é que se pode fazer esta relação assim, de chofre.
Pois coube a Nóbrega e aos amigos compositores também pernambucanos (Raul Moraes, Getúlio Cavalcante, Levino Ferreira e Wilson Freire) o trabalho de pesquisar o material legado por Mário de Andrade. A releitura é o show, apresentado inicialmente em 1993, em curta temporada no Memorial da América Latina, e agora em cartaz, no formato definitivo.
Chico Antonio, um cantador de coco, ou coquista (que embala rodas de pagode com canto e percussão) do Rio Grande do Norte, cativou Mário de Andrade à época. Ele cantava e tirava versos na pancada do ganzá, como se diz do chacoalhar do instrumento, um cilindro de alumínio com grãos dentro.
A sonoridade fanhosa de “Loa de Abertura” dá início ao show e o cantochão arrepia. “Senhores desta sala/Licença eu vou chegando, eu vou/A voz e a rabeca/o coração cansado, eu vou”. Sim, é a mesma entoada por João Sidurino, via Guimarães Rosa, em “Brincante” e “Segundas Histórias”, as peças teatrais.
É a senha: Tonheta está ali, no palco, a abraçar a rabeca, salteando daqui pra lá, de lá pra cá. As “tonhetices” do compositor e recriador musical Antonio Nóbrega. Daí, a dimensão ampliada da sua arte.
Cantos, toscos, transporta-nos a um Brasil senão esquecido, com certeza posto à margem do curso das suas almas vivas. Felizmente, haverá de existir sempre uns bastiões como o pernambucano Capiba, 92 anos, aqui presente com a composição “Serenata Suburbana”. Felizmente, o projeto musical de Nóbrega se encontra em CD, uma produção independente à venda no local.
“Na Pancada do Ganzá” tem a elegância e excelência do quinteto Zezinho Pitoco (sax alto, tenor, clarinete e percussão), Toninho Ferragutti (acordeon), Edmilson Capeluppi (violão 7 e cavaquinho), Dany (flauta e sax tenor) e Guello (percussão). São músicas com aquele perfil eminentemente felliniano, metidos em seus ternos bege. Há também a participação do filho de Nóbrega, Gabriel, e da esposa Rosane Almeida, respondendo por três inserções de danças.
Discorrer sobre arte tão belas é tarefa difícil – traduzir em palavras o que chega pelo plano subjetivo, pelo espírito afortunado em compartilhar de minutos tão sinceros e verdadeiros.
O público, mesmo sentado, segue o compasso dos pés e da cabeça movidos pelo ritmo da música e do canto. O sentido da comunhão, despressurizada de conotação religiosa, jorra dos corações e mentes. Atinge o pico ao final, quando a ciranda de roda se instala: público e artistas dão as mãos.
Em qual show noturno encontram-se crianças à beira do palco? Pois no Brincante elas estão lá, todas as noites. Não necessariamente filhos do casal Nóbrega/Rosane ou de amigos. São crianças trazidas pelos pais, tios, avós. Acompanhar “Na Pancada do Ganzá”, “Brincante” ou “Segundas Histórias” é como retornar à tenra infância. Ela não se perde de todo e acompanha seus “encostos”.
Miudezas do cenário. Os movimentos minúsculos e fragmentos do corpo de Nóbrega, que não perde a voz e nem o fôlego. A noção do ritual popular acentuada pela luz. A energia que emana da sintonia do quinteto com o intérprete. São algumas observações, talvez nos planos do visível e do palpável, que permitem assimilar um pouco da magia que é embarcar na nau deste “brincante”.
Na Pancada do Ganzá – Show musical com canções populares recolhidas por Mário de Andrade, em 1927 e 1928. Com Antonio Nóbrega, Zezinho Pitoco, Toninho Ferragutti, Edmilson Capeluppi, Dany e Guello. Participação especial de Rosane de Almeida. Espaço Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 15,00 (preço único). Estacionamento conveniado rua Fradique Coutinho, 1483 (R$ 4,00). Até 25 de junho. CD custa R$ 15,00 e está à venda no local.
