29.9.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de setembro de 1996. Caderno A – 4
Na peça “Drácula e Outros Vampiros”, o diretor cria estereótipos para servir de metáfora ao radicalismo da direita, sempre com humor cáustico
VALMIR SANTOS
Discutir o radicalismo do poder neste fim de milênio e a busca desesperada do Homem pela imortalidade da vida com ela é, sempre sob o ponto de vista de um humor cáustico. O diretor Antunes Filho pretende incomodar a sociedade brasileira, mais uma vez, com o seu novo espetáculo, “Dráculas e Outros Vampiros”, que estreou sexta-feira para convidados e cumpre temporada, na Capital.
Personagem encrustado no imaginário ocidental, Drácula entra em cena, com todos os seus estereótipos possíveis, para servir de metáfora ao radicalismo da direita que avança em vários pontos do planeta.
“Ela já se manifesta até na Internet!”, afirma um Antunes preocupado com o clima de “Holocausto” sustentando, entre outros motivos, pela faxina étnica que vem sendo praticada em algumas nações.
O diretor aponta algumas “trilhas obscuras” do mundo contemporâneo, que define como uma grande Transilvânia. “Em nome do nacionalismo, da religiosidade e da moralidade são criados sistemas fascinantes, eternos e vampirescos de manipulação”, argumenta.
“Drácula e Outros Vampiros”, que começou a ser preparado há cerca de 100 dias, é o resultado dos primeiros ensaios de “Nas Trilhas da Transilvânia”, que Antunes chegou a apresentar no ano passado, no Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac), como um esboço.
À época, o encenador classificou a empreitada como “brincadeira”, da qual também participara fazendo o papel de Narrador.
Levou a sério. O espetáculo faz referências aos filmes “B” e às histórias em quadrinhos, por exemplo. Também contém simulacros de Bela Lugosi, Vicente Price e Tom Cruise, remetendo à arte cinematográfica que, como nenhuma outra, construiu o mito em torno dos dentes afiadíssimos do personagem ávido por gotas de sangue. Que aliás, não surgiram em cena. “Seria desagradável”, pondera.
Agora, para valer, Antunes não sobe ao palco. Dirige 27 atores, 22 dos quais participando, em média, há apenas quatro meses do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) – o laboratório de onde Antunes escolhe a matéria-prima das suas montagens.
O ator, para ele, é questão sine que non. E a sua nova leva, com idade variando de 18 a 30 anos, forma base. O elenco é encabeçado por Eduardo Cordobhess (Drácula), Lulu Pavarin (Generala) e Geraldo Mário (Secretário) – este o veterano, com uma década de casa.
“Drácula e Outros Vampiros” encerra a trilogia “fonemol”, como o diretor denominou a linguagem que introduziu a partir de “Nova Velha Estória” e depois usaria em “Gilgamesh”, o último trabalho. Trata-se de uma língua falada inventada, falada aleatoriamente, com sonoridades próximas do alemão e do russo.
Mas o “fonemol” já não rouba a cena. Aparece agora em “algumas situações”, permitindo brechas para a língua pátria. “Estou em trânsito com o português de novo”, confessa Antunes.
O trabalho de voz no CPT se tornou uma obsessão. “Quero chegar a um Tchecov, com o ator falando o português direito, retrabalhando a voz com sentimento, sem ansiedade.”
E a trilogia engloba ainda temas como a relativização do bem e do mal (“vamos colocar o mal no seu devido lugar, como uma complementariedade ao bem”) e a ilusão da imortalidade (“se você sabe que tudo é uma ilusão, não vai se angustiar tanto”).
A parceria com o cenógrafo J.C. Serroni volta a se repetir, com direito a raios e trovoadas. Concessão que Antunes jura não se tratar de um roçar com a imagem. “Não se trata de estética, mas de sintaxe”, explica. “São pequenos efeitos que acabam com as frescuras e vão logo para a ação, como nas HQs.”
Com o processo de individualização que nutriu de culturas orientais, Antunes Filho brande a bandeira da utopia neste final de milênio, em que pese o caos. “Tenho esperança nos eflúvios do Homem e que os políticos se tornem menos corruptos.” É claro, sem jamais perder o humor.
Drácula e Outros Vampiros – Direção: Antunes Filho. Com o Grupo Macunaíma. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Doutor Vila Nova,
245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (aos sábados).
Revelando a coerência artística e humana
Antunes Filho, 67 anos, conversou com os jornalistas na semana passada. Em algumas frases, revelou a coerência do seu pensamento artístico e humano.
VOZ – “Em ‘Gilgamesh’, eu acho que já houve um amadurecimento no aspecto melódico da Língua Portuguesa…Melhor, vou tentar ainda, não sei se consegui…Temos ainda uma prosódia de Portugal com ‘esses’. Quero achar a musicalidade da nossa língua portuguesa, que é linda… O pior texto do mundo com um bom ator fica uma maravilha…”
LUIS MELO – “Queria segurar o Melo, mas não deu…”
EXISTÊNCIA – “A vida, antes de tudo, é um grande playground, onde acontece coisas boas e más.”
TRANSITORIEDADE – “A verdade dura três verões. Tudo está em movimento, como uma onda…”
REGIME – “É preciso avaliar o que é a democracia. Em nome dela, abre-se demais e alguns indivíduos passam a agir como levianos, inconseqüentes. Na democracia, tem que ser enérgico, porque a leviandade é coerente com a ditadura, não com ela. Na democracia, assume-se um fardo de responsabilidade, que custa muito. A democracia é doida.”
MODÉSTIA – “O CPT já fez alguma coisinha por este País…”
NELSON – “Outra vez, estão datando Nelson Rodrigues, assim com fizeram antes reduzindo sua obra à comédia de costumes.’
