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Crítica

Maria Cândida, a audaz

Sobrevivente

22.6.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Humberto Araujo

Quanto mais prospecta as origens, mais a atriz sedimenta corpo e voz à memória da avó materna, Maria Cândida, que viveu 30 anos ao ritmo de rotação por minuto de quem alcançou mais que o dobro, a exemplo de Nena Inoue, autodeclarada na casa dos 60 e principal elo nesse entremundos. Em Sobrevivente, as únicas materialidades acerca da existência daquela mulher seriam o respectivo atestado de óbito, ora digitalizado e exibido em tela, e a deliciosa história de que a avó deixava a panela de arroz queimar levemente, de propósito, só para raspar a casquinha e compartir com as duas filhas ainda crianças. Hábito de cozinha que a neta artista herdou inconscientemente ou, melhor, ancestralmente, conforme a experiência de fruir a obra permite constatar.

Como na brincadeira “quente ou frio”, o espetáculo é feito das tentativas, fracassadas ou bem-sucedidas, de reconstituições de começos pela protagonista em torno das presumidas raízes indígenas, posto que é mulher de traços asiáticos, frequentemente associada à ascendência japonesa, mas cujos cabelos ondulados e de fios resilientes a embranquecer conspiraram para que, nos últimos tempos, pessoas nascidas e criadas na cultura tupi-guarani a vissem como uma irmã.

O enternecimento que o espetáculo ‘Sobrevivente’ provoca na maneira como a artista Nena Inoue aviva a memória dos seus, com afeto e com crítica na formação, de consciência e prática feministas, estende-se aos laços de mãe e filho, Pedro Inoue, por extensão laços poético-musical-performativo-engajado no jeito como contracenam em plena missão artística de rememorar com e para espectadores de hoje

As teses e antíteses são destiladas com humor agridoce, dosado em meio a relatos documentais em torno de atos também erigidos sobre alicerces da mentira. Aliás, são de invejar roteiristas de streaming os “golpes de mestre” que o pai, filho de imigrante japonês, e a mãe, de família pobre e semianalfabeta – mortos há anos – emplacaram para namorar e logo mudar da região de Presidente Prudente (SP) para a cidade argentina de Córdoba (ela, clandestinamente). A ponto do casal praticar ilícitos a fim de a mãe passar na prova do curso de enfermagem (não dominava a língua) e diplomar-se três anos depois na universidade local.

Filha desses cambalachos amorosos, por mais que eticamente duvidosos, não é difícil à plateia que acompanha a carreira da atriz e produtora radicada em Curitiba notar o quanto do substrato das artes da cena, de ser o que não se é, já constituía DNA de per si.

Nena Inoue conta ter se inquietado para ir a fundo nessa gênese, por isso faz do próprio movimento de busca a razão de ser do trabalho em parceria com o dramaturgo e diretor Henrique Fontes, do Grupo Carmin (RN). O artista que carrega no sobrenome a insígnia do teatro das fontes à sua maneira – como lapidou na peça documental Jacy (2013), ao contracenar com Quitéria Kelly –, faz da sobreposição de imagens de lugares, objetos, fotos, papeis e pessoas um ativador de emoções e deslocamentos surpreendentes ao longo da narrativa, estimulando a audiência a guiar-se pela filosofia do “Ame-o e deixe-o ser o que ele é”, como na canção de Gilberto Gil, O seu amor.

Por trás do livre fluxo de suscitações, contudo, há método. Enquanto estrutura acasos e achados da atriz no encalço de um octogenário amigo dos pais, quando viveram em Córdoba, entre o fim da década de 1950 e o fim dos anos 1960, atualmente morador em Poços de Caldas (MG), ou de uma tia e um primo localizados em Palmeiras de Goiás (GO), Fontes entretece a relação intergeracional da mulher de teatro com o filho e ator Pedro Inoue, misto de contrarregra, mestre de cerimônia e parceiro de cena, enquanto a mítica e ancestral presença de Maria Cândida é pontuada aos poucos, pela própria Nena. Voz e aura de uma figura mítica, filha de povos indígenas, casada à força na adolescência, trocada por uma mula, enfim, a mulher que aos poucos vai se tornando central na história teve duas filhas com seu “dono”, mas não demorou a mudar de caminho radicalmente.

Humberto Araujo Nascida em Córdoba, na Argentina, e radicada em Curitiba, a atriz e produtora Nena Inoue envereda pela sua origem e retraça os passos da avó Maria Cândida e dos pais Chico e Elita em ‘Sobrevivente’, que conta com dramaturgia e direção de Henrique Fontes, do Grupo Carmin (RN)

É na instância da antepassada vítima de apagamento, este interrompido com distinção pela arte, que Sobrevivente conecta-se com mais evidência a Para não morrer (2017), o trabalho anterior atuado e dirigido por Nena Inoue. A polifonia daquelas vozes de mulheres latino-americanas, originalmente emergidas de narrativas curtas do escritor uruguaio Eduardo Galeano no livro Mujeres, sob dramaturgia de Francisco Mallmann, ecoa agora na evocação de Maria Cândida, a avó, e na costura para dentro e para fora da atuante e idealizadora em primeira pessoa.

Uma das analogias mais bem-construídas repousa no resgate da canção infantil Manuelita, la tortuga, da escritora e compositora argentina María Elena Walsh, à qual Nena Inoue diz que recorria quando era vítima de bullying na escola, por volta dos 8 anos, em Córdoba. Os versos em espanhol falam de uma personagem que caminha “Con tu traje de malaquita/ Y tu passo tan audaz” (Com seu traje de malaquita [uma pedra preciosa]/ E seu passo tão audaz).