1.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quarta-feira, 01 de maio de 1996. Caderno A – capa
No elenco jovem, o ator de 73 anos demonstra fôlego e talento para vencer o desafio de interpretar personagem de Shakespeare
VALMIR SANTOS
Rei Lear é dos personagens mais emblemáticos de Shakespeare. Nele, o autor combina a crueldade e a cadência humana. Octogenário, é o próprio condutor da vida que lhe resta. Num gesto de infantilidade, abdica do poder e das finanças, entrega-os de mão beijadas às filhas megeras e, de quebra, condena ao ostracismo a caçula que o tem com maior carinho. A lei da causa e efeito é implacável.
Tamanha densidade criou uma espécie de mito em torno do personagem. Para interpretá-lo, requer-se um ator com bagagem suficiente para sintetizar a tragicidade inerente. É com essa expectativa, alimentada pelo próprio, que Paulo Autran estrela a montagem brasileira de “Rei Lear”, em curtíssima temporada na Capital (até domingo).
Vê-lo em cena, de fato, compensa. Seu Lear casa-se com os 73 anos de idade. Cambaleando, reflete fisicamente o desequilíbrio do rei shakespeareno . Ator transita com vigor entre os jovens do elenco. Além disso, possui fôlego suficiente para percorrer o cenário espaçoso (duas rampas móveis concentram as principais cenas).
É o viés da loucura, porém, que melhor representa a força do intérprete maior do teatro brasileiro contemporâneo. A “fúria senil” de Lear, que envelheceu sem descobrir a sabedoria, salta aos olhos. Paradoxalmente, já que o bardo inglês faz da contradição uma regra, é nos instantes de puro delírio que o rei se mostra mais lúcido.
Quando caem o véu de Goneril (Karen Rodrigues) e Regan (Suzana Faini), as filhas impostoras, ele já está em processo adiantado de mergulho interior. Num lampejo, se arrepende de maldizer Cordélia (Raquel Ripani). Mas agora é tarde e as mortes são como que inevitáveis. A aura da unanimidade não perturba o trabalho de fôlego de Autran.
A montagem de Ulysses Cruz traz soluções que o diretor encontrara em “Péricles, o Príncipe de Tiro”, leitura instigante e até popular de Shakespeare – a peça foi vista por mais de 100 mil espectadores.
Ulysses coloca os três músicos, responsáveis pela execução ao vivo, no plano superior. As cenas se desenrolam no plano propriamente do palco, além das rampas concebidas pelo cenógrafo Hélio Eichbauer (mesmo de “Péricles”).
A intensa movimentação do elenco, acrescida da indumentária e iluminação, configuram uma estática cinematográfica. Ulysses Cruz está interessado em tornar Shakespeare acessível nos tempos modernos. Consegue. Lança mão de recursos visuais, mas não esquece do trabalho de ator.
Em “Rei Lear”, a preparação fica por conta de Hélio Cícero (Conde de Gloucester), que vem de anos no Centro de Preparação Teatral (CPT), com Antunes Filho.
Outro exemplo de cuidado com a atuação se expressa nos exercícios de tai-chi-chuan, realizados ao início e final da peça. Diante de tanto desequilíbrio dos personagens, os movimentos de leveza constituem um alento.
Rei Lear – De William Shakespeare. Direção: Ulysses Cruz. Com Roberto Matos, Guilherme Weber, Adriano Garib. César Augusto, Kadu Karneiro, Marcos Suchara, Sylvie Laila, Valéria Zeidan e outros. Hoje a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel. 258-3616). R$ 30,00. 135 minutos. Até domingo.
Samuel Beckett (1906-1989) pouco concede ao espectador. Suas peças são marcadas por uma estrutura fragmentada, que dispensa o início-meio-fim. Os vazios, os silêncios prolongados não por acaso. “Alguma coisa segue seu curso”, repete o submisso Clov em “Fim de Jogo”. É assim. Enredar pelos fiapos da existência, eis o fascínio e repulsa em Beckett. Seu texto incomoda e tangencia.
A montagem em cartaz no Centro Cultural São Paulo, dentro do projeto “Beckett 90 anos” – ele completaria no último dia 13 – é coerente com a atmosfera peculiar do dramaturgo irlandês. O que há de mais inusitado e absurdo, para fazer jus ao estilo teatral criado por ele e pelo romeno Eugène Ionesco nos anos 50, foi devidamente assimilado pela concepção e interpretação.
