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Crítica

MITsp honra marcos iniciais para ir longe

17.3.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ligia Jardim

Em seus intentos artísticos, políticos e reflexivos, a Mostra Internacional de Teatro, a MITsp, honrou os marcos lançados em sua primeira jornada de 11 dias e 11 espetáculos encerrada ontem. Restabeleceu o lugar de um evento desse porte na agenda cultural da cidade, fora da escala da indústria do entretenimento (em analogia ao Festival Internacional de Artes Cênicas, de Ruth Escobar, que cumpriu nove edições entre 1974 e 1999). Incitou o interesse do espectador pelo teatro de pesquisa. Sublinhou a mediação crítica em todos os quadrantes, por um espectador ativo. E abriu-se aos estudantes e docentes de artes cênicas na graduação e na pós, inclusive vindos de outras praças.

A curadoria do diretor artístico Antonio Araujo em colaboração com o diretor-geral de produção Guilherme Marques ofereceu paleta coerente em seus contrastes e provocações formais e temáticas. Impossível não associar às questões do sagrado tão caras ao Teatro da Vertigem, grupo do qual Araujo foi fundador e encenou a Trilogia Bíblica. Universo intrínseco às obras de Romeo Castellucci e cia. Socìetas Raffaello Sanzio em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus e de Rodrigo García e La Carnicería Teatro em Gólgota picnic. Perturbadoras na materialidade da cena e nos laivos filosóficos que cometem.

É notório como o eixo curatorial passou pelo modo de produção do teatro de grupo, ainda que varie o modus operandi. O diretor uruguaio Roberto Súarez falou do estado provisório da cia. Pequeño Teatro de Morandanga com o convencimento de um Vinicius: que seja eterna enquanto dure. Lá se vão cerca de cinco anos de trabalho em torno do nada convencional Bem-vindo à casa, em que espaço, dramaturgia, atuação e subdivisão em duas noites compõem um bricabraque dos mais inventivos.

Diretor Roberto Súarez e pesquisador André CarreiraSem créditos

Diretor Roberto Súarez e pesquisador André Carreira

Lembramos companhias vindas de culturas pouco reconhecíveis aos brasileiros e berços de heranças culturais em artes cênicas, o que não impede sofisticado grau de elaboração em seus trabalhos. Caso da lituana Oskaras Koršunovas Theater (OKT), do diretor homônimo, que trouxe Hamlet, e da turca Studio Oyunculari, da encenadora Şahika Tekand, de Anti-Prometeu.

Do núcleo de Istambul os funcionários da limpeza do Sesc Santana guardam a experiência de devoção para com o ofício e o espaço tidos como sagrados e, por isso, a ser cuidado por aqueles que nele pisam, conforme transmitiram os artistas que fizeram questão de pegar em vassouras, rodos, panos e baldes.

Processos históricos inspiraram os espetáculos do diretor chileno Guillermo Calderón, Escola, e do sul-africano William Kentridge, Ubu e a comissão da verdade, com a Handspring Puppet Company. No primeiro, os paradoxos de guerrilheiros que instruem aprendizes para suas ações-limites sob a ditadura Pinochet, na década de 1980, urgências que também calam fundo na consciência de que ideologia não é vã utopia. Na montagem de Kentridge, o mandonismo histriônico de Ubu, personagem de Alfred Jarry (1873-1907) que o espectador brasileiro conheceu tão bem na performance de Cacá Rosset e Grupo Ornitorrinco é correlacionado aos 30 anos do regime de apartheid no país de Nelson Mandela (1918-2013). Nas duas peças, a chave política abre janelas para concepções despojadas, alegóricas em Ubu e poeticamente austeras em Escola.

Dawid Minnaar, da Handspring Puppet Company

O corpo consignado como vasto campo de reinações e rupturas alicerça as criações do piauiense Marcelo Evelin e a multicultural cia. Demolition Incl. em De repente fica tudo preto de gente, interfaces com dança, teatro, música, arquitetura e urbanidade, entre outras variantes, e da francesa Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (MPTA), nas coreografias Nós somos semelhantes a esses sapos… e Ali, ambas tendo um dos bailarinos, Heidi Thabet, com uma das pernas amputada, dado que amplifica o vocabulário próprio e o de seus pares.

O autor e diretor Mariano Pensotti, da companhia argentina Marea, estrutura Cineastas sob o signo audiovisual dominante enquanto texto e suporte cenográfico. Moldura ostensivamente os planos baixo e alto para a visão do espectador em palco italiano, projetando em cima aquilo que a realidade dos diretores enfrenta em baixo, desejos e frustrações para colocar roteiros e a vida de pé.

