12.1.1997 | por Valmir Santos
Diário de Mogi – Domingo, 12 de janeiro de 1997. Caderno A – 4
Cenógrafo e diretor conta histórias e dá verdadeira aula de teatro em “A Mochila do Mascate”
VALMIR SANTOS
São Paulo – Quem assistiu ao filme “Sábado”, de Ugo Giorgetti, lembra do defunto que dividia o elevador enguiçado com os tipos hilários de Tom Zé, André Abujamra e Otávio Augusto. Gianni Ratto amou o papel do velhinho nazista, cujo corpo era equilibrado de mão em mão no espaço exíguo. Ele confessa que prefere ficar “do lado de cá”. Detesta atuar diante das câmeras ou no palco porque não consegue decorar. Santo paradoxo! O homem de “A Mochila do Mascate” não tem nada de pálido e mudo. O livro de memórias revela a atitude quixotesca adotada na vida e no teatro, desde os tempos da Itália, onde nasceu, até sua chegada ao Brasil, em 1954.
Gianni Ratto viajou de Gênova ao Rio de Janeiro, 14 dias de navio. Veio a convite da companhia de Maria Della Costa e seu marido Sandro Polloni. Já trazia consigo a caixa de papelão forrada de lona marrom: a mochila, hoje bastante surrada, na qual guardaria tudo que pudesse materializar suas lembranças.
A bagagem da experiência também era invejável. Na formação de Ratto, constava encontros com verdadeiros monstros sagrados da história do teatro Ocidental, como os cenógrafos Gordon Craig e Josef Svoboda, o ator Jean-Louis Barrault e a soprano Maria Callas, sem contar o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Depois de trabalhar com Maria Della Costa, foi para o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), também em São Paulo, integrando o time de diretores italianos que se revezaram na casa (Adolfo Celi, Ruggero Jaccobi etc). Dirigiu verdadeiras divas, como Cacilda Becker, Bibi Ferreira e Dercy Gonçalves, a cada qual dedica um trecho em seu livro.
Muitos o consideram ranzinza, conservador. Mas quem disse que a condição de artista maior é lá muito confortável? Gianni Ratto é um intransigente, sim. Desde que abraçado à ética humana, fazendo-a transitar dentro e fora do palco, não arreda pé. Ao abrir sua “mochila”, não faz concessões. Do pai que trata como “canalha” (abandonou a mãe quando ele era criança) até a cutucada em atores e público em geral – um caça e outro adora aplaudir (“ninguém mais vaia”, lamenta), a postura crítica é uma constante.
Aos 80 anos, o próprio não compactua com o incenso comum de jovens diante dos mais velhos. Acredita que o acúmulo de experiências ajuda, mas a efervescência criativa em moços e moças constitui fato relevante – para alegria dos detratores. Não concebe um espetáculo sem “beleza formal” – atenção maior ao espaço cênico e à interpretação que reverencie a palavra, a poesia.
O que se depreende de “A Mochila do Mascate” é a força e o esmero com que Gianni Ratto lida com a chamada carpintaria teatral. Em certa passagem, diz que se reunisse todas as madeiras dos cenários que já criou, daria para montar uma cidade. Além da visão excepcional de cenógrafo, tem o privilégio de dirigir. O domínio total lhe permite flutuações como a comédia ligeira “As Bruxas” e o recente drama “Morus e o Carrasco”. Naquela comandou atrizes globais, em montagem convencional, enquanto nesta acentuou sua preocupação estética com o espaço cênico.
Entre os principais trabalhos de Ratto, alguns integrando a parte iconográfica do livro de memórias, estão: “A Tempestade”, de Shakespeare; “A Moratória”, de Jorge Andrade; “O Santo e a Porca”, de Ariano Suassuna; e “O Mambembe”, de Álvares Azevedo.
Relatos pessoais, centrados principalmente na delicada relação com a mãe e na marcante passagem de sete anos pelo exército italiano (herdou daí o rigor pela disciplina), tendo deserdado na Grécia (coincidentemente (?) o berço da arte de representar) vão se misturando ao teatro do passado, do presente e do futuro. “Às vezes dá-se uma certa confusão em minha cabeça e o que mais lúcido, mais claro revela-se aos olhos e ao pensamento é o que mais longe no tempo está”, afirma.
E as suas histórias são costuradas assim, sem uma evolução cronológica. Como nua conversa de roda, onde o mais velho ganha voz. Tem-se o perfil humano e o artístico, numa verdadeira aula magna de teatro. O texto, escrito sem intervenção de um “ghost writer”, é cruel e denso.
Em alguns momentos, carece de menos rebuscagem. Mas até aí, ao lidar com a palavra escrita, Gianni Ratto é transparente demais. Enquanto empunhar sua espada, a vida (“Não tenho, nem nunca tiver medo da mortem, da minha morte”), esse Dom Quixote do teatro brasileiro não desistirá da batalha no mercado de sonhos, pois sua mercadoria é de primeira.
22.12.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 22 de dezembro de 1996. Caderno A – 4
Biografia escrita por Yan Michalski, recém-lançada, conta trajetória do diretor e ator polonês que marcou o início da modernidade no teatro brasileiro
VALMIR SANTOS
São Paulo – O nome de Ziembinski foi definitivamente cravado na história do teatro brasileiro em 1943, quando montou “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Os palcos brasileiros finalmente ingressariam na fase moderna. Era o marco inicial da convivência deste polonês com artistas que aprenderiam tudo com ele, da técnica de interpretação à concepção do espetáculo. Atingiu maior popularidade justamente nos últimos anos de vida, quando trabalhou na Globo, dirigindo e atuando em novelas e casos especiais. Este personagem maior ganha uma biografia antológica em “Ziembinski e o Teatro Brasileiro”, originalmente escrita pelo conterrâneo Yan Michalski, crítico do “Jornal do Brasil”, morto em 1990, e com organização final do estudioso Fernando Peixoto (leia texto abaixo).
Lançamento da Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia (Hucitec) – responsável por importantes títulos na área teatral -, com apoio do Ministério da Cultura (Funarte), o livro, um catatau de 507 páginas, preenche um vácuo na memória contemporânea. Não bastasse o resgate de Ziembinski, alijado pelos “novos” que roubaram a cena a partir dos anos 60 e 70, classificando-o de ultrapassado, a pesquisa minuciosa de Michalski faz uma apanhado da trajetória do teatro nacional. Na evolução dos 37 anos em que Ziembinski viveu no país, tem-se concomitantemente o nascimento dos primeiros núcleos de produção, como Os Comediantes, no Rio, e o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em São Paulo. Os depoimentos de quem conheceu o exigente encenador polonês, e sobretudo a reunião das críticas da maioria dos seus espetáculos, são informações que revelam o homem por trás do artista, muitas vezes confundindo-se com este. Pois Ziembinski, depreende-se, foi o primeiro e, pode-se dizer, último romântico dos nossos palcos.
Atores como Procópio Ferreira e João Caetano, lá nos anos 30, já se esforçavam heroicamente, diga-se de passagem, para construir um modelo de espetáculo a partir das parcas notícias que chegavam da Europa. Mas a cultura teatral, como a que vemos hoje, de um público cativo aos vários gêneros, só começou de fato quando o jovem Ziembinski, então com 33 anos, deixou seu país de origem depois da invasão alemã, em 1941. Por essas maquinações do destino, não fosse o nazismo, o mestre da cena não teria descido abaixo do Equador e a modernidade teatral poderia ter atrasado ainda mais.
