Menu

Encontro com Espectadores

O trânsito da imaginação à imagem em ‘Caros Ouvintes’

22.6.2020  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Daumer De Giuli

Ao revisitar o universo das radionovelas, o espetáculo Caros ouvintes alinhou entretenimento e reflexão sobre as transformações nas plataformas de difusão a partir de meados do século XX – do rádio para a TV – e problematizou o tom reacionário de como elas foram recebidas nos campos da política e dos costumes por parte da sociedade brasileira. A ação se passa em 1968, sob ditadura civil-militar. As abordagens que se revelam atuais estimulam a pensar ainda a respeito da construção de presença na relação dos artistas com o público. Ontem, pelas ondas radiofônicas. Hoje, sob o imperativo da internet, para a qual convergem os conteúdos da televisão e do cinema, ainda mais prevalente no contexto da pandemia. A 33ª edição do Encontro com Espectadores foi pontuada por assuntos como estes ao receber o autor e diretor Otávio Martins e o ator Dalton Vigh. Eles conversaram com o público em 29 de setembro de 2019, na sala Vermelha do Itaú Cultural, sob mediação da jornalista Beth Néspoli. As participações da atriz Agnes Zuliani e do ator Alex Gruli ampliaram as leituras a propósito da criação que estreou em 2014 e cumpriu diversas temporadas desde então, sendo a mais recente, no Teatro Vivo, interrompida em março pela Covid-19.

*

Beth Néspoli

Farei apontamentos iniciais a partir do espetáculo, em seguida a gente ouve o Otávio e o Dalton e depois abre para a plateia. Não precisa ser necessariamente uma pergunta, pode ser um comentário acerca da peça, positivo ou negativo. O importante é não perder a ternura jamais e que seja sempre uma conversa de transmissão afetiva com bastante carinho e respeito um pelo outro, porque discordar não é brigar.

É muito difícil definir o que é uma obra de arte, mas a gente poderia dizer que é uma forma moldada, feita a partir de desejos, da imaginação, da sensibilidade. A matéria-prima dela pode ser existencial, social,  mas se molda essa forma e em algum momento ela para de ser preparada e é compartilhada no espaço público. A partir do momento que entramos em contato com essa forma, vamos lê-la de acordo com as nossas questões e o tempo em que a gente vive.

Mais do que na transição de meio tecnológico, ‘Caros ouvintes’ fala de um período da transição da imaginação para a imagem pronta. Você não via a cara da mocinha da novela e nem sabia a idade. Você criava na sua cabeça quem era a mocinha, o mocinho, o vilão… A partir do momento que isso passa a ser visível, a imagem tem de se encaixar à voz. O próprio espectador passa a pedir isso

Otávio Martins, autor e diretor

Mas, no caso do teatro, esse processo não termina quando fecha a cortina. É um processo contínuo. Às vezes a gente lembra de um espetáculo de dez anos atrás e que hoje essa recordação soa totalmente diferente. A ideia é que naquele momento em que estamos lá a gente tem uma fruição imediata, positiva ou negativa. Já aqui, neste momento, com o Otávio e Dalton falando e ouvindo vocês, que esse processo continue e se torne um pouco mais complexo. Que a gente possa sair da primeira superfície do gostei/não gostei e que tenha mais elementos de discussão sobre a ideia. É um pouco a missão do Encontro: ampliar a percepções.

Vou começar falando sobre o espetáculo, Caros ouvintes. Como disse, existe uma margem de invenção a cada vez que se cria arte, mas ela também está dentro de uma cultura, de uma história, de uma convenção. Esta peça está dentro de uma convenção teatral que a gente chama de “reloginho”, porque um mecanismo de precisão, uma engrenagem. Se você atentar a cada dos elementos que a constitui verá que funcionam bem juntos. É muito importante que tudo esteja encaixado direitinho.

Importante é que se insere em uma convenção ou em uma tradição muito ligada ao palco italiano. Isso que a gente chama de palco italiano nasce no século XV para o XVI, ligado às navegações. Se você olhar aqueles urdimentos, os telões que sobem e descem são as velas do navio, tem o alçapão, esses tablados nascem com essa mesma tecnologia de navegação avançadíssima para a época. Depois vai se aprimorando. Em 1880, os teatros de Paris passam a ter luz elétrica, antes as apresentações aconteciam à vela, a candelabro, a lampião. E o proscênio era grande porque se iluminava até aqui dentro [no fundo do palco]. Essa luz elétrica foi empurrando o proscênio para lá, foi transformando esse palco italiano numa outra coisa e estabelecendo outros recursos para ele.

Certa vez vi uma palestra de um arquiteto de teatro inglês e ele falava que  toda a história do palco, desde a arena grega até os nossos dias, esse palco que ele chama “palco em leque”, que é o palco de algumas unidades do Sesc ou do Renaissance, no caso de Caros ouvintes, que não tem mais público na lateral, feito os teatros municipais, como na Sala São Paulo. Ele falava que a história  do teatro afastou o público do teatro, ou seja, do palco. É uma visão negativa, mas eu não concordo com ela completamente. Quando ouvi até concordei, mas não concordo mais. Pensando bem, o palco italiano e esse tipo de recurso que ele dá nos permite o jogo, o que é maravilhoso. É o jogo da denegação. Eu estou aqui e eles estão lá [os atores]. Vejo que eles estão em um estúdio de rádio, sozinhos. Na primeira cena da peça o Dalton faz uma brincadeira com isso porque tem uma mulher que canta como se fosse num programa de auditório que tinha na rádio. Mas, na verdade, é uma licença poética porque Caros ouvintes fala de um estúdio de rádio, o último capítulo de uma radionovela justamente no momento que a telenovela está passando do rádio para a televisão, uma transformação em função de uma tecnologia nova que chega. Tudo que acontece é dentro desse estúdio de rádio e não seria igual se tivesse uma plateia naquele rádio. Eles estão sozinhos e por isso aquela trama acontece daquele jeito. Nós estamos ali mas nós não estamos ali, é a tal da quarta parede que se fala.

Fabio de Almeida Prado A mediadora Beth Néspoli, o autor e diretor Otávio Martins e o ator Dalton Vigh durante o Encontro com Espectadores acerca de ‘Caros ouvintes’

Essa quarta parede, essa iluminação e toda essa tecnologia permitem que a gente esteja ali no escurinho vendo alguma coisa que está acontecendo lá. Nós estamos e não estamos, é o estúdio da estação de rádio e é o teatro ao mesmo tempo. Um jogo delicioso. E quem diz que essa plateia está passiva sentada ali no escuro? Quanto mais concentrada e quanto mais em silêncio está o espectador do espetáculo, mais a cabeça dele está funcionando a mil. Não só em termos de raciocínio, mas de sensibilidade, do corpo, do toque, você está junto daquilo. Essa história de que a gente está muito na frente da televisão e fica conversando o tempo todo, o teatro até permite isso, largar o celular… Esse momento de concentração em que você entra em outro estado de relação com aquilo, essa relação é muito gostosa. E mais ainda quando se trata de uma comédia, essa quarta parede equivale a um voal [tecido leve], não é mais uma parede de cimento.

Por exemplo, logo no início o Dalton Vigh, que faz o diretor da radionovela, chega com algum tipo de preocupação. Não está querendo muita conversa. O sonoplasta que o Alex Gruli interpreta, por sinal de forma incrível, é um cara exagerado, que fala alto, todo para fora, extrovertido e ao mesmo tempo não é caricatural. Ele está querendo informação dele. Tem um jogo uma hora em que o Dalton quer entrar no estúdio e ele pega no braço. É um jogo de repetição, de pequenas pérolas nesse tipo de comédia. Quando isso acontece, a gente que está ali sabe que aquilo não é “natural”. A gente sabe que aquilo é um jogo, uma brincadeira da comédia sendo feita para ser engraçado.

Como é bem feito e no tempo certo, aquilo se torna engraçado. Chega uma hora que o Dalton se exaspera, trata ele grosseiramente e vira as costas dizendo que não vai mais falar com o rapaz naquele dia, mas depois ele volta e pergunta se vai ter mais uma novela. Quando ele faz isso, é uma repetição e fica engraçado. E a gente sabe que ele vai fazer uma terceira vez e entende que aquilo é um jogo. A gente gosta daquele jogo e tem mais do que isso. Nesse jogo inicial, várias informações importantes chegam até o público. Existe uma tensão no ar, tem alguma coisa dentro da pasta, ele sabe de alguma coisa que não quer contar. Nós percebemos tudo isso, ficamos sabendo que é o último capítulo da radionovela, que vai ter uma gravação ao vivo, que vai ter sorteio. Tem uma expertise que é de dramaturgia, que é de autoria, de criar o texto.