PESQUISADOR-MOR – “Gosto mais do que faço lá em cima [no sétimo andar do CPT] do que aqui no palco.”
31.8.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Sexta-feira, 31 de agosto de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Para quem tinha dúvidas quanto à excelência do predomínio do teatro francês na programação do 6° Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac), os três primeiros espetáculos superaram todas. Depois de “Decodex”, com a companhia de Philippe Decouflé, e de “Canard Pékinois”, com Josef Nadj e seu Centro Coreográfico Nacional, agora é a vez da trupe de Jérôme Deschamps em “Les Frères Zénith” arrebatar em cena.
Em cartaz no Teatro Sesc Anchieta, “Les Frères Zénith” é uma delicada comédia que traz à tona elementos da pantomima, do clown, do circo, enfim, celebrando o universo onírico, ainda que apresentando tem tão difícil.
Na verdade, a comicidade explícita do quarteto Jean-Marc Bihour, Philippe Duquesne, François Morel e do próprio Deschamps aponta para uma crítica à sociedade de consumo e ao mecanismo da vida moderna.
A engenhosidade do cenário sugere um canteiro de obras, com toda rusticidade do espaço. Os personagens de “Les Frères Zénith” são como mendigos, peões de obras que constroem um mundo particular de brincadeiras. Nus de máscaras sociais, eles se empenham na arte de jogar, de interpretar com a multiplicidade dos saltimbancos (cantam, dançam, tocam…).
O gestual requintado e as gags – a la Chaplin ou Buster Keaton – compõem a originalidade de um trabalho intenso e encantador.
Quem viu “Canard Pékinois” tem chance de conferir mais um trabalho do diretor Josef Nadj. Agora, além da dança-teatro, ele soma a linguagem circense da Compagne Anomalie em “Le Cri Du Caméleon”. O espaço aéreo é explorado com números de acrobacia para um enredo inspirado em “O Supermacho”, texto de Alfred Jarry (“Ubu”).
Les Frères Zénith – Com Jérôme Deschamps e Companhia. Últimas apresentações hoje e amanhã. Teatro SESC Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 256-2322). Le Cri Du Caméléon – Josef Nadj e Compagnie Anomalie. Últimas apresentações hoje, amanhã, 21h; e segunda, 19h. Circo Escola Picadeiro (avenida Cidade Jardim, 1.105, Itaim, tel. 829-1442). Ambos, R$ 25,00.
22.8.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Terça-feira, 22 de agosto de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Inspirado num trágico evento que se deu em sua cidade natal, na Iugoslávia – o suicídio de atores de um espetáculo de grand guignol -, o coreógrafo Josef Nadj e os artistas do Centre Chorégraphique National d’Orléans criaram uma montagem de impacto. “Canard Pékinois” entra em cartaz hoje no Teatro Sesc Anchieta, mais uma atração do 6° Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac).
Agregado à dança moderna e aos exercícios de artes marciais; o absoluto domínio do espaço e das técnicas do teatro, o espetáculo fala de nostalgia, medos, contradições, perplexidades e recordações. No palco, explora-se os limites do corpo e as profundidades da alma.
Iugoslavo de origem húngara, radicado na França há mais de 15 anos, Nadj é um homem marcado pelo sentimento perpétuo de pertencer a lugar nenhum. “No início, eu queria montar uma peça sobre os temas do desaparecimento e da transformação. O espetáculo foi construído em torno da idéia do reflexo, o reflexo de si mesmo no olhar dos outros. Há ainda, da mesma maneira, o humor, também ele um dos fios condutores”, afirma o diretor.
A companhia Northern Broadsides, que faz hoje a última apresentação de “Sonho de Uma Noite de Verão”, no Teatro Sesc Pompéia, consegue manter o vigor do clássico de Shakespeare sem a paramentação tecnológica dos tempos que correm. Isso implica, por exemplo, abrir mão completamente de efeitos que cubram a ação dos atores.
É como que uma versão rural. Explica-se: a Broadsides vem do norte da Inglaterra e o diretor Barrie Rutter faz questão de manter um certo regionalismo no seu trabalho.
Figurinos coloridos, atores contracenando calçados com tamancos, uma característica do Norte inglês, e uma projeção vocal impactante, responsável pela intensa presença dos intérpretes, enfim, o “Sonho” que se vê aqui nada tem que ver com a versão alegórica de Cacá Rosset e seu Ornitorrinco. Os ingleses fazem uma interpretação de fôlego.
Canard Pékinois – Texto e direção: Josef Nadj. Com Centre Chorégraphique National d’Orléans). Estréia hoje, 21h, no 6º Fiac. Até domingo, sempre 21h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 25,00. Sonho de uma Noite de Verão – Com a Northem Broadsides. Último dia hoje, 21h. Teatro SESC Pompéia (rua Clélia, 93, Vila Pompéia, tel. 864-8544). R$ 25,00.
28.7.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 28 de julho de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Importa menos razão ou busca de discernimento em se tratando do teatro de José Celso Martinez. A experiência viva da interpretação, na troca com o público “instalado” (talvez seja esse o termo apropriado) na arena vertical do Teatro Oficina, é de uma injeção catártica rara na cena brasileira.
Seus atores, “possuídos” pelos deuses recorrentes do palco, Dionísio à frente, envolvem o espectador com energia primitiva. Assistindo-se ao trabalho do Uzyna Uzona, fica a sensação de retrocesso ao estado primeiro da comunhão humana – se é que tal dimensão existe -, no qual máscaras sociais não tinham vez.
Em “Ham-Let”, em “Mystérios Gozozos” e agora em “Bacantes”, Zé Celso conquista pela coerência com sua proposta cênica. Impossível se abster; não penetrar seu rito. O encenador, aquele que lançou o Oficina nos anos 70, com “Roda Viva”, enterra a indiferença.