O diretor Rubens Rusche, profundo conhecedor da obra beckettiana, traduziu “Fim de Jogo” em parceria com Luiz Benati. O jogo de palavras tem importância capital e, felizmente, flui muito bem, dispensando-se o tom hermético.
Márcio Aurélio, premiado diretor de “A Bilha quebrada”, revela talento na cenografia. A rusticidade acinzentada das três paredes, “respiradas” por apenas dois buracos nas extremidades, de onde se vê, respectivamente, a terra e o mar, é puro Beckett.
É no elenco, porém, que “Fim de Jogo” brilha por excelência. Linneu Dias (Hamm) e Antonio Galleão (Clov), nos papéis principais, dominam com precisão a interpretação de papéis de pouca sugestão e muita introspecção. Para viver o velho cego e paralítico Hamm e seu criado escravo convém uma interiorização de gestos, de respiração, de tempo, enfim, a técnica é imprescindível.
Hamm e Clov, ou Dias e Galeão, estabelecem uma estranha relação afetiva. A interdependência absoluta. Obsessão e neurose alimentam um a outro. Não bastasse os dois, Beckett cria os pais do paralítico, Nagg (Nivaldo Todaro) e Nell (Bete Dorgam), ambos com pernas amputadas e vivendo, cada um, com o que restou do corpo enterrado em lata de lixo.
Também Bete e Todaro, com a expressão restrita aos músculos da face, com a abertura da lata de lixo, consegue catalisar a atenção do público e se inserem com firmeza na “farsa cotidiana”.
Farsa, claro, porque Beckett, antes de mais nada, parece rir da ridícula condição humana em certas ocasiões. “Fim de Jogo”, a montagem, optou por acentuar o humor corrosivo com o qual o autor acena com os diálogos.
“Isso não está muito divertido”, observa Hamm. “Não há nada mais engraçado do que a infelicidade”, dispara Nell. “Toda humanidade pode renascer de uma pulga”, profetiza Hamm, outra vez. Assim, é impossível não se envolver com tal distanciamento.
Fim de Jogo – De Samuel Beckett. Direção: Rubens Rusche. Com Linneu Dias, Antonio Galleão, Nivaldo Todaro e Bete Dorgam. Quarta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 4,00 (quarta) e R$ 8,00 (demais dias). Até 23 de junho.
4.4.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 04 de abril de 1996. Caderno A – capa
Autor e diretor revela em “Nowhere Man”, sua nova peça, apresentada em Curitiba, necessidade de ampliar canal com espectador
VALMIR SANTOS
Gerald Thomas no centro de uma entrevista coletiva é um festival de pérolas. Com ironia contumaz e bem-humorada – ainda que algumas respostas soem ríspidas -, ele adianta pouco de “Nowhere Man”, na véspera da estréia em Curitiba, semana passada. Mas fala à vontade do se “estilho”, critica congêneres brasileiros (exceção de Antunes Filho, a quem devota respeito confesso), enfim, não faltam as idéias e, claro, as polêmicas.
CRIAÇÃO – Primeiro eu penso na ação e depois na dramaturgia. Geralmente crio as cenas já com o ator na cabeça.
DAMASCENO – O Fausto aqui é um misto dele comigo. [É indagado se Damasceno seria seu Luis Melo, em referência ao ex-ator de Antunes]. Pode até ser, mas não estou despedindo ele por fax e quero que ele compre mais eletrodomésticos (ri).
FAUSTO – Qualquer ser em crise, em momentos étnicos e culturais de transição, que tem sede pelo poder da eternidade, tudo isso é Fausto.
ELENCO – A maior dificuldade em trabalhar com parte do elenco de atores de Curitiba foi a língua. É difícil…”leeite quiente” (ri). Preciso de um tradutor…
CRÍTICA – A imprensa inventa certas coisas e também invento as minhas. Venho fazendo humorismo desde “The Flash and Crash Days” e sempre dizem que estou começando uma nova fase, mais cômica. Para mim, começa uma nova fase a cada manhã que me olho no espelho.