A gente está muito acostumado hoje ao palco mais experimental com a linguagem épica, com os recursos chamados pós-dramáticos, com os procedimentos do campo da performance, para citar algumas estratégias de criação. No épico, o ator entra em cena e diz que essa peça é sobre o último capítulo da radionovela, que dentro da pasta tem um monte de cartas de demissão porque as pessoas serão desliados da emissora após essa veiculação, porém os funcionários anda não sabe disso e ele tenta protegê-los. É uma informação dada. Mas, dentro dessa convenção que eles criam, se o personagem entra em cena e você percebe que ele está falando só para dar uma informação que o público precisa saber, isso é péssimo, quebra a sua fruição nesse tipo de espetáculo porque as informações têm de vir do jogo. Tudo é jogo. E essa é uma qualidade essencial desse espetáculo porque nada vem fora desse mecanismo.

A Carol Bezerra faz uma mulher que é bêbada, que está com problemas porque se separou. Há um jogo de repetição de andar para trás tão bem-feito que é totalmente fora do realismo, naturalismo, porque ninguém faria aquilo daquele jeito. E mais do que isso, fazer bêbado em cena é a coisa mais fácil pelo risco de cair no clichê. Mas não, ela cria tomando muito cuidado para não passar do ponto e virar só a gracinha e perder todas as outras camadas que têm nesse espetáculo e as quais a gente também quer ler.

Ainda sobre essa mulher que faz o vai e volta, já na parte final, só para dar um exemplo do que é essa carpintaria – que é o nome que se fala normalmente no teatro –, tem um momento em que o diretor, interpretado pelo Dalton Vigh, é amante da mocinha da radionovela, vivida por Natallia Rodrigues, e vai se separar da mulher dele para pedi-la em casamento. Então, você tem aqui o estúdio e, lá fora, o ator Fernando Pavão, que faz o patrocinador da novela, promove um sorteio em um palquinho armado por causa da repercussão do último capítulo da novela. 

Há uma justificativa para que todos os atores entrem no estúdio: eles estão interessados em saber como esse cara vai fazer esse sorteio lá fora, até porque ele é um produtor que se intrometeu num papel que era de outra pessoa. A Carol Bezerra vai lá fora ver pessoalmente como isso acontece e o diretor a conduz para um cantinho afim de fazer sua declaração de amor. E aqui tem coisas interessantes também porque ele é o amante, estamos na década de 1960, mas na década de 1940 essa mulher iria amar saber que vai deixar de ser amante para ser a esposa. Contudo, ela se recusa porque foi chamada para trabalhar numa telenovela e está pensando na carreira individual. E o próprio espetáculo vai mostrar o quanto isso será difícil para ela, a atriz, porque esse patrocinador passa a tratá-la como objeto. Naquele contexto, fica difícil para essa mulher – que não tem um homem que a ama para a proteger, segundo a moral da época – fazer essa carreira sozinha, no entanto ela faz essa opção.

Daumer De Giuli Natallia Rodrigues interpreta Conceição, atriz que tem um caso amoroso com o produtor da emissora e ele entra em colapso quando ela é chamada para estrelar uma telenovela

O fato é que nessa hora em que ele faz a declaração de amor para ela, se achando, dá tudo errado, porque ela recusa. Então, eles saem de dentro do estúdio, ele não percebe, está de costas, mas o constrangimento que passa é assistido por todo mundo. Isso que falo parece uma bobagem, mas é uma engrenagem difícil de armar porque tem uma expertise de dramaturgia e de direção. É um cenário único, do estúdio da emissora, e tudo acontece ao mesmo tempo e no mesmo lugar, num horário preciso. Tudo vai se encaixando muito bem e você trabalha com o drama e a comédia se intercalando o tempo todo. Nesse momento, depois que ele faz a declaração, o outro descobre que todo mundo será demitido. Enfim, tudo dá errado nessa hora e é uma primeira camada de leitura que a gente faz: a do próprio mecanismo que nos dá um prazer de fruição que é do acontecimento da radionovela e dessa passagem. Numa segunda camada de leitura, que a gente pode chamar de “espelhos da cultura”, é que o título da radionovela que vai ao ar é “Espelhos da paixão”.

Tem uma cena hilária, aquela quando o Dalton fala que vai se separar da mulher para ficar com a amante. O sonoplasta tem um ataque histérico, ele é padrinho do filho deles e diz que filho de pais desquitados vai para a cadeia, vira marginal e isso é uma realidade, um pensamento na década de 1960. O que é interessante é que quando você vê aquilo é engraçado, é cômico, é feito na medida, é real, é verossímil e a gente se reconhece culturalmente nesse espelho. Mesmo quem é mais jovem já ouviu falar nisso a respeito de pais separados, e quem tem a minha idade mais ainda. Ao mesmo tempo te faz pensar como isso está hoje, o quanto nós avançamos, regredimos ou não, enfim, vira um espelho cultural incrível.

Quando Shakespeare vai falar do tempo dele, das disputas de poder na Inglaterra, ele vai para Verona, para Roma, para o Júlio César, enfim, vai buscar mil outras coisas em outros tempos, mas ele está falando do tempo dele. E o mesmo aqui porque essa peça estreou em 2014 e é interessante o Otávio falar o que era escrever essa peça em 2014. Na crítica O espelho do tempo em ‘Caros ouvintes’, publicada no site, a Maria Eugênia vai muito nesse ponto, no sentido de qual era a visão que se tinha da ditadura militar na década de 1960. Havia uma leitura estabilizada sobre o assunto. Quando a peça acontece em 2014 essa noção de ditadura se desestabilizou e isso também desestabiliza a peça de alguma forma, assim como o nosso olhar sobre ela.

Essa camada cultural se estende ainda à condição do personagem homossexual, um ativista político oculto, ficamos sabendo que está desaparecido, e ele não chega para  fazer a radionovela.  E nesse pano de fundo tem a ditadura acontecendo, tem uma passeata que se mistura ao sorteio da televisão em público. Em meio a tudo isso, há uma repressão em cima das pessoas que estão lá. Você percebe as pessoas que estão ali e suas várias atitudes.

O referido rapaz desapareceu porque foi denunciado por alguém, que é a personagem da Agnes Zuliani, a mais conservadora, e ela faz todo um discurso em nome dos valores dela, da família e da religião, ou seja, ela não é uma má pessoa, mas ela acredita naquilo. Tanto que quando um deles, o que faz o galã da radionovela, o ator Léo Stefanini, está querendo passar para a tevê, mas todo mundo diz que ele não vai conseguir, e no momento em que é atacado pelo outro ela o defende, mas também se enquadra numa linha de valores e pensamentos.

Acho que tem uma coisa sutil no comportamento dessa mesma pessoa que denuncia alguém que pode desaparecer por causa disso. E ela o faz porque acredita que ele é um comunista e pederasta. E sendo ele um comunista e pederasta, provavelmente vai desaparecer sob tortura. Mas essa mesma personagem seria incapaz de ver alguém sendo torturado. Sim, existem as pessoas que torturam e querem a morte dos outros, mas a maioria que contribui indiretamente para que isso aconteça não teria essa atitude. A peça não dá lição em nenhum momento e nem tenta resolver, não faz discurso sobre isso, mas ela levanta contradições no plano dos sujeitos e no campo social, e isso é muito interessante.

Outra coisa central na peça é que ela está falando de uma passagem da radionovela para a telenovela, uma passagem que talvez seja inevitável mesmo na história. Por exemplo, eu li um livro sobre teatro de um trabalho de mestrado de uma moça do Maranhão em que ela mostra que houve um trabalho muito forte de resistência dos cocheiros no final do século XIX com a chegada do bonde elétrico. Então a função dos cocheiros, de carruagens, estava sendo extinta e eles resistiram a isso e criaram um teatro. E a primeira peça da qual ela conseguiu registro a respeito data de 1901 e foi apresentada nesse teatro de resistência dos cocheiros.

Então, as passagens históricas são inevitáveis em alguns momentos em Caros ouvintes, o mundo se transforma e as pessoas também se transformam com ele, mas existem modos e modos de fazer essa passagem. Na peça, em alguns momentos é extremamente agressivo, como se diz para o outro que você não tem mais vez, que você é o descartável da história. Afinal, tudo ali envolve seres humanos, mas como é que se faz essa passagem? E tudo isso apesar de a gente estar falando de uma comédia dramática, que proporciona várias camadas de leitura a partir de um mecanismo incrível.

O Otávio Martins é diretor e autor desse texto. O estadunidense Richard Schechner, um estudioso da performance, fala que todo rito humano é constituído do desejo de entreter; ele tem uma parte de entretenimento e uma busca de eficácia. Então ele tem uma intencionalidade, mas também busca entreter as pessoas. Isso faz parte desses ritos, e o teatro floresce quando alcança um equilíbrio muito bom entre entretenimento e eficácia. Claro, o que é eficácia vai variar de acordo com aquilo que você deseja com aquele espetáculo e creio que esse espetáculo tem isso, tem uma dose entre entretenimento e intencionalidade, e eficácia ou aquilo que se busca ali muito interessante.