Àqueles que abandonam o embate no primeiro intervalo, sob a desculpa do “tempo”, resta as “incômodas” imagens na cabeça. As cinco e tantas horas, porém, depõem pela suspensão do deus Cronos.
Sim, seus personagens se despem. Mas a nudez como querem alguns, presos ao olhar erotizado, nada tem que ver com a história. Muito além do tecido epitelial, estão os poros da percepção, dos quais William Burroughs já disse a que veio.
Libertária é também uma tradução perfeita para a transcendência do prazer. “Esta cidade vai aprender quanto custa desprezar a orgia”, brada Dionísio (Marcelo Drummond), a certa altura da montagem.
As sensações, como se disse, não são apenas da ordem do olhar. Estão, por exemplo, na uva umedecida pelo vinho, amaciada na boca da plebe-platéia, ou no “estraçalhamento” de quem abre o corpo para as bacantes.
Eurípedes escreveu “Bacantes” (Bakhai) em 406 a.C. É a história de Dionísio, divindade que rege o teatro. Sua chegada à cidade governada por Penteu (Fransérgio Araújo) estabelece o conflito da tragédia.
O nervo da montagem adaptada por Zé Celso é o enfrentamento de Dionísio e Penteu. A ponte entre o clássico e o Brasil dos sem-terra surge com alegoria peculiar.
Zé Celso, como Tirésias, encarna a figura do mestre de cena. Seus longos cabelos brancos, a la Bozo, o corpo esguio, fragilizado pelos recentes problemas de saúde – tudo isso amplia sua presença. Vence, sempre, pela paixão ao teatro.
“Bacantes” é das suas recentes montagens a que mais comunica. Vai às entranhas para dar mensagem. E o faz sem a “ditadura da orgia”. O segredo de tudo isso tem muito a ver com a musicalidade. O reggae, o jazz, o blues, a bossa nova, o carnaval, entre outros ritmos, garantem o pulso graças ao elenco, aos músicos excelentes e à produção (sem medo de ser “super”) bem cuidados. Vale a pena experimentar o rito que, ao final, celebra a vida.
Bacantes – Sexta a sábado, 21h; domingo, 19h. Com Pascoal da Conceição, Denise Assunção, Alleyona Cavali, Vera Leite, Fabiana Serroni, Tânia Albissú e outros. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 606-2818). R$ 20,00 e R$ 10,00 (estudantes). Duração: cinco horas.
18.7.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 18 de julho de 1996. Caderno A – capa
Só uma atriz com a maturidade de Marília Pêra atinge a dimensão artística e humana da soprano Maria Callas em “Master Class”
VALMIR SANTOS
Um dos grandes desafios da interpretação teatral está nos personagens mitificados pelo tempo. Paulo Autran, por exemplo, esperou “amadurecer” para encarar Rei Lear. Dificilmente se encontraria no Brasil um atriz à altura de Marília Pêra para encarnar no palco a diva Maria Callas. Em “Master Class”, a magnitude da primeira e a ressonância histórica da Segunda acabam se harmonizando. O resultado é a dimensão artística elevada à sua condição maior.
Tudo está centralizado na palavra e no gesto da soprano. Mesmo para quem não conhece Maria Callas, seu lado pessoal e artístico chega, ao público de maneira envolvente, emocionante.
“Master Class”, ou “aula magna”, como queria a tradução de Millôr Fernandes para o texto do norte-americano Terrence McNally, reproduz as aulas ministradas por Callas entre 1971 e 1972, em Nova York. (leia texto abaixo)
Nesses encontros, “La Divina” transmitia uma síntese do seu trabalho, marcado pelo rigor absoluto. Desde a postura corporal até a “filosofia” da arte do canto, Callas era irretocável. Escolada pela vida amorosa emaranhada, ela dispensa o psicologismo gratuito.
Essências e perfeição eram metas perseguidas – e não raras vezes alcançadas.
A platéia era frequentada por nomes como Franco Zeffirelli e Plácido Domingo. Daí a peculiaridade do encontro, mais para um espetáculo. Irônica, sagaz, dona de personalidade marcante e condenada a fazer aflorar sentimentos entranhados, no palco e fora dele, a Maria Callas que Marília Pêra apresenta depõe a favor das fortes emoções.
Jorge Takla, o diretor, deixa a atriz com as “máscaras” e a “nudez” da soprano. Nas suas interfaces (a autoritária, a sentimental, a neurótica, enfim) fica difícil aplicar o rótulo. É a Callas humana, conduzida pelos deuses da cena, que nos chega. Tão frágil e forte, uma artista arrebatadora.
Em “Master Class”, por mais que o humor pontue as cenas, algumas deliberadamente abertas, é impossível dissociar a figura da mulher atrás da artista. É um libelo ao canto, ao mesmo tempo em que abraça o direito de levar a emoção às últimas conseqüências.
Bravo, Marília Callas!
Cecília Sofia Anna Maria Calogeropoulous, filha de imigrantes gregos, nasceu em Nova York em 2 de dezembro de 1923. O amor pela música surgiu cedo. Aos 4 anos, extasia-se ao som de uma pianola mecânica; aos 8 já interpreta melodias ao piano; e aos 10 canta árias de “Carmem”. Aos 15 anos faz sua estréia no papel de Santuzza de “cavalleria Rusticana”, em Atenas.
Sua grande oportunidade surge em 1942. Substitui uma soprano da Ópera Real, no papel de Tosca. Casa-se com o industrial Giovanni Battista Meneghini, rico e 30 anos mais velho.
No Scala, seu lar artístico por uma década, conhece Luchino Visconti, que a dirige em cinco óperas. Ela sempre declarou que Visconti lhe ensinou “a arte de representar”.