CLASSE – Tenho muita segurança que faço, por isso as pessoas gostam de me atacar… É assim com essa classe teatral moribunda, com peças de “merda”… Quem faz sucesso lá fora é sempre criticado… Aconteceu com Jobim, com Carmen Miranda…
DIRETORES – A diferença entre eu e Villela, Moacyr Góes, Bia Lessa e outros é que eu escrevo meus textos. Co exceção de alguns “amigos” meus, como Beckett e Müller, não costumo montar outros autores. Chega de montar “Hamlet”! Porque não pensar em texto novo?… O teatro brasileiro é feito de alunos querendo tirar nota 8 ou 10 com os clássicos… Com Antunes é diferente, ele descobre textos importante, como “Vereda da Salvação” e “Gilgamesh”… É o que mais respeito por aí, porque está sempre pesquisando a dramatização.
IMAGEM – Em 1861, Wagner (compositor alemão) já dizia que o teatro é a “obra de arte total”. Não existe essa classificação de imagem, de palavra.
28.3.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 28 de março de 1996. Caderno A
Há dez anos na Cia. Ópera Seca, Luis Damasceno é homenageado em espetáculo que estréia amanhã em Curitiba.
VALMIR SANTOS
12.3.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Terça-feira, 12 de março de 1996. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Uma mistura de Bahia com Off Broadway. São Paulo vai cair na gargalhada a partir de Quinta-feira. A Companhia Baiana de Patifarias, aquela que arrebatou público e crítica com o fenômeno “A Bofetada”, volta com o musical “Noviças Rebeldes”. Segundo Lélio Filho, 33 anos, na Patifarias desde o início, há nove, até padre e freira já assistiram à comédia e não se intimidaram com passagens “picantes”. “Noviças Rebeldes” cumpriu temporada de um ano em Salvador. A companhia é testa-de-ferro do teatro baiano, que aporta nos anos 90 com inventividade no eixo Rio-São Paulo. Wolf Maia dirige o mesmo espetáculo montado por ele no final da década de 80. Desta vez, porém, os personagens femininos são interpretados pelo quinteto masculino. A seguir, a entrevista de Lélio Filho a O Diário.
O Diário – Como você analisa a trajetória da Companhia de Patifarias, desde a primeira peça, “Abafabanca”, há nove anos, passando por “A Bofetada” e agora com o musical “Noviças Rebeldes”?
Lélio Filho – Parece óbvio, mas encaro como amadurecimento. Isso faz parte de qualquer grupo, mas no nosso caso, trata-se de uma pesquisa do gênero comédia. Estamos trabalhando desde 87, quando fizemos “Abafabanca” como mambembes, no melhor sentido da palavra, com aquele artesanal. Hoje, com “Noviças”, temos um contexto mais profissional, desde o texto até a preparação dos atores, que trabalharam canto, dança, sapateado.
O Diário – Mas aquele sentido artesanal, de criação coletiva, que norteava o início da companhia, de certa forma continua?
Lélio – É claro, sempre vamos trazer isso com a gente. É uma coisa intrínseca. “Noviças”, por exemplo, tem o espírito dos musicais Off Broadway. Mas com a nossa leitura, Bahia com Broadway. O autor, Dan Goggin, teve a idéia do texto há cerca de uma década, quando acompanhou uma exposição de postais que traziam freiras em situações inusitadas, como num engarrafamento, carregando pacotes de compras ao atravessar a rua… A partir daí, saiu o texto que quebra aquela imagem sisuda das freiras, revelando-as bem humoradas, brincando com bastante humor negro.
O Diário – Existe um fundo feminista?
Lélio – Não acredito que seja isso. A mensagem é de libertação, de imaginar seres humanos enclausurados mas livres, numa perspectiva espiritual, humana. A gente tem esse compromisso de fazer a platéia se divertir… Praticamente, não me considero um comediante, mas um ator que no momento trabalha com comédia.
O Diário – Na temporada de Salvador, houve alguma perseguição por parte da Igreja?
Lélio – Por mais picantes que sejam alguns momentos, tivemos grupos de terceira idade, senhoras na platéia. Até freiras e padres, à paisana, ou mesmo um caso de uma freira, que certa noite sentou na primeira fila, com seu hábito, e aplaudiu bastante ao final. A montagem está interessada no simples prazer do riso… O picante aqui é só uma piada, não há intenção de agredir.