Quando ele chegou, havia não só um público por formar, mas atores, diretores, cenógrafos, iluminadores… Ziembinski encontrou um campo fértil para a catequização. O expressionismo alemão de Reinhardt, a biomecânica de Meyerhold, o “método” de preparação do ator de Stanislaviski, enfim, se alguém tinha ouvido falar desses teóricos, provavelmente não passou da pronuncia complicada. E foi o “Zimba”, como era conhecido entre os amigos, o introdutor da noção de unidade do espetáculo. Até então, as peças se resumiam a uma “estrela” razoável e vários “satélites” que serviam de “escada”. “
Vestido de Noiva”, com Os Comediantes – grupo carioca que protagonizou o “vestígio visível do primeiro grande movimento teatral” -, chocou em todos os sentidos. Há 53 anos, o texto de Nelson Rodrigues fazia uma divisão em três planos (da memória, da realidade e da alucinação). O diretor polonês aproveitou a deixa para “viajar” sobretudo na concepção plástica da montagem, dando as diretrizes para o cenógrafo Santa Rosa e assumindo o desenho da luz, com mais de uma centena de mudanças – um verdadeiro show de efeito para a época. Aliás, Ziembinski também sugeriu algumas mudanças no texto de Nelson Rodrigues.
E era assim, injetando novidade estética num primeiro momento, e aos poucos implantando sua filosofia de trabalho (foi com ele que os atores começaram a ensaiar antes de pisar no palco), Ziembinski acabou consolidando a transferência da sua formação européia. De quebra, deu asas à figura do diretor como epicentro do fazer teatral. Antunes Filho, um possível paradigma ziembinskiano para os dias de hoje, foi assistente dele durante um tempo e aprendeu tudo sobre o rigor.
De 1941, quando desembarcou no Rio, até o final da década de 50, Ziembinski catalisa atenção pelo seu conhecimento da encenação. Sem dúvida, a parceria com Os Comediantes (Maria Della Costa encabeçava o elenco) foi a mais frutífera. Comandando o grupo carioca, ele era literalmente o mestre-de-cena: nos ensaios, assumiu uma pedagogia na qual acabava reproduzindo para os atores os gestos e inflexões de voz que desejava em cada personagem. No afã de ensinar, servia de modelo.
Seu universo era vasto justamente porque conhecia o palco como ninguém. Além de dirigir, Ziembinski também atuava. Desde sua cidade natal, Wieliczka, a poucos quilômetros da antiga capital polonesa, Cracóvia, costumava encarar os desafios dentro e fora do palco. Nunca se incomodava em trabalhar 15 horas e depois continuar conversando sobre teatro, noite adentro. Essa entrega total colaborou para a aura mística que carregava.
Assediado pelo empresário Franco Zampari, criador do TBC, Ziembinski acabou cedendo ao convite e mudou-se para a rua Major Diogo, em São Paulo. Dava início, na década de 50, à fase mais “comercial”, querendo sintonizar o público elitista com as peças em voga na Europa. Mas a convivência com o TBC da turma de diretores italianos como Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi e Gianni Ratto, fez com que ele conhecesse melhor a realidade brasileira.
Quando Ziembinski chegou ao país, não sabia bulhufas de português. O domínio da língua e a descoberta da gente local foram obstáculos que venceu “vestindo” a camisa brasileira: naturalizou-se 13 anos e meio depois. Defendia a idéia de que tanto o texto como a concepção dos espetáculos têm que embutir uma realidade do público que está na platéia. Ou seja, preocupava-se em adaptar textos estrangeiros levando em consideração o tom verde-e-amarelo.
Mesmo vindo de um país onde o teatro já tinha uma história e na posição de professor-sabe-tudo, o encenador não se acomodou. Seria muito fácil impor, mas ele preferiu a troca. Quando descobriu o Brasil, se permitiu aprender tudo de novo.
Depois do TBC, passou pelo Teatro Cacilda Becker (TCB). Mais do que um trocadilho, que gerou muita confusão, trata-se de um “casamento” dos mais felizes. Cacilda criou sua companhia, junto com o marido Walmor Chagas, numa espécie de dissidência do TBC de Franco Zampari, cujo caráter empresarial nem sempre coadunava com a proposta artística. Cacilda já havia trabalhado com Ziembinski em montagens anteriores, como “Pega-Fogo” e “Arsênico e Alfazema”. Portanto, ficou vislumbrada com o mestre.
Nos anos 60, Ziembinski atravessou um dos períodos mais difíceis. Contrário à politização do teatro e à demasiada carga ideológica que tomava conta dos novos grupos, como Arena e Oficina, posicionados à esquerda e mobilizados pela iminência da ditadura militar, Zimba se viu isolado. Uma situação parecida com a de Nelson Rodrigues, patrulhando por causa da simpatia com a direita.
Se hoje boa parte dos artistas do teatro vêem a televisão como um mal, “necessário” para alguns, foi justamente o veículo que abriu as portas para um Ziembinski que perdeu a pungência criativa nos palcos. Nos anos 70, ele chegou a dirigir o departamento de casos especiais da Globo, paralelamente ao trabalho teatral em algumas novelas.
Nessa fase, o teste já ocupava menos espaço. Abriu sua janela inspiradora para a pintura, que adorava desde criança, e para a fotografia. Até que a morte veio em 1978, um câncer no intestino. Tinha 70 anos (47 de teatro, 32 de Brasil).
Dias antes, declarava, como que premonitoriamente: “A minha maior alegria, minha grande força, é sentir-me vivo. Isso não tem nome, pode ser teatro, cinema, pintura, canto, poesia, qualquer coisa. Daí que não me preocupo com o tempo que me resta, a cidade, a velhice, a morte que me ameaça.
” Nostálgico, sem abrir mão do distanciamneto crítico, “Ziembinski e o Teatro Brasileiro” é um documento precioso. São vários os depoimentos que discordam quer do homem “ditatorial”, quer do evento artístico. Sobressai, contudo, o conteúdo humano daquele que abandonou a pátria e adotou outra sem diminuir sua paixão por uma arte que sabia superior.
Ziembinski e o Teatro Brasileiro – De Yan Michalski. Organização final: Fernando Peixoto. Editora Hucitec (rua Gil Eanes, 713, São Paulo, tel. 530-9208). 517 páginas. Preço médio: R$ 50,00.
Yan Michalski fez trabalho de fôlego
Yan Michalski chegou ao Brasil sete anos depois de Ziembinski, em 1948. Também como o célebre diretor e ator, veio em conseqüência da perseguição nazista. Quando morreu em 1990, aos 58 anos, deixou concluído sua pesquisa sobre a vida do conterrâneo e, conseqüentemente, sobre a história do teatro brasileiro. Foram cinco anos colhendo depoimentos e buscando toda a documentação necessária, inclusive no levantamento da vida do artista na Polônia. Ziembinski tinha um filho e chegou a visitá-lo quando, morando no Brasil, passou seis meses na terra natal, onde montou algumas peças com atores locais.