Em 1953, perde 35 quilos. Fica elegante, linda e atraente. Seis anos depois, separa-se de Manghini e torna-se pública a sua relação amorosa com o armador grego Aristóteles Onassis, um dos homens mais ricos do mundo. Totalmente apaixonada, Callas dedica grande parte do seu tempo à intensa vida social, festas, iates, afastando-se do canto, prejudicando sua carreira e voz.
Tempos depois, Onassis casa-se com Jacqueline, viúva de John Kennedy. Diante de tal rejeição, Callas volta ao palco em 1973. Não recupera a paixão de viver, lutar e criar. Isola-se em seu apartamento, em Paris, onde morre de parada cardíaca em 16 de setembro de 1977, pouco depois da morte de Onassis, grande amora e última esperança.
“Jennifer” reflete sobre criação do ator e violência
O processo de criação de um personagem demanda suor que o público, em sua maioria, não se dá conta. Proporcionar emoção todas as noites não é fácil. O grupo Proteu, de Londrina, está em cartaz na Capital com “Jennifer – O Amor É Mais Frio Que a Morte”, montagem na qual a metalinguagem, o teatro dentro do teatro, permite uma noção da vertigem do ator diante da criação.
Não bastasse a contundência do texto de Randy Buck e, claro, o espírito libertário do cinema alemão Rainer Werner Fassbinder (1955-1982), a peça brinda o espectador com os “laboratórios”, como são chamados os ensaios.
Roberto Lage, convidado pelo Proteu, converge com a proposta estética do grupo paranaense. A concepção de “Jennifer” prioriza a organicidade; a palavra como extensão da movimentação física. A violência causada pela superestrutura das sociedades é mimetizada por Buck em seus personagens. As relações são atritosas, mesmo quando justificadas pela bandeira amorosa. A temática, como se vê, é essencialmente fassbinderiana. Os 43 filmes do ceneasta deixam explícito sua intenção de jogar holofotes sobre o lado escuro do ser humano.
O choque diante da montagem não é gratuito. O palavrão, a lascívia, o beijo “que ousa dizer seu nome”, enfim, tudo conspira para a poesia nua e crua. O porão do Centro Universitário Maria Antonia e a iluminação, com um quê cinematográfico, acentuam o clima “bas-fond”, onde personagens transitam em meio a sacos de lixo.
“Isso aqui não é velório, é teatro”, brada Jennifer (Maria Fernanda Coelho) – no texto do autor norte-americano o protagonista é um homem, encarnado por uma atriz na versão brasileira.
É o tipo de diretor, de certa forma estereotipado pelo tempo, que quer distanciamento brechtiniano, psicologismo stanislavskiano e o escambau são desprezados em nome de uma “verdade interpretativa” que rompe o tênue fio que separa vida e palco.
Tal dualidade está representada nas figuras de Margot (Viviane Eloy) e da própria Jennifer. A primeira deixa o teatro amador (fez “Senhorita Júlia”) e mergulha no inferno pessoal se apaixonando pela diretora. Pura submissão. Fassbinder ofusca Strindberg.
Ao buscar o sentimento, nem que seja pela via da dor, o espetáculo instiga pela sinceridade e força com que é interpretado pelos jovens do Proteu.
Jennifer – O Amor é Mais Frio do que a Morte – De Randy Buck. Direção: Roberto Lage. Com grupo Proteu (Paulo Braz, Viviane Eloy, Regina Fonseca, Valéria Victório, Remir Trautwein, Cacá Scolari, Roni Lima e Maria Fernanda Coelho). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Centro Universitário Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, tel. 255-5538). R$ 12,00 e R$ 6,00 (estudantes). Até dia 28.
13.6.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 13 de junho de 1996. Caderno A – capa
VALMIR SANTOS
Em seu encerramento, no último fim de semana, o Festival Internacional de Londrina (Filo) registrou lotação em todas as apresentações do grupo argentino De La Guarda. Houve muita expectativa em torno do espetáculo “Período Villa Villa”, com acentuação nos números aéreos – atores suspensos entrecruzando o espaço do ginásio de esportes da cidade paranaense.
O trabalho do De La Guarda remete imediatamente ao do grupo catalão La Fura Del Bals (“Suz/o/Suz” e “M.T.M.”), caracterizado pela representação interativa com o público. Assistir a um espetáculo do La Fura é um convite ao experimento das sensações humanas em seus limites. Seus atores se utilizam, por exemplo, de situações de violência simulada, nas quais o espectador vê sua condição passiva diminuída diante da fúria sonora e visceral. Não raro, sai-se de uma apresentação ensopado d’água, com respiração ofegante e a sensação de que esteve no olho de um furacão.
Com os argentinos, a aventura não é menos empolgante. São atores, dançarinos, músicos, acrobatas e alpinistas. Transformam 75 minutos de descargo de adrenalina.
Quatrocentas pessoas se concentram em pé num espaço pequeno, corpo a corpo. Uma espécie de antecâmara, na qual são submetidas a paisagem visual no teto que lembra efeitos lisérgicos. De repente, o colorido se dissipa e surgem os homens dependurados em cordas.
As paredes de pano caem e o público se vê como que diante da placenta. Daí em diante, é emoção literalmente suspensa. Homens e mulheres, como ioiôs, se aproximam das cabeças abaixo e, em seguida, lançam-se para o alto. A ocupação também se dá no espaço do chão, com muita correria e música. A trilha é executada ao vivo, com tambores rítmicos pulsando do início ao fim. O grupo, claro, cuidou de vender seu CD na saída.
“Período Villa Villa” não quer testar o espectador. Seu laboratório, ao contrário, convida-o para a viagem coletiva, onde o medo e os impactos sensoriais também se convertem em prazer – estético até. Os diretores Diqui Jares e Pichon Baldinu, mais os seis atores-dançarinos e o diretor musical Gaby Kerpel revelam um entrosamento fora do comum (o risco da vida passa despercebido), apesar de apenas três anos de convivência.