O Diário – Com “A Bofetada”, que permaneceu em cartaz por cinco anos e meio, a Patifarias foi a principal responsável pela introdução do teatro baiano na cena nacional. Já vimos Márcio Meirelles com seu Bando de Teatro do Olodum, com “Zumbi”, a atriz Rita Assemany, com “Oficina Condensada”, a diretora Carmen Paternostro… Você acha que é por aí?
Lélio – Sou suspeito para falar… Mas Salvador reconhece a importância da companhia que, desde 1987, 1988 deu uma impulsão no teatro baiano. Na época, havia um sentido muito comercial, de espetáculos com atores globais, e as pequenas produções só eram acompanhadas por um público específico. Mas felizmente houve um retomada. No ano passado, por exemplo, Salvador abriu com “Noviças Rebeldes” e fechou com uma estréia também importante, a tragédia “Othelo”, com direção de Carmen Paternostro.
O Diário – Com “A Bofetada”, vocês conseguiram ganhar o público de São Paulo justamente com especificidades do humor baiano. Como foi?
Lélio – Pois é, a gente conseguiu estabelecer uma comunicação com vários públicos. Isso foi muito bom, porque não esperávamos.
O Diário – Os cinco atores são baianos?
Lélio – Com exceção de Wilson de Santos, que nasceu em Santos (SP), eu, Fernando Mrinho, Beto Mettig e Diogo Lopes Filho somos todos nascidos na Bahia.
O Diário – Wolf Maia, o diretor, acompanha a estréia em São Paulo?
Lélio – Ele chega amanhã (hoje)… No final dos anos 80, ele montou “Noviças Rebeldes” com atrizes no elenco. Agora, se junta à Patifaria para um musical interpretado somente por atores.
Ao participarem de uma noitada de bingo, as freiras do convento Salue-Marie acabam vítimas de botulismo (envenenamento alimentar), depois da sopa.
Resta às cinco sobreviventes enterrar as companhias, com as economias do convento. Antes da empreitada, a madre superiora, Irmã Gardênia (Fernando Marinho), resolve fazer um grande sonho do consumo: a compra de um vídeo-cassete.
Acaba, porém, zerando as economias do convento. A solução encontrada é colocá-las num freezer e realizar um show beneficente, cuja verba será revertida em prol do enterro decente.
Ao serem informadas da decisão sobre o show, cada uma começa a preparar seu “número”: irmãs Amnésia (Lélio Filho), José (Wilson de Santos), Léo (Beto Mettig) e Frida (Diogo Lopes Filho).
É o suficiente para as irmãs do Salue Marie botarem os seus “demônios” para fora. Daí em diante, sucedem-se cenas de dança, canto e interpretação com grandes revelações sobre as personalidades das freiras do convento.
O improviso, marca registrada da companhia em “A Bofetada”, está mais contido. Afinal, “Noviças Rebeldes” tem início, meio e fim. Foram acrescentados cenários e iluminação incrementada, aulas de canto, dança e sapateado.
A tônica profissional alterna, segundo o material de divulgação distribuído à Imprensa, momentos hilariantes com números musicais e cenas de religiosidade.
Noviças Rebeldes – De Dan Goggin. Direção: Wolf Maia. Estréia quinta-feira, 21h. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Imprensa (rua Jaceguai, 400, Bela Vista, tel. 239-4203). R$ 15,00 (quinta), R$ 20,00 (sexta e domingo) e R$ 25,00 (sábado). 120 minutos. Até junho.
28.12.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 28 de dezembro de 1995. Caderno A – capa
São muitos os signos presentes na montagem de Antunes Filho, em cartaz até sábado, como a convivência do bem e do mal
VALMIR SANTOS
Antunes Filho está encantador. Há dois meses, ele mostrou o que considera um esboço do sua nova montagem, “Nos Caminhos da Transilvânia”. Já um trabalho impactante, ele definiu o espetáculo como o segundo de sua trilogia “fonemol”, inaugurada com “Nova Velha Estória” quatro anos atrás. A terceira peça ainda está por vir.