Mais adiante, a atriz contextualiza que na fábula da tartaruga, esta ficava brava quando não conseguia as coisas, ao que sua vó, a tartaruga considerada sábia, sugeria então contar até dez, entrar de volta para o casco e esperar que esse sentimento passasse… Conselho que podia fazer algum sentido em criança, mas a adulta que divide essa lembrança discorda um bocado e não quer saber de reprimir a ousadia. Afinal, Todo cambia, como canta Mercedes Sosa na trilha final, citando o pensamento, as estações do ano, o modo de vestir, os cabelos, “Pero no cambia mi amor”. Mercedes Sosa de voz e composições tão bem acolhidas em Para não morrer.

Na liberdade de associação entre a vida ordinária das pessoas e os fios históricos, Fontes e Nena Inoue abrem um flanco na dramaturgia para a insurreição operária-estudantil deflagrada na cidade argentina em maio de 1969, o Cordobaço (ou Cordobazo), um movimento de protestos contra alterações na jornada de trabalho em indústrias automobilísticas. “Saber que eu nasci no epicentro da resistência talvez queira dizer algo sobre a minha origem”, admite a atriz, sobre as reminiscências daquela que também era uma cidade universitária. A dedicação empenhada à arte do teatro pode ter derivado desse ímpeto também. Pedro diz que quando chamava por sua mãe, em criança, costumava ouvir: “Tô fazendo projeto”. Brincadeira à parte, ele cresceu sob esse bordão e testemunhou como ela educou e criou dois filhos vivendo dos tablados e coxias.

O enternecimento que o espetáculo provoca na maneira como a artista aviva a memória dos seus, com afeto e com crítica na formação, de consciência e prática feministas, estende-se aos laços de mãe e filho, por extensão laços poético-musical-performativo-engajado no jeito como contracenam em plena missão artística de rememorar com e para espectadores de hoje.

Humberto Araujo Pedro Inoue e Nena Inoue, filho e mãe, manejam dados da ciência sem prejuízo de lê-los à luz do entretenimento reflexivo no espetáculo que estreou em abril de 2023

Ao lado de Pedro, é como se a biologia potencializasse e contemporizasse a própria angústia de Nena Inoue em aferir a porcentagem genética de sua ascendência indígena, outro aspecto de jogo que não despreza os dados da ciência, permitindo-se lê-los à luz de um auditório televisivo ou radiofônico, uma vez que os tempos se alternam ou se fundem ao sabor de um comercial em um estalar de dedos. O sapateado-relâmpago de Pedro Inoue talvez seja a melhor síntese desse entretenimento reflexivo.

Na sessão acompanhada no Sesc Pinheiros, a atriz contornou mal-estares que pareciam sugerir lapsos de memória. Quando o hiato ameaçava prolongar-se, Pedro interagia dinamicamente na mesma sintonia. Seria natural algum grau de esgotamento. Enfim, era a última noite da primeira semana de temporada de estreia em outra capital. E estamos falando de uma atriz e produtora, esse binômio que lhe é inseparável. Ao cabo, essas sutilezas suspensas imprimiram um halo ainda mais memorável de como Sobrevivente, em sua infinita humanidade, dá margem a espelhamentos e provoca escarafunchar arquivos pessoais do lado de cá também.

Serviço

Sobrevivente

Quinta a sábado, 20h, e domingo, 19h. Sessões extras sábado e domingo, 16h

Teatro José Maria Santos (Rua Treze de Maio, 655, São Francisco, Curitiba, tel. 41 3324-8208)

Entrada gratuita (ingressos distribuídos uma hora antes de cada sessão)

85 minutos

Livre

O espetáculo estreou em 5/5/2023, no Festival de Curitiba. Ficou em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, de 11/5 a 3/6 de 2023. E cumpre temporada no Teatro José Maria Santos de 8/6 a 25/6 de 2023

Humberto Araujo Para Nena Inoue, saber que nasceu no epicentro da resistência de operários e estudantes no movimento Cordobaço (ou Cordobazo), em 1969, contra alterações na jornada de trabalho, “talvez queira dizer algo sobre a minha origem”

Ficha técnica

Projeto: Espaço Cênico

Dramaturgia e direção: Henrique Fontes

Atuação: Nena Inoue e Pedro Inoue

Ator operador/Diretor assistente: Pedro Inoue

Direção de texto: Babaya

Músicas: Lilian Nakahodo

Iluminação: Marina Arthuzzi

Cenografia/figurino/adereços: Carila Matzenbacher

Cenotécnico: Nietzsche

Relato em voz off: Dráusio Galante e João Paulo de Souza

Relato em vídeo: Dulce Cândida de Souza

Assistente de produção/Curitiba: Mattheus Boeck e Alyssa Riccieri

Costureira: Sandra Francisca Canonico

Fotografia: Maringas Maciel e Humberto Araujo

Registros digitais: Trópico Audiovisual (Curitiba) e Igor Marotti (São Paulo)

Designer gráfico: Martin Castro

Assessoria de comunicação: Pedro Neves

Redes sociais: Platea Comunicação e Arte

Direção de produção: Marcos Trindade

Coordenação geral: Nena Inoue

Realização: Teatroca e Espaço Cênico

Apoio cultural em Curitiba: Teatro Guaíra, Padaria América, Baba Salim, O.I.D.E, Quermesse, Novo Café do Teatro, Mahá Mistura Criativa, UFPR e Centro Cultural Sistema FIEP

Apoio cultural em São Paulo: Planeta’s, Piolin, Nutrasom e Apfel

Incentivo: Bosch e Consórcio Servopa Projeto realizado com recursos do Programa de Apoio de Incentivo à Cultura – Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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