Outro espetáculo acompanhado por O Diário foi “Carmem Fúnebre”, com o grupo de teatro de rua polonês Biuro Podrozy. Utilizando-se de pernas-de-pau, holofotes e fogo – a encenação acontece à noite -, trata-se de uma história tocante; um retrato do mundo contemporâneo onde conflitos esparsos configuram praticamente uma terceira guerra, e sem fim.
A guerra da Bósnia e outros enfrentamentos étnicos, mais a onda nacionalista e intolerante que vem pipocando na nova ordem mundial (vide o deputado ultradireitista Jirinovsky, na Rússia), são as principais abordagens do espetáculo.
Texto, figurino e a concepção geral de “Carmem Fúnebre” surgem dos próprios atores, dirigidos por Pawel Szotak, que fundou o grupo seis anos atrás. Atualmente, o Biuro é considerado um dos destaques do teatro alternativo na Polônia.
O enredo surgiu a partir de depoimentos de ex-refugiados. A encenação ritualística, com a presença da Morte, celebra a crueldade. A cena dos soldados mutilados, com os atores em pernas-de-pau, simulando muletas, cegos mendigando moedas, enfim, é um quadro aterrorizante. O silêncio, a frieza do cenário emaranhado de ferro, o vigor da interpretação do elenco jovem e totalmente entregue, fazem de “Carmem Fúnebre” um estado de luto anunciado com esperança na humanidade; pois paradoxismo tem sido seu principal movimento ao longo da história.
Na dança, o destaque foi a companhia do norte-americano David Dorfman. Há cerca de dois anos, o Movimento da Dança, projeto do Sesc em São Paulo, enfocou o dueto. O que se viu em Londrina foi uma exploração criativa e exaustiva dessa modalidade.
Em “approaching no calm couting laughter”, “Horn”, “Bull” e “Sky Down”, Dorfman trabalha complementariedade e oposição dos gestos e movimentos. Mais que isso, tenciona a relação palco-platéia com mira apontada para a sociedade, quando aborda o preconceito homossexual.
Dorfman costuma dizer que é um atleta que se transformou em dançarino. Isso fica patente em suas coreografias. Os corpos são bastante exigidos e a respiração é precisa. O casamento entre a fisicalidade e a leveza plástica fazem dos seus trabalhos um campo fértil para a arte da dança.
Ao todo, 17 grupos estrangeiros e quatro brasileiros participaram do 9° Festival Internacional de Londrina. Organizado por Nitis Jacon há 25 anos (teve sua edição nacional ampliada), o evento continua mantendo sua condição bienal de um dos principais painéis da cena internacional no Brasil.
6.6.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 06 de junho de 1996. Caderno A
Na 9ª edição, Festival Internacional de Teatro reúne 17 grupos estrangeiros na cidade paranaense, até o próximo domingo
VALMIR SANTOS
Apesar do recuo de última hora do seu principal patrocinador – o Bamerindus -, o Festival Internacional de Londrina (Filo) superou dificuldades e traz à tona a sua 9ª edição. Desde 28 de maio, até o próximo domingo, 17 grupos estrangeiros, além de quatro companhias brasileiras, estão se apresentando na cidade paranaense. São espetáculos de palco e de rua.
Para os últimos quatro dias do evento, estão programados os grupos Jácara (Espanha, com “El Aumento”; François Kahn (França/Itália), “La Veduta di Delt”; De La Guarda (Argentina), “Período Villa Villa”; Ilotopie (França), “La Gens de Couleurs”; Biuro Podrózy (Polônia), “Carmem Funebre”; David Dorfman Dance (EUA), com várias coreografias; Flash Marionettes (França), “La Cour de Tous les Miracles”; Camaleó (Espanha), “Medusa”; e a atriz brasileira Márcia Duarte, “Reta do Fim do Fim”. O Diário entrevistou algumas atrações, por escrito.
A companhia de David Dorfman chega com a bandeira da vanguarda norte-americana. Foi fundada há dez anos. O coreógrafo de define como um atleta transformado em dançarino. Combina “arriscados movimentos atléticos com um delicado vocabulário gestual”.
Dorfman não vê com tanta definição a divisão entre a dança e a prática esportiva. “Ambos têm seu objetivo”, acredita. O atleta quer vencer. No palco, o ator-bailarino quer comunicar-se. “Na tentativa de alcançar esses objetivos, são atraídos pelo movimento puro, honesto, econômico, detalhado, explosivo, passional e revelador”, enumera o coreógrafo. “Quando isso acontece com atletas ou atores dançarinos, é muito expressivo”. Traz cinco coreografias.
O grupo russo Derevo já foi rotulado pela crítica como trabalho de “butô”, “teatro silencioso”, “nova dança”, “teatro da crueldade”, entre outras definições. Segundo a produtora, Maria Zagar, é uma situação comum. Tudo começou em 1988, numa proposta que se opunha ao método stanislaviskiano. É um processo que tem muito a ver com a linguagem do clown, com a fisicalidade, a pantomima”, diz.
Seus atores só conheceram Kazuo Ohno, o criador do butô. Há cerca de dois anos. “Temos muito do cômico, absurdo, grotesco, com muita associação visual”, descreve. A miscelânea é um campo fértil para a criação, mas também constitui empecilho em se tratando de mercado. A não-especificidade nem sempre é bem aceita por causa do “cabresto” da expectativa de público. Em “The Rider”, o Derevo conta a história tragicômica de um velho palhaço, em suas últimas horas de vida.
Um dos destaques do Filo 96 é a trupe argentina De La Guarda, que faz do espaço cênico a sua principal razão de ser. Em “Período Villa Villa”, espetáculo que encena pela primeira vez no Brasil, utiliza vários recursos. O De La Guarda esteve no Brasil, no final de 1994, participando do projeto “Ópera Mundi – Um Sonho Bom”, encenado no Maracanã.