O “fonemol” vem da linguagem absolutamente inventada e utilizada pelos atores em cena. Antunes desconstrói o português para buscar um estado superior de consciência, primitivo, prematuro. Um linguagem destituída da compreensão oral concebida pelo Ocidente; é gutural (lembra alemão ou russo, mas não é).
Uma oportunidade para conferir este mergulho junguiano é assistir a remontagem de “Nova Velha Estória”, em cartaz até sábado na Capital.
Aqui, Antunes revisita o clássico infantil universal, “Chapeuzinho Vermelho”, para tocar no tema da sedução e, principalmente, discutir os conceitos de bem e mal em voga na humanidade.
O seu Lobo Mau, por exemplo, não é tão mau assim. A relação – literalmente – com a menina desprotegida se apresenta terna, sem a ferocidade pressuposta. Ao mesmo tempo, Chapeuzinho nada tem de ingênua.
Graças ao desenho cenográfico de J.C. Serroni, a leitura do espetáculo se dá também pelas linhas horizontais que cruzam o palco. Quando Chapeuzinho anda sobre a linha branca, obedece à Vovó. Quando sobre a vermelha, segue pelo desconhecido, o inesperado. E ela vai.
As marcantes bolhas suspensas de Serroni também estão lá, fazendo valer o paradoxo da transparência que separa. Os signos são muitos em “Nova Velha Estória”, instigante.
Na primeira versão, tinha-se Luis Melo e Samantha Monteiro nos papéis de Lobo Mau e Chapeuzinho, respectivamente. Agora, Ian Cristian e Ludimila Rosa, além de Luiz Furlanetto (Vovó), Inês de Carvalho e Sandra Babeto (Amigas), emprestam um sentido maior de jovialidade, de traquinagem e, consequentemente, de jogo de sedução à história. Nunca ficou tão claro o que Antunes vive repetindo sobre seus atores: eles estão brincando em cena.
Nova Velha Estória – Concepção e direção: Antunes Filho. Cenografia: J.C. Serroni. Iluminação: Davi de Brito. Com Geraldo Mário, Luiz Furlanetto, Ian Cristian, Ludmila Rosa e outros. Últimas apresentações de hoje a sábado, 21h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 258-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (sábado). Duração: 104 minutos.
Araújo evoca arte do ator em “Plantonista”
Logo depois da única apresentação de “Plantonista Vilma”, no Espaço Cultural Yázigi, há pouco mais de duas semanas, o ator Márcio Araújo conversou com o pequeno público mogiano – a maioria atores iniciantes. Na oportunidade, falou da sua formação. Não fez escola de teatro. “Aprendi de ouvido”, brincou. O monólogo de Araújo, mais do que propriamente o bate-papo, revelou sua dedicação plena à arte de atuar.
O formato de “Plantonista Vilma” permite apresentar o espetáculo em espaços não-convencionais, como praças e colégios. Em São Paulo, cumpriu temporada no Espaço Cultural Lélia Abramo, mantido pelo Sindicato dos Bancários.
No alternativo Yázigi, também improvisou o espaço cênico. Com uma cadeira, poucos recursos de luz e som, Araújo consegue agigantar sua Vilma em cena. Faz rir e emocionar, numa variação tênue e profunda.
A partir do texto original de Noemi Marinho, o ator se permitiu introduzir um pouco da sua própria vivência. Dilui, desta forma, a densidade que dominava a peça, emprestando-lhe pitadas de humor – uma tragico-média, enfim.
O tema não é novidade no teatro: solidão. Vilma é plantonista de uma espécie de CVV, o serviço Você Não Está Só!. O desassossego, a voz dos outros serve de antídoto contra sua solidão.
Seria um prato cheio para cair na tragédia. Felizmente, Araújo faz do monólogo também um convite ao entretenimento. E aí sua Vilma é vislumbrante sem a afetação corrente dos homens que se transformam em mulher no palco.
O que surpreende em “Plantonista Vilma” é a habilidade artística de Márcio Araújo. Dos poucos recurso – inclusive pouco público –, ele respeita o teatro e dá seu recado com sinceridade. Virtudes escassas.