Daumer De Giuli Parte do elenco do espetáculo que aborda as mudanças da difusão do rádio para a televisão e traz pano de fundo da história do país em 1968, sob ditadura

Otávio, seria interessante você falar sobre a busca de entretenimento. Você foi um dos criadores da Companhia do Latão e a parte de eficácia desse grupo é muito diretamente de um teatro político, engajado, épico, brechtiano. E o Dalton passou pelo Grupo Tapa, que também é um núcleo artístico que trabalha com um tipo de teatro de grupo, que pensa em dramaturgia, que pensa no texto. Então, seria interessante que o Otávio falasse um pouco sobre isso. A peça está publicada em livro e é possível comprar no final da sessão, o que é uma coisa raríssima no teatro. Quando ele fala do cenário no livro, dá as instruções de como deve ser o cenário e fala que é importante que se mantenha como tal porque foi pensado coletivamente pelos criadores desse espetáculo. O Alex me falou que o trabalho foi criado muito já pensando nos atores, foi conversado com eles antes de criar o texto. Acho importante falar desse processo e até onde vai essa busca de entretenimento, no que ela interfere positiva ou negativamente.

Vocês dois são atores, vocês dois trabalham em teatro e em tevê e cinema. E o Dalton, que é formado no Célia Helena, convido também a falar um pouco sobre qual a diferença entre a escola  e o trabalho no Tapa, porque você fez algumas peças de linhagens diferentes, e se fala muito disso, sobre  a escola do palco, cada escola tem as suas virtudes e as suas questões também, os seus problemas, as suas dissonâncias. A gente pode começar com o Otávio, e depois que os dois falarem a gente abre para perguntas, interferências.

Otávio Martins
A ideia de fazer Caros ouvintesveio a partir de um documentário ao qual assisti e que falava sobre a transição do cinema mudo para o cinema falado, nos Estados Unidos. Você tinha imagem, mas não tinha o som e, quando você passa a ter a voz junto com a imagem, você vê a carreira do Chaplin, por exemplo, cair em decadência porque a voz não combinava com aquilo que o público imaginava. Como a gente não teve esse passado do cinema mudo aqui, isso corresponde muito fortemente à figura da radionovela, do folhetim radiofônico.

A rádio no Brasil tem uma função essencial. A primeira grande emissora de rádio é de 1932. Foi o rádio que fez com que o Brasil, de norte a sul, tivesse uma mesma linguagem cultural. O rádio é responsável diretamente por forjar culturalmente aquilo que nós conhecemos como cultura brasileira , cidadão brasileiro, aquilo que nós somos como um coletivo. Teve uma importância fundamental. Em um dos aspectos da cultura, a partir do momento em que a rádio passava a colocar não só música, não só notícia no ar, mas também os radioteatros ou os radiocontos, por meio dos quais você tinha, por exemplo, uma dramatização do Conde de Monte Cristo em que, ao invés de ler, você “dramaturgizava” o Conde de Monte Cristo. As rádios trabalhavam com emissões três vezes por semana porque era difícil fazer, e depois eu explico o porquê.

Aquilo que a gente conhece hoje como telenovela vem diretamente dos folhetins de rádio e depois, no nosso caso, muito especificamente, é diretamente da radionovela, mais até do que o próprio folhetim impresso. Muitas das nossas referências de televisão vêm do rádio. O maior radioator brasileiro na década de 1950 era Paulo Gracindo (1911-1995), e ele conseguiu fazer a transição da radionovela para a telenovela. O Lima Duarte era muito jovenzinho quando fez também essa transição. Janete Clair (1925-1983), antes de ser autora de novelas, era radioatriz e depois virou autora de radionovela e finalmente autora de telenovelas. O Dias Gomes (1922-1999) já era autor de teatro, mas já dramaturgizava, e o Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) também. Então, a gente tem um celeiro de autores  que foram essenciais não só para a rádio difusão,  mas principalmente na transição da radionovela para a telenovela.

E, estudando esse assunto, cheguei a dois problemas, como entender a dramaturgia de folhetim, que é muito específica porque melodramática. Você pega as novelas mais toscas do SBT, coloca mais açúcar e manda ver… Tudo era muito açucarado, os dramas eram muito dramáticos e você tinha os fundos musicais e uma interpretação carregada. Isso foi padrão durante muito tempo. E quando você passa para a telenovela esse padrão cai imediatamente, a coisa exagerada deixa de existir porque passa a ser risível. Quando você vê o cara falando aquilo, você pensa: mas ninguém fala assim.

Mais do que na transição de meio tecnológico, Caros ouvintes fala de um período da transição da imaginação para a imagem pronta. Você não via a cara da mocinha da novela e nem sabia a idade. Você criava na sua cabeça quem era a mocinha, o mocinho, o vilão, não sabia como eles eram… A partir do momento que isso passa a ser visível, a imagem tem de se encaixar com a voz. O próprio espectador passa a pedir esse encaixe. Diferente do rádio, você não podia ter uma mocinha de 40 anos ou um galã que fosse carequinha e gordinho, para usar um clichê. Por exemplo, o Paulo Gracindo só conseguiu ir direto para a televisão porque foi fazer personagens caricatos e era um grande ator. Imagina, a maior radioatriz brasileira não poder fazer telenovela porque era feia… Isso aconteceu com quase todas as carreiras. Carreiras quase que jogadas no lixo…

Havia uma segunda parte que foi o estudo da dramaturgia de folhetim, dramaturgia folhetinesca sobre a qual, por incrível que pareça, há pouca referência, quase tudo se perdeu, as nossas bibliotecas não guardaram muito isso e eu consegui informações com um estudioso do Rio de Janeiro chamado Roberto Salvador, que foi radioator muito jovem e que tinha tudo esse material guardado, capítulos inteiros, bem como estudos cerca do assunto.

Daumer De Giuli O elenco de radioatores de um programa se prepara para se despedir do público em uma grande apresentação ao vivo em palco armado do lado de fora da emissora

Fiz a primeira versão do texto e passei a pesquisar muito tecnicamente como era a emissão de uma radionovela. De cara a gente descobriu um grande problema que era coreografar sonoramente a radionovela. Por exemplo, o som de uma pessoa correndo na floresta, o som de uma porta se abrindo, o som de uma luta de espadas, o som da chuva. Na dramaturgia do folhetim isso já era previsto, o autor já previa e roteirizava aquilo que seria, o que tinha pela frente. Os próprios sonoplastas, depois pesquisando a gente chegou nisso, além de produzirem os seus próprios sons, eles já tinham um espaço armado ali que era meio a floresta, então entrou a floresta, ele já sabe que entra para lá. Havia muita improvisação também. Aliás, a história da rádio brasileira é toda feita de improvisações.

A primeira leitura do texto que eu fiz foi só com amigos autores, estava o Mário Viana, Noemi Marinho, Pedro Garrafa, Franz Keppler e mais outros dois que não vou lembrar agora quem. Mas é uma leitura muito diferente. Quando você chama um ator para fazer uma leitura, ele quer fazer bem porque é a profissão dele, quer mostrar que tem entonação, mas quando você chama um autor para ler,  ele não está nem aí para o timing ou em querer fazer bem: ele ou ela se preocupam com a estrutura. Havia uma preocupação que era muito mais estrutural do que propriamente performática. E eu tinha uma preocupação que era como fazer fidedignamente essa coisa da emissão da radionovela. A Noemi Marinho falou uma coisa para mim que era tão óbvia, mas sensacional:  “Otávio, é teatro. A convenção teatral te dá liberdade e licença poética para você fazer muita coisa”.

Todo o panorama que eu queria construir da década de 1960, isso já foi, já passou. E, quando ela fez isso, entra um pouco do conhecimento pós-dramático e você tem aqueles anúncios de rádio que vão entrando, muda a sintonia e surgem as notícias, que não são necessariamente notícias da época de 1968, algumas pegam um pouco antes que é para você ver a importância, você ficava sabendo das coisas pelo rádio. E aí veio a parte mais prazerosa que foi a de chamar os amigos atores para começarmos a segunda parte da construção do texto.

Você pode construir um texto e falar para o ator fazer do jeito que você quer, mas, como eu sou ator e sou muito enxerido, eu gosto de dar pitaco naquilo que estou fazendo, assim como todos os meus colegas inteligentes também. Às vezes ele tem razão, às vezes não, mas é uma medida que a gente vai chegando juntos. Não faz sentido entrar em um processo de trabalho de teatro se você não estiver trabalhando coletivamente, não faz sentido porque fica só uma coisa burocrática. Tem uma máxima que eu respeito que é: televisão você recebe um contrato, cinema você trabalha com quem você pode e teatro você trabalha com amigos, porque você está ali todo dia com aquele grupo de pessoas que se irmanam, que se familiarizam, um pequeno núcleo familiar que se estabelece ao longo de uma temporada ou ao longo de várias temporadas. Em muitos casos, se estabelece ao longo de várias temporadas e de várias peças porque a gente se repete e trabalha com os mesmos amigos. Nada contra os novos amigos, mas os velhos amigos são sempre velhos amigos.