A recorrência mais imediata, em se tratando de proposta cênica, são as performances do grupo catalão La Fura Dels Baus, também conhecido do público brasileiro.
Gabriella Balberio, uma das atrizes do De La Guarda, afirma que as semelhanças entre seu grupo e o La Fura estacionam em alguns elementos em comum. Exemplo: o grupo argentino busca a ocupação total do espaço (não necessariamente teatro), enquanto o catalão se baseia principalmente no chão e no alto. “Compará-los é como comparar Shakespeare a Beckett”, ironiza Gabriella, referindo-se aos dramaturgos inglês (clássico) e irlandês (contemporâneo). Outro detalhe: ao contrário da La Fura, o De La Guarda não estiliza a violência na relação com o espectador.
Entre os eventos paralelos, acontecem os workshops com os próprios encenadores participantes, como o português João Fiadeiro, o americano David Dorfman e a brasileira Maura Baiocchi, especializada na dança butô.
O Filo 96 também abriga, neste fim de semana, reunião com o chamado Grupo dos 11. São personalidades do meio teatral brasileiro que vão discutir melhorias nas leis de incentivo à cultura.
30.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 30 de maio de 1996. Caderno A – capa
Em “A Arte Secreta do Ator”, Eugenio Barba e equipe realizam pesquisa sobre as bases da interpretação
VALMIR SANTOS
Um elemento tem passado incólume ao longo da história das artes cênicas: o ator. A humanidade assistiu à anulação do texto, da cenografia, da música, a “derrubada” da Quarta parede, enfim, às várias possibilidades antiteatrais que, ao cabo, têm lá sua essência. A presença física do ator, porém, sempre esteve arraigada no palco de todos os cantos do planeta. “A Arte Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral”, recém-lançado em conjunto pelas editoras Hucitec e Unicamp, surge como uma colaboração preciosa para o entendimento da evolução da interpretação.
Escrito pelo italiano Eugenio Barba, um dos proeminentes teóricos da atualidade – fundador do célebre grupo dinamarquês Odin Teatret (1954) e discípulo do polonês Jerzy Grotowski-, não se trata de obra com bula definitiva sobre como subir ao palco e fazer o teatro vir à baixo, como se diz dos talentos que arrebatam.
Ao contrário, “A Arte Secreta” do título o continuará sendo, porque a própria concepção do trabalho é a de que a margem para a criação teatral, no que ela tem de profundamente humana, é infinita. Daí, sua riqueza.
Barba, em conjunto com o também pesquisador Nicola Savarese, mais a equipe de pesquisadores ligados à Escola Internacional de Antropologia Teatral (Ista, sigla em inglês), fundada por ele na Dinamarca (1979), trazem à tona desde conceitos básicos sobre anatomia até os fundamentos de energia, por exemplo, quesito que envolve questões físicas, biológicas e espirituais.
Os russos Constantin Stanislaviski, o alemão Bertolt Brecht, o belga Vsevolod Meyerhold, os franceses Etiene Decroux e Antonin Artaud – todos mortos – ou a dançarina indiana Sanjuka Panigraghi, que há poucos anos participou do Festival Internacional de Londrina, são exemplos de nomes seminais do teatro e da dança mundial.
Aliás, uma observação reveladora: ao longo das 272 páginas, a expressão ator-bailarino aparece o tempo todo. A representação e o movimento estão umbilicados – um, invariavelmente, como extensão do outro.
O subtítulo, “Dicionário de Antropologia Teatral”, reflete o conteúdo. O livro traz uma introdução de Barba, como que costurando os assuntos a serem abordados. Em seguida, em ordem não necessariamente alfabética – cenografia, por exemplo, vem antes de técnica -, desponta um verdadeiro passeio-deleite pelo universo da interpretação.
São meandros normalmente restritos ao âmbito da pesquisa do ator, que o público em geral desconhece e pouco se dá conta do tamanho da empreitada.
Dilatação, dramaturgia, equilíbrio, equivalência, historiografia, mãos, montagem, nostalgia, olhos e rosto, omissão, oposição, pés, pré-expressividade, restauração do comportamento, ritmo, técnica, texto e palco, treinamento e visões constituem os demais tópicos abordados. Como se vê, são termos ora pinçados pela razão, ora organizados sob o plano da subjetividade, da intuição peculiar do ator-bailarino.
Com o amparo de belas ilustrações e fotos (algumas coloridas), preenchendo boa parte das páginas, e um texto pouco contaminado pelo hermetismo, o que se tem é uma bela e rara pesquisa.
A Arte Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral – De Eugenio Barba e Nicola Savarese. Tradução de Luis Otávio Burnier (supervisão), Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti, Hitoshi Nomura, Márcia Strazzacappa, Waleska Silverberg e André Telles. Lançamento conjunto das editoras Hucitec (telefones 543-0653 ou 530-9298, em São Paulo) e Unicamp. 272 páginas. R$ 75,00.
16.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 16 de maio de 1996. Caderno A – capa
Como em suas peças, ator emociona o público com o nacional e o popular no show “Na Pancada do Ganzá”
VALMIR SANTOS
Falar de Antonio Nóbrega é massagear o ego. Não dele, mas dos brasileiros. A desesperança que solapa a alma, a crua realidade das ruas, o sem-caso dos homens públicos, enfim, todo esse lodo cristaliza-se diante do gigante artístico que contamina a todos – crianças, velhos, adultos – com sua fé transformadora de cultura.
Não é conformação. É pura ação de espírito. Arregaçar as mangas, pau na máquina, ops, no corpo. A organicidade que dá voz às cantigas, modinhas, frevos, toadas e valsas.