Formado em artes cênicas (direção) e atuando também no jornalismo, Michalski foi um dos maiores críticos do país, trabalhando no “Jornal do Brasil” (Rio), à altura de um Décio de Almeida Prado (“Estadão”).
A viúva Maria José Michalski convidou o estudioso Fernando Peixoto para a redação final das cerca de mil páginas que o crítico havia registrado na pesquisa de campo. Colaborou com Peixoto a jovem diretora Johana Albuquerque. Em “Ziembinski e o Teatro Brasileiro”, Yan Michalski apresenta um trabalho de fôlego, com destaque para a cobertura da crítica teatral ao longo da carreira do biografado.
8.12.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de dezembro de 1996. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Antonio Nóbrega, Denise Stoklos e a Cia. Parlapatões, Patifes e Paspalhões são convidados do 6° Festival de Teatro Universitário da USP, que começou sexta-feira e prossegue até dia 15, no Centro Cultural Maria Antonia, em São Paulo.
Com espetáculos convidados, Nóbrega apresentará “Figural” (dança) e “Na Pancada do Ganzá” (show musical), enquanto Stoklos mostrou “Des-Medéia”, um monólogo. A trupe Parlapatões, de Hugo Possolo e Alexandre Roit, se incumbirá de realizar uma oficina. Tanto as apresentações como os eventos paralelos (palestras, oficinas) têm entrada franca.
Nesta sexta edição, o Festival de Teatro Universitário, iniciado em 1991 em São Paulo, volta à Capital depois de percorrer várias cidades do Estado. A intenção é firmar-se como referência cultural e artística de novos expoentes nos campos da atuação, direção e dramaturgia.
Originalmente voltado apenas para alunos, professores e funcionários da USP, o festival inova e passa a considerar, a partir deste ano, as várias experimentações teatrais produzidas em outras instituições acadêmicas, como Mackenzie, PUC, Unesp, universidades federais de Mato Grosso, Paraíba, Piauí etc.
Das 53 inscrições de várias cidades do Brasil (Fortaleza, Florianópolis, Campinas, Piracicaba, São Carlos, Pirassununga, Bauru e São Paulo), foram selecionados 11 espetáculos.
ABERTURA
“Des-Medéia” abriu sexta o evento. O monólogo, uma desconstrução do mito Medéia, fala do abandono de seu país por causa de Jasão, o abandono por ele, sua vingança em seus filhos. Denise Stoklos trata ainda da desumanização no cotidiano, ausência de vínculos políticos e ideológicos, diferenças sociais, miséria e violência.
Figuras arquetípicas da cultura popular brasileira são decodificadas por Antonio Nóbrega no encerramento do evento em “Figural” (dia 14), onde passeia por raízes nordestinas e traz à tona, pela primeira vez, o seu personagem Tonheta, que ganharia vida própria em espetáculos posteriores, “Brincante” e “Segundas Estórias”. “Na Pancada do Ganzá” (dia 15), show onde toca acompanhado de um quinteto, é baseado na pesquisa de Mário de Andrade, que percorreu o Norte e Nordeste do País no final da década de 20, em busca da sonoridade peculiar do povo local.
Até o dia 13, é a vez dos universitários. Os espetáculos: “A Destruição de Numância”, de Cervantes, com Universidade Estadual de Santa Catarina; “D. Juan”, de Molière, adaptação de Brecht, com Esalq da USP de Piracicaba; “O Sonho”, de Strindberg, Escola de Engenharia da USP São Carlos; “Vaso Ruim Não Quebra”, de Cássio Pires de Freitas, Filosofia da USP São Paulo; “Revólver – O Novo Testamento Segundo a Morfina”, de Antonio Rogério Toscano, Instituto de Artes Unicamp; “O Marinheiro – Uma Aventura Interior”, de Fernando Pessoa, adaptação de Ueliton Rocha, Estadual do Ceará; “O Tempo e a Gente”, baseado no conto “O Muro”, de Sartre, adaptação de Wilson Boneto; e finalmente “Artaud no Brasil – Uma Odisséia Latino-Americana”, de José Roberto Aguilar, Odontologia da USP Bauru.
Festival de Teatro Universitário da USP – Espetáculos universitários até dia 13, sempre às 21h. Os espetáculos “Figural”, dia 14, 21h, e “Na Pancada do Ganzá”, dia 15, 20h, ambos com Antonio Nóbrega, encerram o evento. Centro Cultural Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, Consolação, Capital, tel. 255-2092 e 255-6842). Ingressos gratuitos devem ser retirados na bilheteria a partir das 18h do dia de cada apresentação. Inscrições para as palestras e oficinas são gratuitas e devem ser feitas com antecedência.
Pensamento, voz e silêncio. São Prerrogativas fundamentais para quem vive da arte de atuar. Quando bem aplicados, constituem instrumentos para ganhar o público; conduzi-lo à emoção que só o teatro, na sua verdade e superior dimensão, pode proporcionar. Maria Alice Vergueiro, que tranqüilamente figura no pódio das grandes damas do teatro brasileiro, é uma exímia dominadora da cena.
Em “No Alvo”, vivendo a protagonista, ela mostra o quanto sabe explorar a maturidade dos anos em que se entregou de corpo e alma a vários personagens (foi uma das fundadoras do Ornitorrinco, ao lado de Cacá Rosset, há duas décadas).
Todas as potencialidades da mãe obsessiva traçada pelo australiano Thomas Bernhard (1931-1989), o autor, são exploradas com maestria.
Megera, inteligente, filósofa por compulsão, poeta iminente, criança e mulher, enfim, as contradições desenham uma presença impactante.
Maria Alice, que sempre pautou sua carreira pela ousadia, pela busca da experiência cênica, consegue captar a difícil e introspecta história de Bernhard, de um existencialismo profundo, projetando o caráter monstruoso e a pequenez sentimental da protagonista.
Em suma, o texto diz respeito à relação de poder entre mãe e filha; o perverso jogo marcado pela submissão e a ditadura de regras. A interdependência – filha escrava precisa de mãe castradora, e vice-versa – é um aspecto intrigante.
O universo pendular das aulas é invadido pelo jovem dramaturgo, um naco de razão como contraponto à mulher etérea e dona-da-verdade.
Num passeio em casa de praia, o trio vivencia questionamento até à medula. Do campo da teoria literária (a matriarca coloca em xeque o talento do jovem escritor) até o massacre existencial, no qual expõem seus vícios e virtudes, “No Alvo” é um texto que atrai o espectador para um exercício de reflexão sobre a condição filosófica de ser e estar.
Seus personagens são radicais. A mãe excede, a filha se submete e o dramaturgo perde o chão.
Quando estreou no Fiac, em agosto, a peça tinha direção de Annette Ramershoven. Na temporada atual, quem assina é Luciano Chirolli, que mantém o impacto da palavra em Thomas Bernhard e, ao mesmo tempo, investe no trabalho de ator, atingindo o equilíbrio.
Agnes Zuliani, que vem de uma interpretação emocionante em “Boa Noite Mamãe”, montagem na qual recebeu indicação para o Prêmio Shell, corresponde à presença limitada e ofuscada da filha.