No processo de criação de Caros ouvintes foi essencial a ajuda de um sonoplasta chamado Betinho Sodré, que é um sonoplasta de cinema e que usa as mesmas técnicas que se usava nas décadas de 1940 e 1950. A chuva que ele faz é bexiga com grão de milho e de arroz, ele usa dois grãos porque é aquilo que vai dar a diferença e vai fazer você ouvir o pingo mais forte e o pingo mais fraquinho ao fundo; ele te dá uma ambiência sonora e tudo isso nós fomos descobrindo juntos. O espaço cênico, por exemplo, foi descoberto junto com todo mundo. Rádio tem de ter duas cabines, e na verdade são três. O espaço cênico em si é uma cabine. Então tem de ter três cabines, uma para onde você tem a emissão sonora, uma para a sonoplastia e outra com microfone para os atores. Todo esse processo de onde fica isso, onde bota aquilo, veio de uma necessidade orgânica dos atores. Muitas das saídas acabam vindo diretamente do contato deles com o texto.

O Marcos Damigo é essencial nessa peça, em todos os sentidos, porque o Marcos é o cara trabalhando com o computador e olhando para a frente. Eu não sei fazer isso, eu cato milho. Então, ao longo do tempo de ensaio, muita coisa que virou texto veio diretamente da boca dos atores, de improviso. Às vezes a fala aproximada é muito melhor do que a fala construída, e claro que isso vai ser absorvido, tem que ser absorvido, mas também tem que ser feita a coautoria disso. No processo de trabalho de teatro eu falo e repito: todos nós somos autores. Todos. A última palavra acaba sendo do diretor pura e simplesmente porque o diretor vai ser o olhar do espectador, ele vai ser o primeiro espectador. Tem gente que defende que o diretor é inimigo do ator, mas acho que não tem inimigo dentro do teatro, fora a gente tem vários, mas dentro, pessoas de teatro, nós não temos não.

A ideia de começar com uma canção veio de a gente pensar como atrair o público porque a peça estreou no Auditório do Masp e a preocupação era pensar como fazer o cara sair de 2014  e entrar na década de 1960. Então veio a ideia de um show da Leonor Praxedes [a personagem decadente] no seu auge, com um coro dos Bambas do Bixiga, uma música de três minutos, mas basta uma música de três minutos para tirar você da avenida Paulista e te jogar na década de 1960. Entra com a luz e aí começa a peça. Você tem uma convenção no intervalo. Na hora que a gente acabou a peça, eu olhei e falei que estava tudo errado e os atores começaram a concordar.  Eu mandei todo mundo embora, segunda-feira a gente ia se ver e eu passei o final de semana reescrevendo a peça a partir daquilo que os meninos falaram. Na primeira versão, por exemplo, a Conceição [a personagem atriz] voltava e não fazia nenhum sentido ela voltar. O personagem vai criando vida a partir do ator.

Tem uma coisa que é muito importante. Quando a cortina está fechada e a gente está no palco se preparando para entrar em cena, abre a cortina e você vê aquela plateia vazia, você se dá conta de uma coisa muito importante. A gente fala do teatro como se ele fosse primordial para o artista, para o ator, mas o teatro é para alguém. Sem público nós somos ensaiadores. Sem público a gente não é nada. O teatro só existe porque existe o público, ele é feito para o público, sem público não tem teatro, sem público não há arte. Então, a hora em que você abre a cortina e não tem ninguém, não tem teatro. A gente não faz teatro para as galinhas. E se for para a câmera, não é teatro, é televisão. O barato é ser feito ao vivo, é ser feito ali para as pessoas.

A intencionalidade é que tipo de história você quer contar para aquelas pessoas, aí a gente usa artifícios como os da comédia dramática. Cada personagem tem um arco, um começo, meio e fim, tem um significado, uma analogia. No caso, por exemplo, da personagem da Agnes, a Dona Ermelinda, em 2014 era impossível, era uma senhorinha reacionária da TFP [Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade], entidade que era a base conservadora e intelectual da ditadura militar e que pregava que as missas tinham de ser feitas em latim, com o padre virado para trás. Quer dizer, são pessoas conservadoras que antes de 2014 parecia tão impossível… E é inevitável você não fazer uma analogia quando vê a dona Ermelinda e não pensar naquelas mulheres com aquela faixa dizendo: “Por que não mataram mais na ditadura?” ou “Somos todos Cunha”. Não era para ter essa gente, era uma brincadeira, era um personagem quase irreal, não era para ser isso que virou, era um passado esquisito.

A peça traz um monte de coisas que são inevitáveis a analogia com o que a gente vive hoje. Primeiro, acho que vem a questão da mudança que você tinha na década de 1960: teve o fim do bolero, o fim das radionovelas, o fim do Rio de Janeiro como capital federal. Houve uma mudança cultural no mundo, a revolução sexual a partir da qual a mulher tem direito ao prazer. Há todas essas transformações. Você substitui o bolero pela Jovem Guarda, a rádio pela televisão, uma série de coisas vai acontecendo e isso acaba sendo repercutido inevitavelmente nos personagens que estão no meio de uma transição social, um processo muito parecido com o que a gente vive hoje.

Daumer Di Giuli Léo Stefanini é ex-galã Péricles Gonçalves que se revolta com o assédio das telenovelas sobre os radioatores

No caso dos radioatores, eles tinham uma carreira muito sólida, em um meio muito sólido também que existia, mas do dia para a noite não havia mais. É muito parecido com o que houve com o jornalismo impresso. O jornalismo existe, o jornalista existe, o jornal existe, mas nem por isso está todo mundo escrevendo para jornal, é o contrário, você tem essa migração para essa nuvem abstrata chamada internet. Quando anunciar que estamos em cartaz, a gente anuncia onde, para quem? Se as pessoas não leem mais jornal, onde a gente vai anunciar? No Instagram, mas essa rede social é uma bolha porque atinge aquele número de pessoas. Mas como é que você faz para falar fora daquele número de pessoas? É a grande questão que talvez hoje a gente atravesse: como é que faz para falar com as pessoas se estamos criando bolhas cada vez maiores? Do que adianta eu falar para a minha tribo se ela já sabe tudo sobre o que estou falando e vou falar novamente aquilo para ela. Como faço para dialogar com as outras tribos? Como faço para sair do meu mundinho e ouvir o outro? É muito fácil atacar o outro porque ele não concorda com a gente, mas quando você passa a pensar que o outro também tem argumentos, podem não ser os seus, mas que ele tem argumentos, sem diálogo você não chega a lugar algum. Não tem juiz nessa história, mas se você não tiver, de fato, diálogo, que é o que eu acho que está faltando para a gente hoje, no sentido de saber ouvir e ser ouvido. Se você não tiver diálogo, você não consegue comunicação. É uma equação absolutamente simples.

Aí vem a questão da comédia. A comédia tem vários timings. Se você pegar, por exemplo, o timing de comédia da [Alex] Gruli é completamente diferente da Agnes, que é diferente do [Eduardo] Semerjian. Para dialogar com esses timings de comédia é a partir do personagem, tem que haver uma funcionalidade do personagem, o personagem tem que ter uma especificidade, aonde ele quer chegar, o que ele quer fazer. No caso, por exemplo, do Eurico, que é o sonoplasta, ele é quase a personificação do que era o trabalhador de rádio, é aquele cara que cria, é o radialista raiz, que é um cara ligado aos movimentos sociais, mas um cara machista. Então, todos os comentários machistas são dados por ele, na boca dele, porque ele é o seu avô, ele é o tiozão do pavê, é aquele cara que fala as piores coisas do mundo durante o almoço, ele foi criado dessa maneira, as piadas eram assim, ele faz piada de mulher, piada de viado. A gente se constrange, mas é a formação dele e o mesmo acontece com os outros personagens, mas eles têm que ter essa funcionalidade, não adianta ser só a graça pela graça. 

Essa cena que você citou, Beth, na qual o Dalton sai da cabine e o Gruli vai puxando-o, nessa temporada, essa cena foi a última a ser ensaiada no palco, inclusive em função do timing de comédia. Eu dou muita liberdade a eles e havia uma piada que não estava funcionando. Na hora eu percebi que era comédia clássica porque um era Branco e o outro, Augusto. E o Gruli estava fazendo o Branco, mas ele era o Augusto. Ele fazia muito bem, mas não funcionava na cena e jamais funcionaria porque ele era Augusto, não Branco. Branco e Augusto, para quem não sabe, é como o Pink e o Cérebro, o Pink é mais bobão e o Cérebro o cara que arma a coisa toda. O Branco é o Cérebro e o Pink é o Augusto, que é o mais feliz, o que entra na parada, acaba se ferrando junto e muitas vezes é por causa dele que a coisa acaba dando errado.