A programação não pretendia a unidade conceitual. Quando da apresentação da MITsp à imprensa, em dezembro de 2013, Araujo já se esquivava de um eixo, um norte, um guarda-chuva. Mas também falava do possível. Àquela altura, a edição estava confirmada havia apenas algumas semanas com os últimos correalizadores, patrocinadores, parcerias ou apoiadores finalmente a bordo, permitindo colocar em marcha o encontro desejado nos últimos cinco anos. A prospecção de recursos – foram captados cerca de R$ 2 milhões dos R$ 3,5 milhões autorizados pela Lei Rouanet – diminuiu a margem de manobra dos organizadores para escalar as obras quando o padrão internacional estima mínimo de doze meses para agendamento de produções de ponta.

A edição pioneira e recém-concluída revela-se vitoriosa, portanto, considerando os bastidores em que foi desenhada. Mesmo assim, não houve discrepância. Os 11 trabalhos conversaram em suas especificidades, permitindo ao público sorver uma síntese do que vai pela cena contemporânea em alguns cantos do mundo.

Pesquisador Fernando Villar fala sobre Pensotti

Consolidados os contratos, coube aos organizadores firmar as balizas para o paradigma da pesquisa e do pensamento crítico a que a mostra se arvorava. É neste quesito que a dobradinha Araujo e Marques fizeram jus a suas biografias. O encenador, professor e pesquisador universitário em sintonia com o produtor e animador cultural contumaz. Desde o final da década de 1990 Marques estava às voltas com o Encontro Mundial das Artes Cênicas, o Ecum, em Belo Horizonte, hoje consubstanciado no Centro Internacional de Formação e Pesquisa em Artes Cênicas, daí o CIT-Ecum correalizador da MITsp e sediado no teatro homônimo da rua da Consolação, teatro com duas salas que administra a duras pressões da especulação imobiliária.

Os segmentos Olhares Críticos, Fórum de Encontros e Intercâmbio Artístico irrigaram, tanto quanto os espetáculos, as raízes singulares desta mostra. As ações daí desdobradas convocaram artistas, público, pesquisadores, teóricos e toda a rede de profissionais correspondentes a não se descolar do pensamento crítico em seus sentidos estrito e amplo – vide a alentada publicação cartografia.mitsp, com 142 páginas de ensaios relativos ao menu completo e distribuída gratuitamente. Ficou patente como a universidade foi convidada a sair de seu território intramuros para contracenar nos lugares de apresentação e discussão.

Isso também revelou falta de jogo de cintura em alguns dos encontros em que seus representantes foram solicitados a dialogar com a obra ou com o artista. Em determinadas ocasiões, nem a montagem que acabou de ser exibida removeu do escaninho bibliográfico o especialista afins ou migrante de outros escopos, incapaz de ser penetrado pela cena de que fora espectador comum. Quando esses pensadores assim ousaram, a triangulação se dava plenamente – havia sempre uma turma bem interessada nessas rodas ou conferências.

A ação Coletivo de Críticos envolveu as revistas eletrônicas Antro Positivo (SP) e Questão de Crítica (RJ), os blogs Horizonte da Cena (MG) e Satisfeita, Yolanda? (PE), além deste site Teatrojornal – Leituras de cena (SP), e instaurou uma rotina dos textos impressos diretos para as mãos dos espectadores, nas filas, ou postados no meio da tarde no site da MITsp. A retroalimentação em ritmo de montanha-russa revelou-se um desafio extraordinário para todos os profissionais envolvidos a conciliar tempo, clareza e densidade das ideias, sempre dois pontos de vista sobre uma mesma obra.

Já no plano da infraestrutura, houve dissonâncias típicas de quem deve encarar o sucesso inaugural, suas demandas. A afluência de 13.679 mil espectadores, segundo a assessoria de comunicação, somando público das apresentações e das atividades de formação, de interação e de pensamento gerou percalços pontuais na distribuição gratuita de ingressos.

Público aguarda distribuição de ingressos no CCSP

A segunda edição, prevista para 6 a 15 de março de 2015, e com as instituições assumindo publicamente que somarão forças no ano que vem, pede otimizar a logística do acesso. É louvável o esforço de contrapartida na veia, ou seja, devolver ao cidadão e contribuinte o dinheiro destinado à mostra. Há um esforço de princípio ético que deve se estender também à organização das filas, de modo que a cultura de furá-la seja desestimulada. A começar pela parcela significativa dos convidados da organização dada a embolar-se no início da fila para avançar ao primeiro sinal de abertura para a sessão, desrespeitando quem chegou duas, três, quatro horas antes.

Outra necessidade fundamental é espraiar a MITsp para as bordas da cidade. Há uma concentração no circuito teatral hegemônico entre os dez espaços de turno. É preciso incluir o teatro de rua, a intervenção no espaço público. É preciso estender-se, misturar-se aos extremos, rumar para a periferia aonde o teatro de pesquisa pós-Lei de Fomento vem cativando homens, mulheres, crianças e velhos que finalmente tomam ciência de que ir ao teatro é uma arte que pode estar a seu lado e ao seu alcance como cidadão e inclusive sob a rubrica da pesquisa. Mistura que de certa maneira vimos representada em todas as filas. Mas carece pluralizar concretamente essa geografia.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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