João Carlos Andreazza, da comédia “A Bilha Quebrada”, também transmite a insegurança do seu escritor dramático, inclusive na movimentação dentro do espaço não-convencional do Instituto Goethe – uma sala.
Mas a montagem é, antes de tudo, uma oportunidade para reverenciar a grandiosidade e o talento de Maria Alice Vergueiro, por irradiar tanta intensidade e lirismo.
No Alvo – De Thomas Bernhard. Tradução: Wolfgang Pannek. Dramaturgia: Barbara Mundel. Direção: Luciano Chirolli. Com Marinez Lima e outros. Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Instituto Goethe (rua Lisboa, 974, Pinheiros, tel. 280-4288). R$ 15,00. Até dia 15.
8.12.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de dezembro de 1996. Caderno A – 4
Dramaturgo pernambucano voltou a São Paulo esta semana com aula-espetáculo e anunciou adaptação de um das suas obras para Antunes Filho
VALMIR SANTOS
São Paulo – O próprio autor de “O Auto da Compadecida” costuma caçoar da piadinha que alguns dos seus detratores espalham pelo Recife, terra natal, dando conta de que o último nordestino brasileiro que falta morrer, depois de Antonio Conselheiro, Lampião e Padim Ciço, é Ariano Suassuna. “Me sinto até lisonjeado”, brinca. Aos 70 anos, dono de uma memória ferrenha e sempre empunhando a bandeira da valorização da arte popular brasileira, sobretudo a nordestina, o dramaturgo voltou a São Paulo esta semana para protagonizar mais duas aulas-espetáculo e, ao mesmo tempo, lançar o grupo instrumental Romançal, retomando o projeto do Movimento Armorial idealizado por ele nos anos 70.
Um bate-papo com Suassuna é como resgatar o prazer da oralidade perdida na modernidade que engole a todos. Bem-humorado, com paciência de Jó para esmiuçar suas idéias a jornalistas com pouca noção da aventura artística o povo nordestino, o atual secretário estadual de Cultura em Pernambuco, cargo que ocupa há dois anos, a convite do governador Miguel Arraes, revela, entre outras novidades, que pretende adaptar uma das suas peças para Antunes Filho. Trata-se de encomenda antiga do diretor do CPT.
Para a empreitada, ainda sem previsão de data, Suassuna vai fundir a história da sua primeira peça, “Uma mulher Vestida de Sol”, escrita quando tinha 20 anos, reescrita uma década depois (e nunca montada), com a versão de folheto de cordel para “Romeu e Julieta”, de um poeta nordestino anônimo. “Não se trata de uma relação textual, mas encaixaria minha história na linhagem da de Shakespeare”, explica, justificando o encontro do rapaz e da moça enamorados cujas famílias se odeiam.
Há duas semanas, estreou em Recife uma adaptação sua para o “Romeu e Julieta” do cordel, com a Trupe Romançal de Teatro, sob direção do sobrinho Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”). Diz que a montagem não vem para São Paulo justamente para não “atrapalhar” o projeto que vai fazer para Antunes.
Apesar da parceria iminente, o escritor confessa nunca ter assistido à alguma peça do mentor do CPT. Viu a shakespeariana “Megera Domada”, décadas atrás, quando o diretor ainda não desenvolvia um trabalho com profundidade experimental. Inicialmente, segundo Suassuna, Antunes desejava a adaptação do romance “A Pedra do Reino”, mas foi demovido da idéia pelo autor: são 630 páginas e o tempo anda escasso no dia-a-dia desse pernambucano arretado, vestido elegantemente em calça e camisa de linho branco, bastante à vontade no espaço do Teatro Brincante, comandado por Antonio Nóbrega, ex-Quinteto Armorial e fiel seguidor do cruzamento do popular e do erudito na sua concepção de arte.
É a partir dessa perspectiva que Ariano Suassuna reflete, com muita entrega e conhecimento de causa, sobre o processo de consumo e descaracterização das obras por conta da massificação. Mas quem pensa que o discurso bate com o exercício do artista, está enganado. “Eu não faço arte popular”, surpreende. “Tenho uma formação universitária, sou professor e se fosse assumir o rótulo de artista popular estaria sendo falso.”. A autocrítica é uma característica do homem que vive de buscar a arte erudita na raiz popular brasileira.
Essa ideologia cultural, costuma lembrar o dramaturgo, formava a base de criação de dois grandes artistas de todos os tempos: o compositor brasileiro Villa Lobos e o escritor espanhol Federico Garcia Lorca. Aliás, a cultura ibérica, com destaque para a do século 19, serve de inspiração para Suassuna.
Teatro, romance e poesia – nesta ordem – são os gêneros mais identificados na obra de Ariano Suassuna. Contudo, ele disse a O Diário que todas as peças e romances têm na poesia a sua sustentação. Não fosse poesia, dificilmente haveria outras veredas. “Ela é a fonte de tudo”, declama.
Poucos, no entanto, conhecem seus versos ou prosas. Uma aqui, outro ali chegaram a ser publicados em jornais. “É culpa minha e dos editores”, admite. Sua vontade, no fundo, é ver os poemas publicados em único volume, – mas não necessariamente neste formato. A intenção é costurar um romance com as folhas, algumas amarelecidas, que trazem seus poemas desde a adolescência. Já está trabalhando nele, tampouco com previsão para trazê-lo à tona. Mas a resistência não é tanta assim: no ano que vem, a editora portuguesa Átrio vai lançar 20 sonetos do autor.
Empolgado com a conversa, Ariano Suassuna dá de lambuja alguns versos de um dos seus poemas que pretende verter para o futuro romance: “Por isso não vou nunca envelhecer: Com meu cantar supero o desrespeito/ Sou contra a morte e nunca hei de morre”.
Lidar com finanças e outros qüiproquós administrativos não é a praia de Suassuna. Na sua secretaria, em Recife, responde sobretudo pela criação de atividades que sejam coerentes com propostas do “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil”, elaborado para ser cumprido nos da gestão Arraes.
Apesar de se declarar um cultivador de raízes populares, verdadeiro baluarte de uma identidade em tempos de globalização, a oposição não lhe sai dos calcanhares. “Muitos acham que sou radical, arcaico; eu às vezes sou mesmo”, garante. Dia desses, recebeu um recado de um dos seus desafetos do meio artístico pernambucano: “Diz para o Suassuna que eu também gosto de raízes brasileiras: inhame, batata-doce…”, ironizou o fulano.
Outra pendenga recente sobre artigo do jornalista Paulo Francis, que costuma tratar a América Latina” (“tenho uma raiva danada dele”) acabou estimulando os neurônios de um recém-formado grupo de rock de Recife, batizado como Paulo Francis Vai Para o Céu. Na capa do primeiro disco, numa paródia ao filme “Na Cama com Madona”, aparece Suassuna e Paulo Francis, lado a lado, sob a frase: “Friends Forever”.
Polemista de bandeira branca (“A única distinção de valor é entre obra boa e ruim”; “Gosto se discute, sim, como se discute muito sobre futebol, religião e outras coisas que dizem que não se discute”), Ariano Suassuna é, ele mesmo, um personagem. Tem muita história para contar e um sonho por ver concretizado: um dia, o nacionalismo cultural será disseminado como principal fundamento de uma sociedade que se pretenda humana e justa – a brasileira.