Quando o Marcos Damigo, que é um ator completamente diferente do Dalton, fez uma segunda temporada do personagem, obrigou um reposicionamento do Gruli de sair do personagem Augusto para ser o Branco porque o timing de comédia do Marcos é outro. Então a cena só funcionava porque ele fazia essa transição. E não é apenas ter um bom ator para fazer o papel, você tem de ter um ator inteligente que saiba mudar a coisa e saiba a função final da cena, e a função final daquela cena era mostrar a imagem de uma mulher para um homem na década de 1960. E na fala, o personagem do Vicente [por Dalton Vigh] pergunta se ele manda nela e ele responde que as meninas jovens não gostam mais que a gente mande nelas e que o gerente tinha autorizado ela a usar cheque. E ele responde: “Já fumava na rua e agora vai usar cheque sem marido para assinar?”.  Até a década de 1960, meninas, você só podiam ter um cheque se o seu marido assinasse ou o pai, porque havia uma restrição. Esse espelho de costumes acaba sendo uma brincadeira, mas ao mesmo tempo é um objeto de reflexão e hoje o resultado que as pessoas veem em cena é diretamente fruto de um trabalho totalmente coletivo.

Eu agradeço as palavras, mas fico um pouco assim porque não sou só eu, todo mundo fez parte desse processo. Não é justo a gente falar de um processo que é coletivo e não dar autoria para todo mundo. Todo mundo é coautor, todo mundo é partícipe do processo e isso acontece em todas as peças de teatro. Por exemplo, na Companhia do Latão, faz muitos anos que eu não estou com eles, mas a última vez que tive um encontro foi no lançamento do segundo livro e que conseguimos reunir todo mundo, parecia festa de Facebook, toda a velha-guarda e começamos a discutir quem deu o nome da companhia e lembramos que não foi o Sérgio e sim a Maria [Tendlau]. Eu tinha feito uma peça chamada Ensaio para Danton, no Cacilda Becker, e a gente se utilizava do teatro italiano, do urdimento que subia e descia, a gente colocava o público no palco e fazia o jogo cênico ali com o urdimento. Quando a gente foi fazer o Ensaio sobre o Latão a partir de um texto não acabado do Brecht, A compra do latão, a gente ficou discutindo como ia se chamar e a Maria falou para colocar Companhia do Latão, que é o que a gente faz, e o Sérgio concordou. E acaba sempre sendo isso, o processo é sempre coletivo e só funciona porque é coletivo.

Dalton Vigh
Eu acabo encontrando uma certa dificuldade quando vou trabalhar em televisão e cinema. Em teatro a gente está acostumado a trabalhar juntos, a erguer a peça juntos, até em questão de cenário. Esse tipo de participação já não ocorre na televisão e no cinema. Até na questão das interpretações, no teatro, quando a gente está trabalhando é comum um colega chegar e sugerir que você faça de outra forma, e às vezes funciona mesmo. Claro, não é todo ator que gosta disso, mas quem está acostumado a trabalhar com grupo de teatro até sente a necessidade disso.

O Gruli é um que sempre me ajuda, tem uma grande noção de timing de comédia, então ele sugere e funciona. E isso dá essa sensação de família que o Otávio estava falando. Em televisão e cinema você não tem muito disso, exceto quando já conhece o ator, quando trabalhou junto e tem mais intimidade. Pode chegar e falar  para o cara fazer mais animado, e isso eu acho saudável para a nossa profissão que é tão marcada pelo ego. Quando a gente tem esse tipo de abertura, esse tipo de troca, acho que só contribui, só enriquece o trabalho de todo mundo.

No caso dessa peça, para mim, talvez tenha sido a mais difícil porque tive pouco tempo de ensaio. Eu não estreei essa peça quando eles estrearam. Eu faria em 2014, mas não pude, por problemas pessoais, e agora aconteceu o contrário. Em 2014 o Petrônio Gontijo estreou e agora ele faria, mas teve uma dificuldade na agenda e o Otávio me convidou. Eu aceitei, claro, já conhecia o texto, tinha muita vontade de fazer, mas não participei do processo coletivo. Já cheguei com a peça pronta. De certa forma, tive mais que me adequar ao já criado e colaborei muito pouco. E eu gosto de participar, gosto de falar, de dizer o que não está funcionando. A gente assiste às cenas dos colegas nos ensaios e acaba participando de momentos em que não está em cena.

Então, tudo isso eu perdi. E estreei muito nervoso, tive três semanas efetivamente de ensaio, mas é uma peça muito legal de fazer por conta desse mecanismo, dessa engrenagem que a Beth estava falando. Tem dias em que ela funciona melhor e noutros nem tanto. Porque é um organismo vivo, não é a engrenagem de uma máquina na qual todas as peças estão sempre na mesma posição e os dentes se encaixam sempre. Há dias em que eu não estou bem, estou cansado. Há dias que é um ou outro colega.

A plateia é fator fundamental no funcionamento dessa engrenagem, por incrível que pareça, e não só se manifestando com risadas, é uma coisa da energia mesmo. Em um drama, por exemplo, o público permanece quieto o tempo inteiro, mas você consegue sentir a energia. É difícil explicar isso para vocês, acho que só quem sobe ao palco consegue perceber o quanto é diferente, e na relação com o tempo.

Na sessão de ontem, por exemplo, havia uma pessoa na plateia – a peça começa com um número musical, a Carol Bezerra cantando e a gente de Bambas do Bixiga – e, quando o coro entrou essa pessoa já riu. E riu alto. Todo mundo ficou meio achando estranho, um olhando para o outro perguntando se foi você quem trouxe, se contratou para ajudar… Em comédia a gente usa o que em teatro chamamos de triangulação, que é quando a gente fala o texto e comenta com o olhar para a plateia. Isso só tem na comédia. Em Caros ouvintes não fazemos muito isso, na verdade quase não fazemos isso. A gente olha em direção à plateia, mas nunca para a plateia buscando a cumplicidade. E ontem aconteceu de eu olhar para a cara do Gruli e ele estava se segurando para não rir. Foi exatamente nessa pausa que eu ia começar a falar e não consegui, aí todo mundo começou a rir e a plateia adora quando o ator ri em cena… Outra forma de interferência da plateia é até na duração do espetáculo porque quando você faz uma comédia e as pessoas riem muito, ela precisa durar mais, pois é preciso esperar o povo parar de rir para poder continuar.

Eu sou de 1964, em 1968 eu tinha quatro anos, e uma criança de quatro anos não tem consciência do que está acontecendo em sua volta. Mas como se tratava de um momento muito difícil da história brasileira eu tenho lembranças não muito boas dessa época. Morava em Santos, então a gente tinha essa coisa de brincar na rua, ficava o dia inteiro com a molecada. Uma rua de muros baixos. Era normal as senhoras encostadas nos muros, vendo as crianças e conversando. Lembro-me de uma falando para a outra sobre uma história de um filho que tinha desaparecido. “Você viu que sumiram com o filho da fulana?”. E aquilo me chamou a atenção pelo medo, porque foi tão fora do normal.

No mesmo dia, quando minha mãe voltou do trabalho, ela me puxou de canto e sentou para ter uma conversa comigo, explicando que quando eu fosse para a faculdade não devia entrar em diretório ou centro acadêmico. Ou seja, ela deve ter ouvido a respeito da história e veio me contar sobre um negócio que eu ainda desconhecia. Nem sabia o que era faculdade nem diretório acadêmico nem centro acadêmico, mas eu me lembro disso e ficou marcada na memória. Quer dizer, a gente está falando na peça de um período muito obscuro da nossa história. Em 2014, por sua vez, havia outros aspectos. Agora a gente está lidando com coisas muito mais presentes do que em 2014, em termos de intolerância e de fanatismo.

A minha vó ouvia rádio e eu fui criado com ela, filho único. Então, poder fazer essa peça, participar desse sucesso e ver o quanto ela mexe com as pessoas, não só pelo lado da comédia mas também pelo lado do drama, isso é muito recompensador.  É legal chegar ao final do espetáculo e as pessoas te falarem que nunca riram tanto na vida. Ou sobre o quão fiaram emocionadas. Isso em se tratando da mesma peça. Acho que foi um grande acerto do Otávio, merece todos os parabéns. Gostaria muito que a peça continuasse e a produção viajasse. Tenho certeza de que em outros lugares do Brasil aconteceria a mesma receptividade que em São Paulo.

Daumer Di Giuli Alex Gruli atua como o sonoplasta Eurico, que faz questão de afirmar absoluta lealdade e profissionalismo para com os pares da radionovela ‘Espelho da paixão’

Beth
Vocês são duas pessoas que vivem de sua arte. A gente já teve no Encontro com Espectadores o ator Pedro Vieira falando acerca do espetáculo De volta a Reims, e ele também produz as peças dele, mas tem outra profissão para poder fazer teatro. Vocês fazem teatro, televisão e cinema, conseguem viver da profissão de artista. Gostaria que comentassem a respeito.