Com a leveza do nome da rua onde ergue seu ninho – a Purpurina – e a transgressão e coragem da santa que batiza a vila paulistana – a Madalena –, Nóbrega impregna seu Espaço Brincante de uma brasilidade tocante.
A atual temporada do show musical “Na Pancada do ganzá” se reveste da mesma intensidade emocional que caracteriza suas peças teatrais. Resulta em mais um mergulho nas raízes do genuinamente popular brasileiro. Desta vez, o depuro artístico faz par com Mário de Andrade.
No final da década de 20, o escritor empreendeu uma viagem pelos cantões do Norte e Nordeste brasileiros, recolhendo fragmentos de manifestações musicais de domínio público. Mário de Andrade, certamente embalado pela Semana de Arte Moderna de 1922, como que já previa o processo de desmemorização que o País pagaria por conta do progresso – se é que se pode fazer esta relação assim, de chofre.
Pois coube a Nóbrega e aos amigos compositores também pernambucanos (Raul Moraes, Getúlio Cavalcante, Levino Ferreira e Wilson Freire) o trabalho de pesquisar o material legado por Mário de Andrade. A releitura é o show, apresentado inicialmente em 1993, em curta temporada no Memorial da América Latina, e agora em cartaz, no formato definitivo.
Chico Antonio, um cantador de coco, ou coquista (que embala rodas de pagode com canto e percussão) do Rio Grande do Norte, cativou Mário de Andrade à época. Ele cantava e tirava versos na pancada do ganzá, como se diz do chacoalhar do instrumento, um cilindro de alumínio com grãos dentro.
A sonoridade fanhosa de “Loa de Abertura” dá início ao show e o cantochão arrepia. “Senhores desta sala/Licença eu vou chegando, eu vou/A voz e a rabeca/o coração cansado, eu vou”. Sim, é a mesma entoada por João Sidurino, via Guimarães Rosa, em “Brincante” e “Segundas Histórias”, as peças teatrais.
É a senha: Tonheta está ali, no palco, a abraçar a rabeca, salteando daqui pra lá, de lá pra cá. As “tonhetices” do compositor e recriador musical Antonio Nóbrega. Daí, a dimensão ampliada da sua arte.
Cantos, toscos, transporta-nos a um Brasil senão esquecido, com certeza posto à margem do curso das suas almas vivas. Felizmente, haverá de existir sempre uns bastiões como o pernambucano Capiba, 92 anos, aqui presente com a composição “Serenata Suburbana”. Felizmente, o projeto musical de Nóbrega se encontra em CD, uma produção independente à venda no local.
“Na Pancada do Ganzá” tem a elegância e excelência do quinteto Zezinho Pitoco (sax alto, tenor, clarinete e percussão), Toninho Ferragutti (acordeon), Edmilson Capeluppi (violão 7 e cavaquinho), Dany (flauta e sax tenor) e Guello (percussão). São músicas com aquele perfil eminentemente felliniano, metidos em seus ternos bege. Há também a participação do filho de Nóbrega, Gabriel, e da esposa Rosane Almeida, respondendo por três inserções de danças.
Discorrer sobre arte tão belas é tarefa difícil – traduzir em palavras o que chega pelo plano subjetivo, pelo espírito afortunado em compartilhar de minutos tão sinceros e verdadeiros.
O público, mesmo sentado, segue o compasso dos pés e da cabeça movidos pelo ritmo da música e do canto. O sentido da comunhão, despressurizada de conotação religiosa, jorra dos corações e mentes. Atinge o pico ao final, quando a ciranda de roda se instala: público e artistas dão as mãos.
Em qual show noturno encontram-se crianças à beira do palco? Pois no Brincante elas estão lá, todas as noites. Não necessariamente filhos do casal Nóbrega/Rosane ou de amigos. São crianças trazidas pelos pais, tios, avós. Acompanhar “Na Pancada do Ganzá”, “Brincante” ou “Segundas Histórias” é como retornar à tenra infância. Ela não se perde de todo e acompanha seus “encostos”.
Miudezas do cenário. Os movimentos minúsculos e fragmentos do corpo de Nóbrega, que não perde a voz e nem o fôlego. A noção do ritual popular acentuada pela luz. A energia que emana da sintonia do quinteto com o intérprete. São algumas observações, talvez nos planos do visível e do palpável, que permitem assimilar um pouco da magia que é embarcar na nau deste “brincante”.
Na Pancada do Ganzá – Show musical com canções populares recolhidas por Mário de Andrade, em 1927 e 1928. Com Antonio Nóbrega, Zezinho Pitoco, Toninho Ferragutti, Edmilson Capeluppi, Dany e Guello. Participação especial de Rosane de Almeida. Espaço Brincante (rua Purpurina, 428, Vila Madalena, tel. 816-0575). R$ 15,00 (preço único). Estacionamento conveniado rua Fradique Coutinho, 1483 (R$ 4,00). Até 25 de junho. CD custa R$ 15,00 e está à venda no local.
1.5.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quarta-feira, 01 de maio de 1996. Caderno A – capa
No elenco jovem, o ator de 73 anos demonstra fôlego e talento para vencer o desafio de interpretar personagem de Shakespeare
VALMIR SANTOS
Rei Lear é dos personagens mais emblemáticos de Shakespeare. Nele, o autor combina a crueldade e a cadência humana. Octogenário, é o próprio condutor da vida que lhe resta. Num gesto de infantilidade, abdica do poder e das finanças, entrega-os de mão beijadas às filhas megeras e, de quebra, condena ao ostracismo a caçula que o tem com maior carinho. A lei da causa e efeito é implacável.
Tamanha densidade criou uma espécie de mito em torno do personagem. Para interpretá-lo, requer-se um ator com bagagem suficiente para sintetizar a tragicidade inerente. É com essa expectativa, alimentada pelo próprio, que Paulo Autran estrela a montagem brasileira de “Rei Lear”, em curtíssima temporada na Capital (até domingo).