Romançal consolida Quinteto Armorial
O conjunto Romançal, que se apresentou ontem pela primeira vez em São Paulo, no Teatro Brincante, surgiu em novembro deste ano, quase 15 anos depois do fim do Quinteto Armorial, menina-dos-olhos de Ariano Suassuna no Movimento Armorial que liderou em Recife nos anos 70.
Se o experimental Quinteto introduziu instrumentos populares (rabeca, viola, marimbau, pífano) na música erudita (flauta, violino), para alcançar uma estrutura musical brasileira, menos européia, o Romançal atinge agora uma espécie de síntese da proposta original.
Estão lá o violino, a flauta, o violino e o violoncelo obrigatórios na composição clássica. “A fase de experiências já passou e temos uma musicalidade própria”, explica Suassuna.
A consolidação se dá principalmente pela presença do músico e compositor Antônio José Madureira no quarteto Romançal. Ele participou do Quinteto da década de 70.
Madureira se inspirou em obras da literatura, das artes plásticas, da música e da dança dos séculos 18, 19 e 20 para compor um repertório erudito que reúne os mais diversos gêneros musicais, como valsa, baixão, toada e música de carnaval.
Aproveita para uma releitura de algumas criações suas no Quinteto Armorial, como as peças “Aralume” e “Rugendas”. Em “Suíte Retreta”, traça um perfil popular semi-erudito, abordando cinco danças do universo brasileiro: maxixe, valsa, poca, mazurca e dobrado.
O quarteto Romançal, além do diretor artístico Madureira no violão e viola brasileira, conta com Aglaia Costa Ferreira no violino e rabeca; Sérgio Accioly Campelo na flauta e pífano; e João Carlos dos Santos e Araújo no violoncelo e marimbau. O conjunto, mantido pela Secretaria Estadual de Cultura de Pernambuco e encerrou na Capital sua primeira turnê pelo País.
Sobre a escolha dos nomes Armorial e Romançal, Suassuna “adjetivou” o primeiro, uma substantivo que designa livro aonde vem registrado os brasões, porque vê na heráldica uma manifestação de raiz popular; e fez uma homenagem ao romance, originalmente o dialeto, o latim vulgar falado pelo povo pobre na Idade Média, em oposição às classes cultas.
“Espetáculo” domina a “aula” do autor
Ariano Suassuna diz que “inventou essa história” de aula-espetáculo para mostrar a cultura do Brasil real (qualquer semelhança com o plano de FHC é mera coincidência), em detrimento daquela propaganda pelo Brasil oficial. Mas o que se vê no palco, antes de mais nada, é um homem de seus 70 anos com a plena energia do ator que acabou frustrando em favor da veia de escritor a dramaturgo.
Na aula de quinta-feira, a primeira das duas que programou para sua volta à Capital, um ano depois, Suassuna mais uma vez imprimiu sua pedagogia do sertanejo nordestino que é, fazendo o público, que lotou o Teatro Brincante, rir à beça dos “causos” sacados da memória – é capaz de entrar noite adentro lembrando tipos engraçadíssimos.
Desta vez, porém, não se fez de rogado. Além do “espetáculo” – sua presença e a boa conversa já roubam a atenção -, decidiu partir para a “aula” propriamente dita.
As “aulas” trataram de dois campos definidos pelo autor como o doloroso (trágico e dramático) e o risível (cômico e humorístico). Na primeira noite, acompanhada por O Diário, ele distinguiu o texto trágico do dramático.
“Para que aconteça o trágico, é necessário a presença de um personagem acima do comum, excepcional num grau elevado, o que não ocorre com o drama”, explica. A vida de Getúlio Vargas, por exemplo, segundo o dramaturgo, não caberia numa tragédia, porque o conflito se deu no campo político. Seria um drama. “A tragédia só se dá quando o personagem apresenta um fundo filosófico ou religioso”.
Não há hierarquia entre o trágico e o dramático. Molière não é melhor que Shakespeare, e vice-versa. Antigamente, a comédia era considerada inferior. Hoje não. Para ilustrar sua tese de que o trágico aristocrático, que teóricos contemporâneos sustentam que não têm vez e estão condenados ao passado grego. Suassuna fez questão de ler a adaptação do cordel “O Romance de Romeu e Julieta”, de um poeta sertanejo anônimo, encontrado por ele em 1957.
Ao final da aula-espetáculo, fazendo o público cantar também o enredo que o compositor Capiba escreveu para um bloco carnavalesco rebaixado injustamente (“Queiram ou não queiram os juízes / O nosso bloco é de fato campeão”). Ariano Suassuna vibra como um menino diante da vitória do seu time. Mesmo estranhando a concretude das cidades grandes (passou por Rio, Belo Horizonte, Curitiba), faz questão de transmitir a fibra de quem cultiva a raiz do Brasil nos cantões do Nordeste, celebrando o encontro da identidade perdida.
3.11.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 03 de novembro de 1996. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
Aos 80 anos, Gianni Ratto domina o teatro com maestria. A direção e cenografia de “Morus e seu Carrasco”, montagem que marca meio século de dedicação ao palco, é um exemplo do respeito com que encara o seu ofício. “Esse é um espetáculo ‘convencional’”, logo adianta no programa da peça. “Não sou homem de revoluções ou vanguardismos.” Pois o que se vê é a convenção em seu estado lapidar, sem gratuidades do teatro comercial.
Começando pelo texto, Renato Gabrielli, o autor, concebeu uma história épica, opondo Igreja e um rei, duas poderosas instituições, para trazer à tona a discussão sobre a ética do homem comum em meio ao jogo maquiavélico. Ao invés de cenários “faustosos” com castelos exuberantes, figurinos nobres e todo aquele visual pomposo das cortes, Gianni Ratto se limita ao essencial.
Do formato circular do palco, remetendo a uma arena, à iluminação econômica, o diretor evidencia o texto e a interpretação. Autor e atores são privilegiados de forma a estabelecer um diálogo sem rodeios com o espectador. Olho no olho, palavra no ouvido. “Morus e seu Carrasco”, neste sentido, tem algo de nostálgico; de um teatro no qual o diretor não rouba a cena.
Drama com breves concessões para a comédia (um dos personagens chega a afirmar que não se trata de um tragédia), trata-se da história do escritor Thomas More, representante da Igreja na Inglaterra de séculos atrás e assessor de confiança do rei Henrique 8°. Este lhe roga consentimento ara divorciar-se, driblando a autoridade máxima, o Papa.
Intelectual de perspectiva humanista, Morus se nega a compactuar do plano, abdica do cargo de confiança e, logicamente, ganha a ira do rei. Com a manipulação das leis em suas mãos, o todo-poderoso imediatamente condena o escritor à morte.
Paralelamente ao embate, Renato Gabrielli empreende um cruzamento poético entre o velho Morus a caminho do cadafalso e o jovem idealista. São dois Morus em cena: o sonhador de utopias possíveis e aquele que descobriu a podridão da superestrutura e, ainda assim, não demove a fé.