Vigh
Eu sempre tive fascínio por teatro, cinema e televisão por causa da interpretação. Sempre tive vontade de viver outras vidas. Eu ia ao cinema sozinho quando era moleque, tinha 11 anos, às vezes via sessão dupla, assistia ao mesmo filme duas vezes; saia de um filme, atravessava a rua e via outro. Eu ficava meio que vivendo aquela cena ali, mas nunca imaginei que pudesse viver disso, não conseguia enxergar como profissão, achava que era um sonho muito distante. Até que por uma circunstância da vida eu resolvi fazer um curso de teatro, mas não comecei no Célia Helena, foi em outro.

No Célia Helena a gente tinha uma proposta de trabalho que era mais parecida com o que tem no mercado profissional, que é escolher um texto, sentar e ler. Para mim, a leitura de texto é a parte mais fascinante do processo de ensaio, é pegar o texto e destrinchar aquilo, ler em conjunto e entender por que o personagem está falando daquele jeito, quais são as motivações escondidas. Quando a gente tem a participação do autor fica mais fácil, mas quando é Shakespeare, os gregos, tudo fica mais complicado, tem que pesquisar, enfim.

Esse processo de mesa, para mim, é o mais fascinante porque nele são feitas muitas descobertas. A outra parte vem quando a gente começa a levantar o espetáculo, ali começa a entender coisas que não vêm muito pelo cérebro, vêm pelo corpo, o que é muito interessante também. E foi no Célia Helena que eu comecei a ter mais contato com esses processos, esses diferentes processos que fazem parte de uma montagem teatral.

Martins
Certa vez conversava com o Rafael Spregelburd [dramaturgo argentino], dirigi um texto dele que se chama A estupidez, e não sugeri nenhuma mudança no texto. Ele me disse que eu era o primeiro diretor que ele conheceu e que não sugeriu mudanças em um personagem. Quando eu perguntei o porquê, ele me disse: “Já imaginou se o Shakespeare estivesse vivo, apresentasse o Hamlet para um ator e este questionasse que a Ofélia ia morrer, que não fazia sentido?”. Às vezes ser um autor morto é um bom negócio.

Abre para participação do público

Priscila Gubiotti – professora
Eu assisti ao espetáculo duas vezes, e com dois elencos diferentes. Minha mãe está aqui do meu lado e ela assistiu três vezes, a gente gosta bastante. Sou professora da disciplina de rádio, convergência em mídias, então sempre que vocês estão em cartaz eu recomendo a meus alunos que assistam porque acho que tudo que a gente aborda na disciplina é exibido ali, e é bem interessante para eles entenderem melhor o contexto. E queria fazer uma pergunta sobre essa questão do podcast, a gente vive em um momento de transição das plataformas de áudio e o podcast vindo com tudo. Que ótimo em uma sociedade tão visual entender que as pessoas querem ter novamente esse contato com o áudio e é muito positivo. Queria saber do autor se você acha que pode voltar a ter uma força tão grande como a radionovela, até porque a gente tem os podcasts seriados, se a gente pode ter esse hábito vindo com mais força.  

Vigh
Obrigado pela pergunta porque eu fico enchendo o saco dele. Creio que a gente deveria fazer radionovela de novo, e ainda mais agora com o podcast. É uma intuição, mas eu acho que daria muito certo.

Martins
Acho que existe sim, inclusive algumas pessoas já estão se articulando em relação a isso. Havia uma diferença que era de formato e isso impossibilitou a gente fazer experimentações durante um tempo. Em podcast você não tem muito tempo. O podcast, assim com a linguagem de YouTube, normalmente você tem três, quatro minutos, os podcasts são curtinhos, são pílulas, eles não são muito longos. Então, quando você faz uma radionovela de uma hora, de 40 minutos, isso envolve um tipo de produção. Quando você faz uma radionovela em pílulas de quatro, cinco minutos, você consegue otimizar a produção disso e ir soltando aos poucos. Talvez a gente já tivesse mais coisas no ar se não estivesse passando por essa crise braba.

Há dois anos eu fui chamado na Antena 1 para experimentar e fazer uma radionovela. Criamos um piloto mas acabou não vingando porque não conseguia patrocínio. Era um projeto bacana. Se tivesse tudo pronto você conseguiria gravar uma radionovela inteira em uma semana, soltando aos poucos. Meu sonho, na época, era ter o Lima Duarte voltando a fazer radionovela.

Acredito que é possível sim fazer de novo, mas você não faz para todo mundo, precisa saber para quem você está fazendo. Público não é um ponto de interrogação abstrato. Público é um determinado número de pessoas, é um segmento. Se você faz um podcast sobre economia, fala com gente de economia. Para quem interessa ouvir uma história dramaturgizada? Eu acredito que para muitas pessoas. Talvez uma das coisas que a gente volte a fazer, por incrível que pareça, é aquilo que faziam com O conde de Monte Cristo [romance do francês Alexandre Dumas]. Lá na década de 1930 as rádios passaram a dramaturgizar livros para que tivessem um alcance popular. Já existem autores que fazem adaptações  para deixarem mais palatáveis, seguindo essa tradição, e para isso virar um podcast acho que falta pouca coisa, basta alguém lançar primeiro.

Valeria Vuletyc
Sou pernambucana. Trouxe minha mãe hoje porque eu gosto muito desse menino [Vigh] e, quando vi ele falando no Instagram que teria hoje esse bate-papo, eu pensei em trazer a minha mãe para ficar mais antenada. Eu sou uma pessoa que escutei muita novela no rádio, meu rádio era pobrinho, tinha de bater para ele funcionar. Ficava em pé ouvindo na cozinha da minha avó, esperando o capítulo todo dia, não saía de casa porque queria ouvir. Quando você fala podcast, é botar essa novela que eu escutava nos anos 1970? Eu não entendi como seria?

Martins
Nas plataformas digitais, como no Spotify, eles têm agora uma parte que é de podcast, que são quase como pequenas estações de rádio. Assim como as pessoas fazem com o YouTube, a mesma coisa acontece com o som. São notícias, são análises, são textos, mas você só ouve, você não vê. O podcast já tem uma boa força nos Estados Unidos há algum tempo e, esse ano, ele começou a vir com um pouco mais de força para o Brasil por conta justamente das plataformas digitais.

Você acompanhava todos os dias uma novela para saber o que aconteceria no dia seguinte ou na semana seguinte. Hoje, quando você entrar na Netflix todo o catálogo de episódios está na sua frente e a mesma coisa acontece com os podcasts. Eles podem ser lançados toda terça, mas se você perdeu não tem problema porque o conteúdo estará lá no catálogo e você acessa, mas eles são mais curtos, não são tão longos, e não porque as plataformas não segurem, mas porque ter o tempo de quatro ou cinco minutos é palatável, é mais ou menos como o tempo de uma música.

Valeria
Eu vi três vezes a peça, não com vocês, vi as montagens anteriores. Eu tenho uma memória afetiva muito grande da minha mãe costurando, nos afazeres domésticos, eu sentada fazendo o dever de casa e ela de olho. Passava na Rádio São Paulo uma novela com o Ézio Ramos e Gilmara Sanches. Então ficou muito na minha memória. E realmente a peça me fez voltar a tudo isso, achei fantástico e por isso tive essa ligação de assistir três vezes.    

Alex Gruli – ator de Caros ouvintesMuito legal estar aqui conversando sobre o espetáculo porque acho que o retorno dele, neste momento, é fundamental. É um espetáculo que tem uma grande qualidade como teatro e estar aqui sendo discutido pelo Teatrojornal, por três jornalistas que eu respeito e que admiro, é fundamental porque esse espetáculo precisa ser encarado como o grande teatro que ele é.

Eu vim para São Paulo em 2000 [de São João da Boa Vista, interior paulista], são quase 25 peças profissionais no meu currículo e esse provavelmente é o melhor espetáculo de teatro que já fiz. E é realmente pela qualidade dele enquanto teatro, analisando a questão da maquinaria, de como ele é composto, de como cada ator se apropria do que faz, de como cada ator foi escolhido especialmente para fazer aquele personagem, de como o Otávio conseguiu conduzir a criação daquilo para que fosse um grande teatro. Quando um ator vai ver e fala que queria estar fazendo isso, é quando a gente tem esse termômetro. Quando vou ver um espetáculo, como Suassuna – O auto do reino do sol [2017, direção de Luiz Carlos Vasconcelos], e desejo estar fazendo, é porque se trata de uma grande montagem, e isso também acontece com colegas que vêm assistir a Caros ouvintes.

Esse espetáculo salta um pouco de nossa bolha, é quase visto como um teatro comercial, mas ele traz esse público justamente para que a gente fale com ele sobre contextos históricos de uma maneira não bandeirosa, delicada, a fim proporcionar outras possibilidades para essa plateia refletir enquanto se entretém.

Lembro-me do comentário de um senhor na plateia, que provavelmente tem uma posição política diferente da minha, que falou sobre o personagem da Agnes: “Tem hora que ela tem razão”. Mas ele enxergou que tem hora que ela não tem… Então, você começa a quebrar um pouco a bolha. Acho que o Caros ouvintes quebra essa bolha por trazer, principalmente para o público do Teatro Renaissance e para quem busca um teatro mais comercial  uma outra possibilidade de visão sem tentar pregar.