Vê-lo em cena, de fato, compensa. Seu Lear casa-se com os 73 anos de idade. Cambaleando, reflete fisicamente o desequilíbrio do rei shakespeareno . Ator transita com vigor entre os jovens do elenco. Além disso, possui fôlego suficiente para percorrer o cenário espaçoso (duas rampas móveis concentram as principais cenas).
É o viés da loucura, porém, que melhor representa a força do intérprete maior do teatro brasileiro contemporâneo. A “fúria senil” de Lear, que envelheceu sem descobrir a sabedoria, salta aos olhos. Paradoxalmente, já que o bardo inglês faz da contradição uma regra, é nos instantes de puro delírio que o rei se mostra mais lúcido.
Quando caem o véu de Goneril (Karen Rodrigues) e Regan (Suzana Faini), as filhas impostoras, ele já está em processo adiantado de mergulho interior. Num lampejo, se arrepende de maldizer Cordélia (Raquel Ripani). Mas agora é tarde e as mortes são como que inevitáveis. A aura da unanimidade não perturba o trabalho de fôlego de Autran.
A montagem de Ulysses Cruz traz soluções que o diretor encontrara em “Péricles, o Príncipe de Tiro”, leitura instigante e até popular de Shakespeare – a peça foi vista por mais de 100 mil espectadores.
Ulysses coloca os três músicos, responsáveis pela execução ao vivo, no plano superior. As cenas se desenrolam no plano propriamente do palco, além das rampas concebidas pelo cenógrafo Hélio Eichbauer (mesmo de “Péricles”).
A intensa movimentação do elenco, acrescida da indumentária e iluminação, configuram uma estática cinematográfica. Ulysses Cruz está interessado em tornar Shakespeare acessível nos tempos modernos. Consegue. Lança mão de recursos visuais, mas não esquece do trabalho de ator.
Em “Rei Lear”, a preparação fica por conta de Hélio Cícero (Conde de Gloucester), que vem de anos no Centro de Preparação Teatral (CPT), com Antunes Filho.
Outro exemplo de cuidado com a atuação se expressa nos exercícios de tai-chi-chuan, realizados ao início e final da peça. Diante de tanto desequilíbrio dos personagens, os movimentos de leveza constituem um alento.
Rei Lear – De William Shakespeare. Direção: Ulysses Cruz. Com Roberto Matos, Guilherme Weber, Adriano Garib. César Augusto, Kadu Karneiro, Marcos Suchara, Sylvie Laila, Valéria Zeidan e outros. Hoje a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel. 258-3616). R$ 30,00. 135 minutos. Até domingo.
Samuel Beckett (1906-1989) pouco concede ao espectador. Suas peças são marcadas por uma estrutura fragmentada, que dispensa o início-meio-fim. Os vazios, os silêncios prolongados não por acaso. “Alguma coisa segue seu curso”, repete o submisso Clov em “Fim de Jogo”. É assim. Enredar pelos fiapos da existência, eis o fascínio e repulsa em Beckett. Seu texto incomoda e tangencia.
A montagem em cartaz no Centro Cultural São Paulo, dentro do projeto “Beckett 90 anos” – ele completaria no último dia 13 – é coerente com a atmosfera peculiar do dramaturgo irlandês. O que há de mais inusitado e absurdo, para fazer jus ao estilo teatral criado por ele e pelo romeno Eugène Ionesco nos anos 50, foi devidamente assimilado pela concepção e interpretação.
O diretor Rubens Rusche, profundo conhecedor da obra beckettiana, traduziu “Fim de Jogo” em parceria com Luiz Benati. O jogo de palavras tem importância capital e, felizmente, flui muito bem, dispensando-se o tom hermético.
Márcio Aurélio, premiado diretor de “A Bilha quebrada”, revela talento na cenografia. A rusticidade acinzentada das três paredes, “respiradas” por apenas dois buracos nas extremidades, de onde se vê, respectivamente, a terra e o mar, é puro Beckett.
É no elenco, porém, que “Fim de Jogo” brilha por excelência. Linneu Dias (Hamm) e Antonio Galleão (Clov), nos papéis principais, dominam com precisão a interpretação de papéis de pouca sugestão e muita introspecção. Para viver o velho cego e paralítico Hamm e seu criado escravo convém uma interiorização de gestos, de respiração, de tempo, enfim, a técnica é imprescindível.
Hamm e Clov, ou Dias e Galeão, estabelecem uma estranha relação afetiva. A interdependência absoluta. Obsessão e neurose alimentam um a outro. Não bastasse os dois, Beckett cria os pais do paralítico, Nagg (Nivaldo Todaro) e Nell (Bete Dorgam), ambos com pernas amputadas e vivendo, cada um, com o que restou do corpo enterrado em lata de lixo.
Também Bete e Todaro, com a expressão restrita aos músculos da face, com a abertura da lata de lixo, consegue catalisar a atenção do público e se inserem com firmeza na “farsa cotidiana”.
Farsa, claro, porque Beckett, antes de mais nada, parece rir da ridícula condição humana em certas ocasiões. “Fim de Jogo”, a montagem, optou por acentuar o humor corrosivo com o qual o autor acena com os diálogos.
“Isso não está muito divertido”, observa Hamm. “Não há nada mais engraçado do que a infelicidade”, dispara Nell. “Toda humanidade pode renascer de uma pulga”, profetiza Hamm, outra vez. Assim, é impossível não se envolver com tal distanciamento.
Fim de Jogo – De Samuel Beckett. Direção: Rubens Rusche. Com Linneu Dias, Antonio Galleão, Nivaldo Todaro e Bete Dorgam. Quarta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 4,00 (quarta) e R$ 8,00 (demais dias). Até 23 de junho.