Momento marcante
Um dos melhores momentos do espetáculo se dá na passagem em que o velho Morus (Jorge Cerruti) e o jovem (Ronaldo Artnic) se encontram: o passado e o presente como inconsciente e consciente. Um canal de espaço e tempo que a magia do teatro proporciona quando bem feita. A interpretação de Cerruti é mais intensa e transmite a introspecção de texto com segurança, enquanto Artnic é um tanto declamativo nas suas falas.
O Carrasco de Ariel Moshe é um personagem-chave: ao mesmo tempo que surge como algoz (ele decepou a cabeça de Morus), se revela fascinado pelos gansos de um lago que, invariavelmente, manda para a panela. É delicado e assassino. O bufão Patenson (Octávio Mendes) e sua esposa, cozinheira e aspirante a atriz Sara (Soraia Saide) respondem por alguma comicidade – mas breves.
Pela experiência e honestidade de Gianni Ratto, pela dramaturgia labiríntica de Gabrielli, pela sobreposição do elenco ao visual, pela emoção iminente, “Morus e seu Carrasco” é uma prova de que nem sempre a convenção é sinônimo de preguiça. Aqui, os elementos do teatro são usados (não usurpados) em benefício de uma história que se quer bem contada – o que, de antemão, constitui um alento para o espectador.
Morus e seu Carrasco – De Renato Gabrielli. Direção: Gianni Ratto. Com Lara Córdula, Gerson Steves, Blota Filho e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 20,00 e R$ 25,00 (sábado).
27.10.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 27 de outubro de 1996. Caderno A – 4
Mostra encerrada na semana passada revela potencial criativo de estudantes do país vizinho
VALMIR SANTOS
A distância geográfica não é inversamente proporcional ao intercâmbio cultural entre os países da América do Sul. Existe um fosso abissal, mesmo em tempos de Mercosul. Foi o que O Diário constatou em Montevidéu, “Capital Ibero-Americana da Cultura”, durante a 2ª Mostra Internacional de Teatro Jovem, encerrada domingo passado.
Grupos do Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Peru se reuniram na capital do Uruguai de 11 a 20 de outubro. Organizada pela prefeitura do local, a mostra constitui verdadeira vitrine do teatro escolar no país vizinho. E aí a primeira surpresa: os jovens uruguaios nutrem uma paixão pelo palco tão imensa quanto a dos brasileiros pela telenovela. Não precisa muito esforço para saber quem leva vantagem na balança da formação cultural e, por extensão, da perspectiva humana.
Entre nós, quando se fala em teatro escolar, logo vem a imagem daquelas “montagens” fáceis, invariavelmente infantis, no pior sentido da palavra. Professores que nunca assistiram a uma peça, de repente são içados a juntar crianças e adolescentes para ler “Alice no País das Maravilhas”, por exemplo, com um tratamento de deixar Lewis Carroll em polvorosa no túmulo.
Amadorismo tacanho, mediocridade, ignorância da inteligência alheia, descaso com elementos básicos da arte da representação, enfim, fantasmas como esses são raros no jovem teatro uruguaio. Ao contrário, os grupos emergentes não se abstêm do exercício elementar da criatividade. Há ousadia na concepção do texto (geralmente um fruto coletivo), na interpretação, na cenografia. O terreno é propício à intervenção do novo. No Uruguai, os jovens têm gana de mudanças. Não se acomodam sob a hoste da estética cênica.
Pesquisam e experimentam formas; reinventam sem medo, mas com fundamento. A gratuidade passa longe. A ressalva no movimento atual fica por conta do que parece ser uma ausência de direção, de norte para os processos em andamento. Ou seja, existem ótimas idéias que às vezes não são bem trabalhadas. O amadurecimento é um ponto-chave.
A 2ª Mostra Internacional de Teatro Jovem teve 95 grupo inscritos (de escolas, de bairros, de centros comunitários). Da maratona cênica, um júri selecionou oito peças, apresentadas ao lado de companhias estrangeiras.
O grupo Pombas Urbanas, de São Paulo, representou o Brasil com “os Tronconenses”, já encenada no Teatro Municipal de Mogi, há cerca de três anos. Os nove atores, dirigidos por Lino Rojas, encontraram nos colegas do Uruguai uma referência importante. Afinal, os projetos têm pontos em comum: jovens sem “vícios”, em busca de um teatro de menos casca e mais essência. (A essa altura, reconheça-se , nem as palavras conseguem traduzir tal instância de força e energia de palco).
Da Argentina, se apresentaram Agrupación Folidramática Te Quisimos Con Locura (“Adiós y Buena Suerte”, com direção de Cristian Marchesi); e La Mixta (“Woyzec”, de Büchner, direção de Javier Rama). Do Chile, o grupo Teatro Cancerbero (“Carícias”, de Sergi Belber, direção Andrés Céspedes). Do Paraguai, Equino Teatro (“Yepetto”). E do Peru, “La Mujer Sola”, de Dario Fo, monólogo representado por Maribel Alarcón, direção de Jean Cottos.
O Diário destaca três espetáculos uruguaios selecionados. Em “Reptar es Sólo un Mérito”, monólogo escrito, dirigido e interpretado por Nicolás Becerra, o público acompanha esquetes sobre situações tragicômicas extraídas do cotidiano. Becerra tem presença de palco suficiente para garantir o ritmo. Uma das passagens mais irônicas e contundentes se dá quando encarna uma noiva desesperada pelo companheiro que não chega à igreja porque está preso. Motivo: fumou marijuana na esquina.
Em “Crímenes y Resfríos” (Crimes e Resfriados), o grupo Acapara el 522, dirigido por Daniel Hendler, mostra um trabalho onde as imagens são fundamentais. A iluminação, marcada principalmente pelo projetor de slides, delimita tempo e espaço de histórias simultâneas. A exposição da fragilidade humana, da capacidade de conspiração contra o outro – a ponto de lhe ceifar a vida – é uma das maiores virtudes do espetáculo.
Um mergulho na estética, vertendo mais para uma instalação ou performance, foi a opção de outro grupo de Montevidéu cujo nome, define bem sua proposta: Imágenes de la Mente. Com “Esto no es una Vaca 2”, criação e direção coletivas, rompe-se a relação palco-platéia. A ação se passa justamente no vão que os separa, com o público sentado no chão.
Fechado em uma cabine plástica, transparente, o personagem enigmático (um açougue, talvez) extrai filetes de carne da cabeça ensangüentada de uma vaca. Ao lado, monitores de TV exibem vídeo de animais no curral, no corredor do abate. Lembra a letra de Zé Ramalho: “Vida de gado/Povo marcado/Povo feliz”. Aos poucos, o “açougueiro” tira o avental e se revela um executivo engravatado. Cobre a cabeça da vaca com a bandeira do Uruguai, ao som do hino nacional.
Para uma mostra escolar, “Esto no es una Vaca 2”, num contexto brasileiro, remete aos festivais universitários de música dos anos 60 e 70, nos quais os compositores faziam críticas ao regime militar. Não é o caso do Uruguai, mas nem por isso a juventude se esquiva do contexto social e político.
Atualmente, o país discute um reforma educacional que, no esboço, traz mais complicações do que benefícios. Mote suficiente para uma passeata pelas ruas de Montevidéu e respectiva ocupação de alguns colégios em protesto contra a imposição do projeto. Resultado: o governo inclui representantes dos alunos no conselho que discute as mudanças.