A gente inclusive fez algumas inserções na dramaturgia. Há um momento em que o elenco inteiro olha para a frente e solta: “Não é possível que a gente esteja vivendo isso de novo”. Discutimos isso em sala de ensaio, sobre qual seria o tamanho dessa ação, se a gente ia para o enfrentamento. A gente pensou de o elenco inteiro andar para a frente. Mas não foi preciso, chegamos à conclusão de que era só um olhar, dizer a fala e voltar porque não estávamos brigando com ninguém. A gente só quer que as pessoas entendam que existe uma humanidade que precisa ser retomada, que os artistas não está aqui para serem agredidos, ninguém está, e por mais diferente que sejamos. A gente não precisa falar isso de uma forma violenta. E o Caros ouvintes fala tudo isso sem precisar ser violento.

Agnes Zuliani – atriz de Caros ouvintesComo o Gruli, eu fiz parte da preparação e da primeira temporada. Também fico por demais orgulhosa de estar fazendo esse espetáculo, muito feliz mesmo. Para essa segunda vez, eu tinha acabado outro espetáculo de que gostava muito, mas fiquei na dúvida no sentido de como seria refazer isso tudo por causa do momento em que estamos vivendo. Sou bastante militante como pessoa, eu gosto de estar na rua, gosto de estar ativa, tenho conceitos e ideologias. Como diz a Eugênia [Thereza de Andrade], mãe da Mika Lins: “O que eu mais amo na minha vida é a minha ideologia”. Não chega a ser a minha ideologia, mas eu tenho uma preocupação de ser fiel ao que eu penso como pessoa.

Daumer Di Giuli Agnes Zuliani atua como Dona Ermelinda Penteado, que exala conservadorismo e espelha o discurso de ódio no contexto autoritário do país

Então, fazer esse espetáculo em 2014 teve um significado para mim e fazer ele agora é assustador porque era quase uma brincadeira eu dizer as coisas que digo na boca de Dona Ermelinda. Era quase como uma bobagem o que se pensava na temporada de estreia, como se nós estivéssemos a anos-luz disso e, no entanto, retrocedemos em relação àquele cenário. Tudo que eu digo nesse espetáculo, e que é exatamente o oposto do que penso, para mim é dolorido, embora seja engraçado e gostoso de fazer. Mas tem um lado bastante dolorido porque a gente tem um grande ponto de interrogação daqui para a frente.

Tudo que o Otávio e o Dalton disseram eu concordo plenamente quanto ao prazer que é encontrar com esses colegas. Sei que pode ser um chavão, mas é um grande prazer. Eu não conhecia o Dalton, por exemplo. E mesmo com diferenças de conceitos ideológicos, de maneira geral, mas são só diferenças. Nós somos construídos de pequenas e grandes bobagens do dia a dia, são essas memórias que ficam.

Conhecer o Fernando Pavão, a Carol Bezerra, que também não conhecia, o Léo [Stefanini] eu conhecia como diretor mas nunca tinha trabalhado com ele, e isso é prazeroso porque você vai conhecendo e aprendendo a lidar com diferenças. Fazer esse espetáculo hoje, portanto, está sendo muito diferente para mim, não só por conhecer as pessoas, mas pelas interrogações que ele me traz – antes eu tinha certezas. A minha Dona Ermelinda se modificou. Ela era mais uma velhinha e, portanto, conservadora. Hoje, eu falo como qualquer mulher que eu tenho visto andando na rua, pegando metrô ou dentro do seu Taurus [marca de carro]. Eu mudei porque a sociedade mudou. A gente não acreditava que pudesse mudar tanto e tão rapidamente. Eu faço parte de um movimento hoje contra a censura [Artigo Quinto]. Quando é que nós pensávamos em discutir isso de novo? E a peça fala acerca disso, fala sobre a censura, e que bom que a gente ainda está aqui conseguindo falar algumas coisas.

Beth
A Maria Eugênia falou uma coisa muito interessante, que ela não fala na crítica, mas comentou comigo, que essa peça conversa com um público que o teatro abandonou um pouco. Então, também como a pessoa do Taurus, todos nós estamos em processo, mas talvez nem todas as pessoas que são conservadoras ou revolucionárias seja ponto e acabou. Estão em processo. É difícil, todos nós vivemos nessa última eleição uma situação em que a gente brigou com o irmão, com família e que tem uns discursos tão de ódio, tão difíceis de você lidar com eles.

Quando eu vi Caros ouvintes pela primeira vez, não vi em 2014, quando vi agora foi a primeira coisa que me tocou profundamente: o desejo de trazer ela aqui para discutir. Fui perceber que em determinados momentos em que a sua personagem [para Agnes] começa a fazer um discurso, e você perceber que existia um movimento dentro do teatro a seu favor, que combina com ela, mas esse mesmo movimento que silencia na hora em que percebe a gravidade disso… Afinal, alguém sumiu, está sendo torturado. O patrocinador que vai sortear a televisão, ele pode fazer muito discurso, mas, quando viu uma adolescente ensanguentada no meio daquela movimentação, agiu totalmente diferente do discurso. O que estou dizendo é que as pessoas podem se transformar, e se a gente está aqui nesse Encontro é porque acredita nisso, na força do diálogo, da conversa.

Martins
Aquele discurso que a Ermelinda dá, quando ela vai justificar porque que fez, que fala que está do lado do bem, de Deus, da família, do direito à propriedade, esse discurso também foi se modificando. Originalmente, esse texto veio como parte do texto de posse do Marco Feliciano [deputado federal do Republicanos-SP], na Comissão de Direitos Humanos em 2013, quando fez um discurso evangélico, e aqui nada contra a orientação religiosa dos evangélicos, mas estamos falando de uma outra coisa, estamos falando de bancada evangélica que não é evangélica e que não tem a ver com fé, tem a ver com poder. Esse discurso vinha com um trecho do Feliciano e a gente foi mexendo, a Agnes se apropriando até chegarmos no ponto. A primeira vez que surgiu a fala “estou do lado do bem” foi a Agnes quem trouxe. Ela trouxe o “eu sou uma mulher da palavra, da bíblia, e posso garantir que vocês serão arrasados dessa terra”. Quer dizer, ao mesmo tempo que fala que está do lado do bem, ela pode garantir que eles serão mortos e imediatamente vem o discurso de ódio.

Valmir Santos
Aproveitando uma fala do Otávio sobre imaginário e a tradição desse veículo, a imaginação é materializada, ela aparece pronta a ser explorada na experiência do rádio. A gente viu isso em A era do rádio, do Woody Allen, um dos filmes que me marcou como estudante de jornalismo, de comunicação social. Essa ideia de diálogo com o outro. Fazendo um exercício aqui sobre a nossa experiência em 2019, à medida que vocês também transitam por outros canais audiovisuais, pela experiência de contar uma história, da ficção, fazendo um exercício de futurologia aqui… A sociedade corre algum risco de atrofia desse imaginário? A gente vê espaços tão evidentes da ignorância. Isso reflete o empobrecimento da condição do humano ou, ao contrário, as experiências de contação de histórias estão aí para provar nossa ancestralidade oral também? Faço um exercício talvez bruto, mas pensando nisso que você falou de que a internet talvez seja esse lugar hoje do pós-TV, do pós-tudo, isso pode afetar o músculo da imaginação?

Vigh
Com certeza. Eu vejo que a internet se utiliza da desculpa de conectar todo mundo, mas na verdade fica todo mundo se isolando um do outro. Fica cada um com o seu aparelhinho ali, cada um tem o seu celular e o seu computador, fica cada um na sua casa falando com todo mundo, mas está todo mundo dentro das suas casas. Então, isso para mim não é conectar, isso é se isolar. A conexão se dá quando a gente está junto, quando há comunhão, quando estamos no mesmo recinto conversando, olhando no olho. Nós temos alma, a máquina não tem. Acho que a gente está se distanciando do que nos fez humanos.

Fabio de Almeida Prado Martins e Vigh discorrem sobre outros aspectos relevantes que saltam da experiência da obra que estreou em 2014 e desde então cumpriu várias temporadas em São Paulo

Hoje, a inteligência artificial está muito presente nas nossas vidas, existe robô com o qual você até conversa. Uma notícia que não foi muito divulgada, e eu achei essa notícia aterrorizante, tratou de um robô que conseguiu passar no teste de Turing (mede a capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente a um ser humano, ou indistinguível deste, elaborado pelo matemático britânico Alan Turing, 1912-1954]. Quando o cara fica conversando com o robô para ver se ele é um robô ou não. Existe esse teste e é impessoal, uma série de perguntas e respostas que a máquina processa e o analista define se é uma máquina ou não, e uma máquina conseguiu vencer esse teste, o que já é assustador por si próprio.

