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Crítica

A importância de ser infiel a Oscar Wilde

25.2.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cabéra

Passional até a medula, o irlandês Oscar Wilde (1854-1900) teria muito a transgredir em relação aos embates sujeito-desejo nas sociedades globalizadas e por vezes tão conservadoras como aquelas surgidas em parte da Europa após a Revolução Industrial no século 19. O desencantamento com o falso moralismo jamais o impediu de viver o amor até as últimas consequencias. Estivesse presente, o autor de romance único (O retrato de Dorian Gray), nove peças e muitos contos e poemas brandiria sua pena diante das reações ainda violentas, arcaicas e caretas no campo das preferências sexuais.

Ideias e atitudes desse dândi provocador são plasmadas em Beije minha lápide, produção mais recente de Marco Nanini em que interpreta Bala, espécie de alter ego de Wilde.

Admirador confesso do escritor sagaz pelas abordagens crítica, sádica e satírica dos padrões de seu tempo (e do futuro), Nanini preferiu não montar um texto direto do autor e nem recortar sua biografia.

O espetáculo é fruto de mergulho em processo colaborativo com criadores de outras gerações, como a diretora Bel Garcia (da Cia. dos Atores), o dramaturgo Jô Bilac e os atores da Cia. Teatro Independente, todos reconhecidos da cena carioca pela inquietação artística e avesso a lugares-comuns.

Soa prosaico e ao mesmo tempo inspirador o ponto de partida eleito para as intertextualidades do projeto. Em 2011, o túmulo de Oscar Wilde no cemitério Père-Lachaise, em Paris, foi reaberto à visitação após restauro e instalação de um vidro impeditivo de beijos, frases e desenhos de batom que os fãs selavam desde a década de 1990. As autoridades alegaram proteger a pedra porosa do monumento da erosão pelo contato com os componentes químicos.

Ao tomar o episódio factual como pretexto, Jô Bilac compõe uma história agregadora de outras. Em vez do culto óbvio ao homenageado, captura-o ficcionalmente para o presente, inclusive com alusões a ataques homofóbicos na pauta do dia.

Na dramaturgia expandida (palavra e visualidade têm o mesmo peso), Bala é preso ao tentar reverenciar Wilde com o gesto simbólico. Ele simplesmente rompe a barreira no túmulo e assume as consequencias.

O drama se estabelece pela situação limítrofe a ser superada. A solução cenográfica de Daniela Thomas (uma cela de vidro) vira epicentro. O personagem de Nanini permanece o tempo todo entre as paredes transparentes do cubo, explanando inconformidade com a falta de tolerância. Do lado de fora gravitam o carcereiro, a advogada a quem Bala dita sua defesa recheada de ironia e a filha que o visita, guia turística do referido cemitério.

Nanini vive espécie de alter ego do escritor inglêsCabéra

Nanini vive espécie de alter ego do escritor irlandês

O discurso amoroso libertário incide sobre as relações afetivas ou jogos de sedução entre o preso e o agente, a advogada e a filha. Os diálogos citam obras de Wilde, principalmente De profundis, estruturada como uma carta ao poeta e amante Lord Alfred Douglas (1870-1945) e concebida no cárcere ao longo de dois anos, sob acusação de sodomia.

Com o fez em outros momentos da carreira, Nanini posiciona-se cúmplice do caráter experimental da encenação. A condição de encarcerado, postado no centro do palco, não o distancia da ponte com o público. Ao contrário, tem o corpo de seu Bala-Wilde aureolado pelo desenho de luz Beto Bruel. Há algo de anárquico e sábio nos dizeres desse homem de uniforme prisional que mais parece um pijama. De fato, estados oníricos e pesadelos estão confrontados.

Contando com atores bem preparados, a diretora Bel Garcia instaura atenção pelo pensamento e pelas imagens que desconfiam da normalidade e transitam por zonas instáveis. Aliás, falta um pouco de instabilidade à movimentação de entradas e saídas dos atores, tornadas previsíveis da metade em diante, uma rusga da forma sobre o conteúdo.

.:. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, seção Eu&Cultura, página D4, em 23/2/2015.

.:. Leia a crítica a Beije minha lápide, por Maria Eugênia de Menezes, aqui.

.:. O site da produção do espetáculo, aqui.

Serviço:
Onde: Sesc Consolação – Teatro Anchieta (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000).
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h. Até 1º/3.
Quanto: R$ 15 a R$ 50.

Ficha técnica:
Texto: Jô Bilac
Direção: Bel Garcia
Com: Marco Nanini, Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings
Produção: Fernando Libonati
Idealização: Marco Nanini e Felipe Hirsch
Figurino: Antônio Guedes
Iluminação: Beto Bruel
Cenografia: Daniela Thomas
Concepção e direção de vídeo: Julio Parente e Raquel André
Videografismo: Júlio Parente
Trilha sonora: Rafael Rocha
Design gráfico: Felipe Braga
Assessoria de imprensa: Factoria Comunicação
Fotografia: Cabéra
Visagismo: Ricardo Moreno
Visagismo Marco Nanini: Graça Torres
Assistente de direção: Raquel André
Equipe de produção
Coordenação e gestão de projetos: Carolina Tavares
Direção de produção: Leila Maria Moreno
Produção executiva: Monna Carneiro
Assistente de produção: Gutemberg Rocha e Glauco Lopes
Produção: Pequena Central
Realização: Sesc

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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