É assim, teatro e vida associados. Consciência social e autoconhecimento. O contato com o Uruguai neste final de milênio, um dos berços da consolidação do teatro latino-americano nos anos 50 – o Galpão e o Circular são grupos históricos, hoje com salas próprias e verdadeiras instituições do país – evidencia o potencial dos jovens para transformar a arte do ator, através de muito suor e honestidade.
29.9.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de setembro de 1996. Caderno A – 4
Na peça “Drácula e Outros Vampiros”, o diretor cria estereótipos para servir de metáfora ao radicalismo da direita, sempre com humor cáustico
VALMIR SANTOS
Discutir o radicalismo do poder neste fim de milênio e a busca desesperada do Homem pela imortalidade da vida com ela é, sempre sob o ponto de vista de um humor cáustico. O diretor Antunes Filho pretende incomodar a sociedade brasileira, mais uma vez, com o seu novo espetáculo, “Dráculas e Outros Vampiros”, que estreou sexta-feira para convidados e cumpre temporada, na Capital.
Personagem encrustado no imaginário ocidental, Drácula entra em cena, com todos os seus estereótipos possíveis, para servir de metáfora ao radicalismo da direita que avança em vários pontos do planeta.
“Ela já se manifesta até na Internet!”, afirma um Antunes preocupado com o clima de “Holocausto” sustentando, entre outros motivos, pela faxina étnica que vem sendo praticada em algumas nações.
O diretor aponta algumas “trilhas obscuras” do mundo contemporâneo, que define como uma grande Transilvânia. “Em nome do nacionalismo, da religiosidade e da moralidade são criados sistemas fascinantes, eternos e vampirescos de manipulação”, argumenta.
“Drácula e Outros Vampiros”, que começou a ser preparado há cerca de 100 dias, é o resultado dos primeiros ensaios de “Nas Trilhas da Transilvânia”, que Antunes chegou a apresentar no ano passado, no Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac), como um esboço.
À época, o encenador classificou a empreitada como “brincadeira”, da qual também participara fazendo o papel de Narrador.
Levou a sério. O espetáculo faz referências aos filmes “B” e às histórias em quadrinhos, por exemplo. Também contém simulacros de Bela Lugosi, Vicente Price e Tom Cruise, remetendo à arte cinematográfica que, como nenhuma outra, construiu o mito em torno dos dentes afiadíssimos do personagem ávido por gotas de sangue. Que aliás, não surgiram em cena. “Seria desagradável”, pondera.
Agora, para valer, Antunes não sobe ao palco. Dirige 27 atores, 22 dos quais participando, em média, há apenas quatro meses do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) – o laboratório de onde Antunes escolhe a matéria-prima das suas montagens.
O ator, para ele, é questão sine que non. E a sua nova leva, com idade variando de 18 a 30 anos, forma base. O elenco é encabeçado por Eduardo Cordobhess (Drácula), Lulu Pavarin (Generala) e Geraldo Mário (Secretário) – este o veterano, com uma década de casa.
“Drácula e Outros Vampiros” encerra a trilogia “fonemol”, como o diretor denominou a linguagem que introduziu a partir de “Nova Velha Estória” e depois usaria em “Gilgamesh”, o último trabalho. Trata-se de uma língua falada inventada, falada aleatoriamente, com sonoridades próximas do alemão e do russo.
Mas o “fonemol” já não rouba a cena. Aparece agora em “algumas situações”, permitindo brechas para a língua pátria. “Estou em trânsito com o português de novo”, confessa Antunes.
O trabalho de voz no CPT se tornou uma obsessão. “Quero chegar a um Tchecov, com o ator falando o português direito, retrabalhando a voz com sentimento, sem ansiedade.”
E a trilogia engloba ainda temas como a relativização do bem e do mal (“vamos colocar o mal no seu devido lugar, como uma complementariedade ao bem”) e a ilusão da imortalidade (“se você sabe que tudo é uma ilusão, não vai se angustiar tanto”).
A parceria com o cenógrafo J.C. Serroni volta a se repetir, com direito a raios e trovoadas. Concessão que Antunes jura não se tratar de um roçar com a imagem. “Não se trata de estética, mas de sintaxe”, explica. “São pequenos efeitos que acabam com as frescuras e vão logo para a ação, como nas HQs.”
Com o processo de individualização que nutriu de culturas orientais, Antunes Filho brande a bandeira da utopia neste final de milênio, em que pese o caos. “Tenho esperança nos eflúvios do Homem e que os políticos se tornem menos corruptos.” É claro, sem jamais perder o humor.
Drácula e Outros Vampiros – Direção: Antunes Filho. Com o Grupo Macunaíma. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Doutor Vila Nova,
245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (aos sábados).
Revelando a coerência artística e humana
Antunes Filho, 67 anos, conversou com os jornalistas na semana passada. Em algumas frases, revelou a coerência do seu pensamento artístico e humano.
VOZ – “Em ‘Gilgamesh’, eu acho que já houve um amadurecimento no aspecto melódico da Língua Portuguesa…Melhor, vou tentar ainda, não sei se consegui…Temos ainda uma prosódia de Portugal com ‘esses’. Quero achar a musicalidade da nossa língua portuguesa, que é linda… O pior texto do mundo com um bom ator fica uma maravilha…”
LUIS MELO – “Queria segurar o Melo, mas não deu…”
EXISTÊNCIA – “A vida, antes de tudo, é um grande playground, onde acontece coisas boas e más.”
TRANSITORIEDADE – “A verdade dura três verões. Tudo está em movimento, como uma onda…”
REGIME – “É preciso avaliar o que é a democracia. Em nome dela, abre-se demais e alguns indivíduos passam a agir como levianos, inconseqüentes. Na democracia, tem que ser enérgico, porque a leviandade é coerente com a ditadura, não com ela. Na democracia, assume-se um fardo de responsabilidade, que custa muito. A democracia é doida.”
MODÉSTIA – “O CPT já fez alguma coisinha por este País…”
NELSON – “Outra vez, estão datando Nelson Rodrigues, assim com fizeram antes reduzindo sua obra à comédia de costumes.’
PESQUISADOR-MOR – “Gosto mais do que faço lá em cima [no sétimo andar do CPT] do que aqui no palco.”
31.8.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Sexta-feira, 31 de agosto de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Para quem tinha dúvidas quanto à excelência do predomínio do teatro francês na programação do 6° Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac), os três primeiros espetáculos superaram todas. Depois de “Decodex”, com a companhia de Philippe Decouflé, e de “Canard Pékinois”, com Josef Nadj e seu Centro Coreográfico Nacional, agora é a vez da trupe de Jérôme Deschamps em “Les Frères Zénith” arrebatar em cena.
Em cartaz no Teatro Sesc Anchieta, “Les Frères Zénith” é uma delicada comédia que traz à tona elementos da pantomima, do clown, do circo, enfim, celebrando o universo onírico, ainda que apresentando tem tão difícil.
Na verdade, a comicidade explícita do quarteto Jean-Marc Bihour, Philippe Duquesne, François Morel e do próprio Deschamps aponta para uma crítica à sociedade de consumo e ao mecanismo da vida moderna.