A outra notícia é que o Facebook fez um experimento há um tempo com dois robôs conversando um com o outro, mas os robôs não sabiam que estavam conversando com um semelhante. Em poucos minutos, esses robôs começaram a estabelecer um código entre eles, uma linguagem própria à qual os humanos não entendiam. Eles tiveram que desligar as máquinas. Eu fico arrepiado de falar nisso porque parece uma coisa tipo O exterminador do futuro. Sinceramente, acho que estamos caminhando para um futuro nebuloso e completamente diferente de tudo que vivemos na História. Por isso é preciso fazer cada vez mais teatro. Porque no teatro a gente aproxima as pessoas. Não tem teatro na internet. A gente tem de começar a sair de casa e a estar mais em contato com outras pessoas.

Martins
Teatro é artesanal.  A coisa mais parecida com a gente é cinzeiro de Durepoxi. Uma vez o Antônio Abujamra [1932-2015] falou como saber se era teatro: se faltar a luz e tem espetáculo, é teatro, porque é uma história que se conta com um ator falando para uma plateia e existem histórias muito bonitas disso. Acho que a coisa mais presente é o fato de sermos artesanais. Tem duas coisas nisso que você falou, Valmir. Banda de rock só funciona quando você tem 20 anos, passou dos 30 vira Rolling Stones. O que depende é a referência. Quanto mais referência a molecada tiver, mais eu agradeço ser antiquado porque tem de vir uma molecada que a gente não consegue acompanhar, é a ordem natural das coisas e é inevitável que isso aconteça.

A segunda coisa, eu vou contar uma história que acredito ter sido mais bonita que vivi até hoje em teatro. Eu fazia um monólogo do Bernard-Marie Koltès, A noite antes da floresta, no Satyros 1 [2006, direção de Francisco Medeiros], e o palco era um pedaço de calçada solta. No texto, o meu personagem dialogava com uma pessoa que você não sabia se era imaginária, se era uma coisa da cabeça dele ou se estava vendo uma pessoa que não se mostrava no meio do público. Era um espetáculo muito intenso. O Domingos Quintiliano ganhou prêmio pela luz com 12 refletores, era tudo em espelho, um refletor batia num espelho que batia no outro e outro, e era a minha cara que nivelava o ponto de claridade que tinha no espetáculo, então ele era muito coreografado.

Certa vez, quando acabou a sessão, a assistente de direção, que era a Tati, me disse que tinha um cara querendo falar comigo, achei estranho mas disse que tudo bem, mas que deixasse a porta aberta porque se precisasse eu pediria socorro. O cara entrou, mais ou menos uns 40 anos, ele olhou para mim e perguntou se eu era louco, gritando, estava muito fora de si. Eu falei que era ator, que era um texto de um autor francês chamado Bernard-Marie Koltès, que já havia morrido, e comecei a situar e pontuei que era para ele se acalmar. Ele sentou e começou a chorar copiosamente.

Depois começou a falar, disse que era bombeiro da Batalhão da rua da Consolação e que todos os dias, na volta para casa, pegava o ônibus na parada do Estadão, então descia a Consolação, passava pela Praça Roosevelt, pegava ali o finalzinho da Augusta e ia para o Estadão. Naqueles dias ele tinha visto muita movimentação ali, estamos falando de 2006, nos primeiros anos em que a praça foi revitalizada por pequenos teatros. Era um ponto degradado, com muita prostituição e droga e passou a ser revitalizada com os pequenos teatros que foram abrindo, Os Satyros, os Parlapatões, até que ele vendo a movimentação, um dia parou e foi conferir o que era aquilo. Foi a primeira vez que entrou em um teatro, pagou R$ 20 e entrou. Foi de cara ver o Koltès.

O sujeito falou que tinha visto aquilo tudo e que não podia mais voltar para a casa daquele jeito. Eu pensei se era porque ele tinha gastado o dinheiro da passagem, mas ele disse que aquilo que eu tinha feito era ele, que o cara que estava no palco era ele, que era a história da vida dele. Quem conhece esse texto sabe o quão irracionalmente é falar que essa é a história da sua vida. Um homem perdido, sem rumo, sem ter onde dormir, sem ter o que comer, no meio da noite enquanto chove e falando com alguém que ele não consegue enxergar. Essa é a sinopse do espetáculo.

O espectador ainda voltou umas quatro vezes. Na semana seguinte, a Tati disse que tinha uma senhora querendo falar comigo. Um senhorinha do cabelo roxo, nunca vou esquecer dela porque estava de luva, aquelas luvas fininhas. Ela disse que gostaria muito de me cumprimentar, disse que morava na frente, foi ver o espetáculo e começou a chorar. O marido impávido ao lado dela, quieto. Ela disse que era a história da vida dela.

Como você faz quando um texto como o do Koltès representa um homem de 40 anos, bombeiro, que nunca entrou em um teatro e, ao mesmo tempo, representa uma senhora já de idade, acostumada a ir ao teatro? Como é que um personagem significa tanto para os dois? Como é que duas pessoas passam a ter identificação com um personagem tão icônico, tão complicado, tão marginalizado como o do Koltès? Esse é o fenômeno teatral.

Esse fenômeno não tem internet que quebre. Você pode ter o artifício que tiver, o aplicativo que você quiser, o filtro que você quiser, mas a experiência do teatro ao vivo é só o teatro que vai dar. Não tem como, não tem substitutivo. Fazemos teatro para todo mundo e se uma pessoa durante a temporada se emocionar com o que estamos falando, então quer dizer que a gente cumpriu uma missão na Terra. Uma fala do Rubens Corrêa [1931-1996] é de que a gente faz teatro porque a gente precisa, mas o teatro não precisa da gente.

Beth
O Augusto Boal costumava dizer que o teatro é arte do futuro porque no futuro será o único lugar onde vamos encontrar gente sem ter a mediação de uma tela. Eu li outro dia também sobre a nostalgia,  estado que gera um tipo de relação em que você tensiona o que é passado, presente e futuro e tende a achar que o passado era melhor. Mas quando você faz esse tipo de tensionamento por meio da nostalgia, isso também pode fazer você pensar que algo aqui era melhor. Afinal, o que tinha aqui que me falta nesse presente, e como é que eu posso construir isso no presente para que tenha no futuro de outra forma, porque não se repete. Então, a nostalgia pode ser também um passo para a utopia e penso que tem tudo a ver com Caros ouvintes. Quero agradecer demais ao Otávio, ao Dalton e a todos os demais atores e integrantes da equipe de criação, muito obrigada a todos vocês do público que vieram.     

Martins
É muito importante a gente ter diferentes pontos de vista. A gente só consegue abrir os olhos para o mundo quando enxerga o mundo com outros olhos. Os nossos olhos são viciados nas nossas necessidades, nas nossas comodidades. É muito importante que você tenha empatia, que você se coloque no lugar do outro e que você construa um novo olhar para o mundo. Um novo olhar para o mundo é possível a partir do momento que você consegue olhar a beleza que existe no olhar do outro, e essa é uma das funções da arte. Se você gosta de arte, vá ver todas as manifestações artísticas. Nós temos o privilégio de estar em São Paulo, um epicentro cultural, tem muita coisa acontecendo e muita gente vendo o mundo com outros olhos. A melhor coisa do mundo é perceber que você estava errado. Veja arte, participe ativamente, é importantíssimo para você e para o mundo.

Daumer Di Giuli Carol Bezerra interpreta a cantora decadente Leonor Praxades na peça que suspendeu temporada no Teatro Vivo em consequência da pandemia

Equipe de criação:

Texto e direção: Otávio Martins

Com: Agnes Zuliani, Alex Gruli, Carol Bezerra, Dalton Vigh, Léo Stefanini, Eduardo Semerjian, Fernando Pavão, Marcello Airoldi, Natallia Rodrigues e Thiago Albanese

Assistente de direção: Marcos Damigo

Cenário: Will Siqueira e Fabio Almeida Prado

Cenotécnica: Rafael Mesquita, Rafael Junqueira, Rafaelle Magalhães e Phelippe Lima

Direção de arte: Fabio Almeida Prado

Música original: Ricardo Severo

Desenho de luz: Matheus Macedo

Figurino: Fábio Namatame, Otávio Martins e Adriana Grzyb

Visagismo: Eliseu Cabral

Operador de luz: Matheus Macedo

Operador de som: Vinícius de Souza

Contrarregras: Danilo Queiroz e Lucas Ramos

Fotos: Heloisa Bortz

Vídeo: Matheus Luz

Assessoria de imprensa: Pombo Correio

Produção: Adriana Grzyb, Léo Stefanini e Will Siqueira

Assistente de produção: Gabriela Fiorentino

Assistente de elenco: Mayara Justino

Design: Aline Moreira e Rodolfo Ferreira

Administração: Adriana Grzyb

Assistente administrativa: Márcia Oliani

Realização: Cora Produções Artísticas Ltda.

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

Relacionados