A engenhosidade do cenário sugere um canteiro de obras, com toda rusticidade do espaço. Os personagens de “Les Frères Zénith” são como mendigos, peões de obras que constroem um mundo particular de brincadeiras. Nus de máscaras sociais, eles se empenham na arte de jogar, de interpretar com a multiplicidade dos saltimbancos (cantam, dançam, tocam…).
O gestual requintado e as gags – a la Chaplin ou Buster Keaton – compõem a originalidade de um trabalho intenso e encantador.
Quem viu “Canard Pékinois” tem chance de conferir mais um trabalho do diretor Josef Nadj. Agora, além da dança-teatro, ele soma a linguagem circense da Compagne Anomalie em “Le Cri Du Caméleon”. O espaço aéreo é explorado com números de acrobacia para um enredo inspirado em “O Supermacho”, texto de Alfred Jarry (“Ubu”).
Les Frères Zénith – Com Jérôme Deschamps e Companhia. Últimas apresentações hoje e amanhã. Teatro SESC Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 256-2322). Le Cri Du Caméléon – Josef Nadj e Compagnie Anomalie. Últimas apresentações hoje, amanhã, 21h; e segunda, 19h. Circo Escola Picadeiro (avenida Cidade Jardim, 1.105, Itaim, tel. 829-1442). Ambos, R$ 25,00.
22.8.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Terça-feira, 22 de agosto de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Inspirado num trágico evento que se deu em sua cidade natal, na Iugoslávia – o suicídio de atores de um espetáculo de grand guignol -, o coreógrafo Josef Nadj e os artistas do Centre Chorégraphique National d’Orléans criaram uma montagem de impacto. “Canard Pékinois” entra em cartaz hoje no Teatro Sesc Anchieta, mais uma atração do 6° Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac).
Agregado à dança moderna e aos exercícios de artes marciais; o absoluto domínio do espaço e das técnicas do teatro, o espetáculo fala de nostalgia, medos, contradições, perplexidades e recordações. No palco, explora-se os limites do corpo e as profundidades da alma.
Iugoslavo de origem húngara, radicado na França há mais de 15 anos, Nadj é um homem marcado pelo sentimento perpétuo de pertencer a lugar nenhum. “No início, eu queria montar uma peça sobre os temas do desaparecimento e da transformação. O espetáculo foi construído em torno da idéia do reflexo, o reflexo de si mesmo no olhar dos outros. Há ainda, da mesma maneira, o humor, também ele um dos fios condutores”, afirma o diretor.
A companhia Northern Broadsides, que faz hoje a última apresentação de “Sonho de Uma Noite de Verão”, no Teatro Sesc Pompéia, consegue manter o vigor do clássico de Shakespeare sem a paramentação tecnológica dos tempos que correm. Isso implica, por exemplo, abrir mão completamente de efeitos que cubram a ação dos atores.
É como que uma versão rural. Explica-se: a Broadsides vem do norte da Inglaterra e o diretor Barrie Rutter faz questão de manter um certo regionalismo no seu trabalho.
Figurinos coloridos, atores contracenando calçados com tamancos, uma característica do Norte inglês, e uma projeção vocal impactante, responsável pela intensa presença dos intérpretes, enfim, o “Sonho” que se vê aqui nada tem que ver com a versão alegórica de Cacá Rosset e seu Ornitorrinco. Os ingleses fazem uma interpretação de fôlego.
Canard Pékinois – Texto e direção: Josef Nadj. Com Centre Chorégraphique National d’Orléans). Estréia hoje, 21h, no 6º Fiac. Até domingo, sempre 21h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 25,00. Sonho de uma Noite de Verão – Com a Northem Broadsides. Último dia hoje, 21h. Teatro SESC Pompéia (rua Clélia, 93, Vila Pompéia, tel. 864-8544). R$ 25,00.
28.7.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 28 de julho de 1996. Caderno A
VALMIR SANTOS
Importa menos razão ou busca de discernimento em se tratando do teatro de José Celso Martinez. A experiência viva da interpretação, na troca com o público “instalado” (talvez seja esse o termo apropriado) na arena vertical do Teatro Oficina, é de uma injeção catártica rara na cena brasileira.
Seus atores, “possuídos” pelos deuses recorrentes do palco, Dionísio à frente, envolvem o espectador com energia primitiva. Assistindo-se ao trabalho do Uzyna Uzona, fica a sensação de retrocesso ao estado primeiro da comunhão humana – se é que tal dimensão existe -, no qual máscaras sociais não tinham vez.
Em “Ham-Let”, em “Mystérios Gozozos” e agora em “Bacantes”, Zé Celso conquista pela coerência com sua proposta cênica. Impossível se abster; não penetrar seu rito. O encenador, aquele que lançou o Oficina nos anos 70, com “Roda Viva”, enterra a indiferença.
Àqueles que abandonam o embate no primeiro intervalo, sob a desculpa do “tempo”, resta as “incômodas” imagens na cabeça. As cinco e tantas horas, porém, depõem pela suspensão do deus Cronos.
Sim, seus personagens se despem. Mas a nudez como querem alguns, presos ao olhar erotizado, nada tem que ver com a história. Muito além do tecido epitelial, estão os poros da percepção, dos quais William Burroughs já disse a que veio.
Libertária é também uma tradução perfeita para a transcendência do prazer. “Esta cidade vai aprender quanto custa desprezar a orgia”, brada Dionísio (Marcelo Drummond), a certa altura da montagem.
As sensações, como se disse, não são apenas da ordem do olhar. Estão, por exemplo, na uva umedecida pelo vinho, amaciada na boca da plebe-platéia, ou no “estraçalhamento” de quem abre o corpo para as bacantes.
Eurípedes escreveu “Bacantes” (Bakhai) em 406 a.C. É a história de Dionísio, divindade que rege o teatro. Sua chegada à cidade governada por Penteu (Fransérgio Araújo) estabelece o conflito da tragédia.
O nervo da montagem adaptada por Zé Celso é o enfrentamento de Dionísio e Penteu. A ponte entre o clássico e o Brasil dos sem-terra surge com alegoria peculiar.
Zé Celso, como Tirésias, encarna a figura do mestre de cena. Seus longos cabelos brancos, a la Bozo, o corpo esguio, fragilizado pelos recentes problemas de saúde – tudo isso amplia sua presença. Vence, sempre, pela paixão ao teatro.
“Bacantes” é das suas recentes montagens a que mais comunica. Vai às entranhas para dar mensagem. E o faz sem a “ditadura da orgia”. O segredo de tudo isso tem muito a ver com a musicalidade. O reggae, o jazz, o blues, a bossa nova, o carnaval, entre outros ritmos, garantem o pulso graças ao elenco, aos músicos excelentes e à produção (sem medo de ser “super”) bem cuidados. Vale a pena experimentar o rito que, ao final, celebra a vida.
Bacantes – Sexta a sábado, 21h; domingo, 19h. Com Pascoal da Conceição, Denise Assunção, Alleyona Cavali, Vera Leite, Fabiana Serroni, Tânia Albissú e outros. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 606-2818). R$ 20,00 e R$ 10,00 (estudantes). Duração: cinco horas.